Há dias convidaram-me para uma tertúlia na qual o tema seria precisamente se ainda haveriam hoje tertúlias. Por motivos familiares não pude participar, mas não deixei de refletir sobre o tema.
sexta-feira, 6 de outubro de 2023
Ainda há tertúlias?
quarta-feira, 6 de setembro de 2023
Um retornado Setembro
Setembro: As folhas amarelecem ameaçando cair, como autómatos, clientes entram e saem das compras, sacos cada vez mais leves, rostos fechados, a esperança sumindo-se no lado esquerdo da alma. É o país do fado, na mão de fadistas estafados, charlatães vendedores de banha da cobra, exasperando no IC-19, desesperando no Centro de Emprego, aflitos clamando por um ansiado milagre ao fim do segundo acto, que obvie um terceiro de morte sem glória. E as segundas iguais às sextas, a meia de leite da manhã, os jornais com as manchetes da crise, os golos marcados e os penalties roubados, a necrologia, a ver quem deixou de fumar. E mais um corte, um despedimento, o regresso das greves, a brigada do reumático do Conselho de Estado, os comentadores na sua bolha A culpa é da Europa, ou da guerra, salivam especialistas em generalidades. É estrutural, alvitram ex-ministros com reformas douradas, piedoso com os pobres. No jardim, putos rasgam os ares com acrobacias de skate, adultos sem skate derrapam nas esquinas da vida, hoje mera vidinha anémica e perigosa. Lê-se a opinião publicada para se ter opinião, há culpados, e os culpados são “eles”. “Eles”. Sacrossanta casta e tríade do nosso descontentamento, “eles” roubam, conspiram, tiram partido, servem-se. “Eles” são o corpo alienígena, possuídos mutantes e criaturas esfaimadas, vingativas e esquálidas, adamastores de gravata, cruéis justiceiros de pecados por expiar.
Setembro levou praia e devolveu cidade. Asfixiante. Com coisas demais para dinheiro de menos, greves a mais para aulas, cirurgias e tribunais a menos, crise demais para esperança de menos. Nas notícias desfila a galeria de horrores chegados e a chegar, de Kiev, do BCE, de Bruxelas, Belém ou S. Bento, ao longe uma valsa lenta duma velha senhora aflita a contar os trocos com as roupas estafadas de outrora, as promessas dum amanhã glorioso levadas numa noite de Acqua Matrix nos oníricos dias da Expo, promessa e ensaio para os amanhãs dourados que não chegaram. Assim és hoje, Portugal, velha corista de lantejoulas estafadas e sem dinheiro para o asilo, apagadas que foram as luzes da ribalta.
A cigana romena pede esmola, trespassado que foi o lugar a um mendigo reformado, morto de cirrose ou solidão, doente de desespero, sem lugar a cuidados intensivos. Alheios, miúdos atafulham-se em pizzas e cola, amanhã serão mais visualizações no Tik Tok, talvez um casting para um reality show e o Céu durante 15 minutos. Pontuais,velhos de todos os Restelos ocupam os bancos de jardim, no areópago do povo, esconjurando tudo, e sobretudo o tempo, cavalgando o chamamento populista. O tempo que não conta com eles e onde se limitam a passar o tempo, no tempo deles é que era…
Noutro Setembro tombaram torres, e, desafiadores bispos fizeram xeque ao rei. Não caiu, que peões e cavalos tomaram o tabuleiro, mas as regras mudaram, e Setembro mudou. À vindima das uvas sucedeu o pisar dos protestos, é Primavera nas mesquitas e desertos, inquieto, arde o fogo das armas nas espetes a Leste. Mais branda, a cidade lusa promete fumo, soprado por uma brisa atlântica e conformada, pelos cantos sussurram vozes sem voz. No quiosque dos jornais compram-se desgraças matinais, recebidas com torcer de nariz, espanto e indignação, valem as páginas eróticas, oferecendo ninfas a cinquenta euros em qualquer espelunca da Mouraria. E o tabaco de enrolar, e as pastilhas, e as fofocas, mundanas Cristinas e Cinhas, com quilos de maquilhagem.
