domingo, 20 de setembro de 2015

Setembro



Setembro com surpresa trouxe de volta o Verão perdido, bafejando de dias quentes almas amornadas por quotidianos duros, embora sob o zumbido de palavrosas campanhas eleitorais. As escola reabrem, ruidosas e alegres, as folhas amarelecem ameaçando cair, como autómatos, clientes entram e saem das compras, sacos cada vez mais leves, rostos fechados, a esperança sumindo-se no lado esquerdo da alma. É o país do fado, na mão de fadistas estafados, exasperando no IC-19, desesperando no Centro de Emprego, aflitos clamando por um milagre ao fim do segundo ato, que obvie um terceiro, de morte e sem glória. E as segundas iguais às sextas, a meia de leite da manhã, os jornais com manchetes da crise, os golos marcados e os penalties roubados, a necrologia, a ver quem deixou de fumar. E mais um corte, um despedimento, um gritar baixo na secretária ou balcão, no autocarro ou no médico. É da Europa, salivam especialistas em generalidades. É estrutural, alvitra um ex-ministro com reforma dourada e piedoso com os pobres. No jardim, putos rasgam os ares com acrobacias de skate, adultos sem skate derrapam nas esquinas da vida, hoje vidinha apenas, anémica e perigosa. Lê-se a opinião publicada para se ter opinião, há culpados, e os culpados são “eles”. “Eles”, sacrossanta tríade do nosso descontentamento, “eles”, que roubam, conspiram, tiram partido, servem-se. “Eles”, que são o corpo alienígena, possuídos mutantes e criaturas esfaimadas, adamastores de gravata e ogres de notebook, justiceiros de pecados por expiar.

Setembro levou a praia e devolveu a cidade. Asfixiante. Com coisas demais para dinheiro a menos, propinas a mais para livros a menos, cirurgias a mais para órgãos a menos, crise demais para esperança a menos. Nas notícias desfila a galeria dos horrores chegados e a chegar, e as certezas dum amanhã perturbador, levada a esperança nos oníricos dias da Expo. Assim és hoje, Portugal, velha corista de lantejoulas estafadas, apagadas que foram as luzes da ribalta.

Uma romena pede esmola, trespassado que foi o lugar a um mendigo morto de cirrose ou solidão, alheios, miúdos atafulham-se em pizzas e cola, velhos de todos os Restelos ocupam os bancos de jardim, no areópago do povo, esconjurando tudo, e sobretudo o tempo. O tempo que não conta com eles, e onde se limitam a passar o tempo.

Em Setembro tombaram torres, e, desafiadores bispos fizeram xeque ao rei. Não caiu, que os cavalos tomaram o tabuleiro, mas as regras mudaram, e Setembro mudou. À vindima das uvas sucedeu o pisar dos protestos, é Primavera nas mesquitas e logo virá  fogo incontido ardendo nas cidades da Europa alagada de refugiados da esperança, naúfragos da humanidade, do Inferno de lá, por cá, a cidade lusa promete mudar, ou talvez não, envolta na parafernália dos debates, do plafonamento e das pizzas com pepperoni. No quiosque dos jornais compram-se desgraças matinais, recebidas com torcer de nariz, valem as páginas eróticas, oferecendo ninfas a cinquenta euros em qualquer espelunca do subúrbio, ou a foto de mais um rosto que deixou de fumar

As árvores decepadas cresceram, crescem sempre, vingando o corte, altivas e ondulando. Zelosos, polícias amarelos fazem por deixar os condutores de sorriso mais amarelo ainda, no quotidiano jogo de gato e rato, terminado como sempre na costumada multa e no miar dos gatos. Deus criou o mundo, previdente, o homem urbano criou a multa. Teria Deus licença para exibir maçãs, cobras e homens nus na via pública? Coima garantida, asseveram os de amarelo, se multar pudessem esse tal Deus infractor…

Diminuem os dias. É bom. Menos horas cedidas à crise, menos multas, a serra