As árvores decepadas no Inverno cresceram, crescem sempre, vingando o corte, altivas e ondulando. Zelosos, polícias de amarelo fazem por deixar condutores de sorriso mais amarelo ainda, no quotidiano jogo de gato e rato, terminado como sempre na costumada coima e no ufano miar dos gatos. Deus fez o mundo, previdente, o homem concebeu a multa. Teria Deus licença para exibir maçãs, cobras e homens nus na via pública? Coima garantida, asseveram os de amarelo, se multar pudessem um tal Adão, infrator…
Diminuem, os dias. É bom. Menos horas cedidas à crise, a serra exalando um cheiro a húmus em cada matinal despertar. Concentrado, um varredor recolhe os vestígios do Outono que fartos se espalham nas ruas e nas almas, cumpridas as orgias de verde e da esperança, folhas que foram de Verão e Primavera.
Os deuses do Sul preparam a Grande Viagem, deixando aflitos seres de regresso às cavernas, sem alegorias, assustados, levará luas até regressarem, deixados a si próprios e ao Grande Inimigo: “Eles”. Com sorte, alguns sobreviverão, portadores da esperança e da seiva fecunda em renovada Primavera. Outros, tombados como as folhas de Setembro e nos Setembros que se irão seguir, não.
A romena, aquela ou outra, continuará a pedir esmola, alegres miúdos comerão mais pedaços de pizza, circunspectos polícias aplicarão correctivas multas. Os jornais trarão novas capas, alegres ou tristes, renovados, os rostos hão-de continuar, esculpidos pelos tempos e por eles marcados. E Setembro também, no eterno spleen de lento adeus e prometida fénix.
domingo, 27 de agosto de 2023
Sangue atrás da palmeira
Realiza-se hoje em S. Tomé e Príncipe a Cimeira da CPLP, organização que não se pauta hoje por ser um clube de democracias, com a Guiné Equatorial de Teodoro Obiang à cabeça, a Angola de João Lourenço ou o narcoestado da Guiné Bissau. Se há dias se criticaram os BRICS por quererem virar um clube mal frequentado dirigido pela China e pela Rússia (e agora com o Egito, a Arábia Saudita e o Irão, entre outros) há que ser assertivo sobre o que se pretende com esta organização, para lá de propalar a defesa da maltratada língua portuguesa e apostar na diplomacia económica, da qual Portugal não tira frutos, ficando com a retórica e outros com os negócio
A CPLP está em estado comatoso, e só o Brasil tem dimensão para, se quiser, dar novo alento à organização, se bem que o regressado Lula é agora o amigo de Putin e protocandidato a referência do Sul Global, seja este democrático ou não, deixando sérias dúvidas sobre o futuro ou utilidade destas cimeiras, cada vez mais apenas para cumprir calendário, tirar fotos com paisagens tropicais em fundo ou assistir a algum mergulho matinal do nosso omnipresidente Marcelo.
quinta-feira, 24 de agosto de 2023
Não lhe deem mais Fortimel!
terça-feira, 22 de agosto de 2023
Uma história na América
Entusiasmada, Elisa Valadares desembarcava em Nova Iorque decidida a procurar resposta para o enigma do velho diário. Em 1620, Antão Valadares, um seu antepassado com raízes em Colares, acusado de heresia, teve de fugir para Inglaterra, onde embarcou no Mayflower com destino a Cape Cod. Aí viveu cinco anos, até se mudar para Nova Amesterdão, onde montou negócio como ourives. Ao morrer, em 1651, deixou um diário onde escreveu: "tudo o que deixo jaz na imaginação”. Depois da independência americana os descendentes de Antão voltaram a Portugal, o negócio na Baixa de Lisboa prosperou e devolveu respeito e poder aos Valadares, bem como a casa de Colares.
Elisa, professora universitária, desde jovem se interessara pelo diário, tirando um mês de licença, meteu-se a caminho da Big Apple, em busca das respostas possíveis. Não sabia o que procurar, nem onde, mas o desafio pareceu-lhe estimulante.
Instalada no New Yorker, perto da Times Square, dedicou os primeiros dias a absorver o melting pot na cidade que nunca dorme, como certeiro cantara Sinatra. Deambulou por Greenwich Village e pelo Soho, adorou ver Les Miserables, e escutou jazz no Blue Note. Pior era a comida, deslavada, com surpresa descobriu um restaurante na rua 46, onde comeu a melhor posta barrosã de Manhattan, o dono, o Joe Monteiro, com quarenta anos de América, caprichou na confecção.
O diário apontava para que a casa de Antão ficasse a norte da cidade actual. Nova Iorque mudara muito, era agulha em palheiro. Documentos da Biblioteca de Utrech, consultados no Google, ajudaram, os indícios apontavam para a casa ser longe do rio Hudson, pois no diário Antão relatava ser uma hora até ao porto, hoje Battery Park, junto ao cais para Ellis Island. Na Biblioteca do Congresso, em Washington DC, contou com a ajuda de miss Cummings, zelosa bibliotecária conhecedora de Pessoa, e três dias de hambúrgueres e alguns microfilmes depois, lá descobriu uma planta de Nova Amesterdão. A cidade primitiva era dispersa, misturando residências e lojas, uma inscrição a tinta-da-china descoberta quando se aprestava a desistir, marcava o nome “valdares” na zona norte, entre o Central Park e Harlem. Munida de cópias, voltou à cidade e tentou situar a quadrícula, era a meio da cidade, para lá do Lincoln Center.
Sentada no Central Park olhando um esquilo a comer bolotas, deu consigo a pensar no absurdo daquilo tudo, centenas de anos depois.
Nessa noite, no Virgil’s, comeu umas baby ribs, um branco de Martha’s Vineyard distendeu-lhe o espírito, afinal estava em Nova Iorque e pateticamente focada num antepassado desconhecido. Já terminava o jantar, quando um jovem a abordou, o ar perdido da portuguesa despertara-lhe curiosidade. Todd Galagher, era o seu nome, professor de História em Columbia, o relato de Elisa levou-o a oferecer-se para ajudar. Morava em Queens, logo combinando encontro no lobby do New Yorker para o dia seguinte.
Munidos da planta da Biblioteca do Congresso, subiram o Central Park e detiveram-se junto ao Dakota, o prédio habitado por Yoko Ono, a planta mandava virar para a direita, na direcção do jardim. Como crianças numa caça ao tesouro, detiveram-se junto a uns arbustos, onde Todd marcou o chão com o pé. Pela planta, era ali o local da casa. Elisa comoveu-se, e disparou fotos para todo o lado, enfim via decifrado o diário de Antão, o judeu de Colares que um dia partira no Mayflower.
Ameaçando chover, Todd convidou-a para cear no Walinski’s, os melhores tacos da cidade, asseverou. Elisa aceitou, uma mão cúmplice no ombro selou o convite. A cinquenta metros, em pleno Central Park, um desenho circular na calçada assinalava o local onde fora assassinado John Lennon. Em letras grandes, e ao centro, a inscrição “Imagine”. A “imaginação” do diário de Valadares. Elisa emocionou-se, e abraçou Todd com força.
Era tempo de voltar a Lisboa, o ano lectivo começaria em breve, e os últimos dias de relaxe com Todd, o prémio da viagem, afinal. No dia da partida, combinaram um encontro nas Torres Gémeas, para a despedida da Big Apple. Já a caminho do World Trade Center, onde Todd a aguardava desde as oito e meia, um saco esquecido fê-la voltar atrás, faltava a prenda do Jaime, a T-Shirt do Hard Rock Café. Ao voltar a sair, um fumo espesso e intenso cobria toda a cidade, no lobby do New Yorker a televisão anunciava um espectacular acidente com aviões que teriam chocado contra as torres gémeas. Também para Todd, esperando no topo com um bouquet de gladíolos, a manhã seria de despedida.
sábado, 19 de agosto de 2023
Minha maltratada língua portuguesa
sexta-feira, 18 de agosto de 2023
Crónica de causas perdidas
Acho curiosas as pessoas que fazem tudo para aparecer e parecer terem vidas interessantes e inspiradoras, e depois, quando a nódoa lhes cai no pano, invetivam tudo e todos em defesa do seu direito à privacidade, vítimas de si próprias e da sua venialidade.
Vivemos um tempo de superficialidades, de vidas em modo reality show, esquecendo-se quem na discrição da sua existência contribui para um mundo melhor, se calhar em campos não tão cool ou sexy (perdoem duas palavras seguidas em inglês, mas é hoje a língua oficiosa de Portugal...).
Percorrem-se as televisões, os Instagram narcisistas, o Tik Tok para idiotas ou o Twitter (agora X) do lunático Musk, e tudo nos é oferecido como felicidade, sucesso e triunfo, vendido como profundo o que não passa de show off, avidamente apelando às visualizações e aspirando ao momento glorioso em que uma banalidade qualquer se torne viral.
Neste mundo de gente debruçada sobre o telemóvel, um dia destes espantou-me um jovem no comboio lendo um livro, coisa tão rara hoje como encontrar um engraxador ou um amolador. De soslaio, espreitei a ver que obra o traria absorto naquele velho hábito da leitura. Era afinal o livro com as regras do Código da Estrada, a preparar o exame de condução...
Ler, refletir, discutir de forma aberta e positiva, é algo desaparecido no Parque Jurássico desta Humanidade estonteada, aprisionada pelas fake news tomadas como novas verdades, que um dia destes a inteligência artificial normalizará. Quando é que o bom senso se tornará viral?
quinta-feira, 17 de agosto de 2023
A insustentável leveza do "post"
terça-feira, 15 de agosto de 2023
Luz e Trevas
Tenho um amigo que é arqueólogo de passados, não de pedras ou de batalhas, mas de almas, de vidas hoje hologramas, de silêncios que gritam em espaços abandonados, de felicidades interrompidas e de teias de aranha dominantes.
Vou chamar-lhe Corvo. O Corvo, como o de Edgar Allen Poe, sobrevoa as ruínas de felicidades passadas, e no silêncio das suas imagens sem texto traz História ao presente, não a História dos heróis e guerreiros, mas a das almas simples, perdidas em poderes efémeros, felicidades esquecidas, riquezas sem luz mas que alguém ou alguns um dia viveram. É um Historiador, esse meu Amigo, um filósofo da imagem, anónimo mas importante na arte de captar a essência dos dias, que foram de ontem mas serão de amanhã muitos deles.
O Corvo não está nas trevas, antes deambula atrás da Luz na falésia da incerteza, exorcizando almas num tempo sem cronologia, eremita no seu refúgio com cheiro a pinho, documentando novos poemas, cativo de emoções, mas jamais capturado. O Corvo é um pescador experiente, rodeado de palpitantes vultos holográficos, aflito entre os aflitos, é um vencedor da Caverna desafiante e escura, um fauno da noite, mas redentor intérprete da Fogueira seminal, nos seus silêncios e gritos dando conta da fogueira da Vida.
O Corvo celebra a liturgia das Vidas, seja pelo diáfano som do silêncio, seja pelo grito da imagem bafejada pela Luz. O Corvo é grande. Solitário para uns, mas Mestre para outros.
domingo, 13 de agosto de 2023
Ratos na Noite
Em nome duma designada arte urbana ou expressão da liberdade, as nossas cidades, vilas e ruas pejam-se de paredes vandalizadas, não por qualquer expressão plástica (que também há) mas pelo mero prazer de deixar marca, de raiva, sobretudo, como o cão que escolhe a árvore para urinar, delimitando um território. Sem desprimor para alguns artistas que com a sua peculiar forma de expressão fazem eles também Cidade, sobram depois os writers de tags incompreensíveis e de mau gosto estético a comprovar que a polis que os não proíbe ou combate eficazmente está prisioneira destes predadores noturnos, ratos rebeldes sem causa que nos vêm lembrar a fragilidade da nossa segurança- quem grafita também pode roubar, a via aberta é a mesma- e como é inglório querer habitar cidades harmoniosas, limpas, de todos e para todos.
O fenómeno é generalizado, até em Espanha o constatei recentemente. Não há muro, parede, paragem de autocarro ou sinal de trânsito que escape, e mal um prédio é pintado ou arranjado, poucos dias depois lá está a assinatura dum qualquer Zorro atuando na calada da noite. Estaremos condenados a cidades sujas, ao património de cada um desrespeitado, e à cacofonia decadente do abandono e relaxe?
E não, não me venham falar em liberdade e inclusão, porque essa também existe, e dela há bons exemplos. É tudo laxismo das autoridades, indiferença da população e afirmação cobarde de quem não tem nada para dizer.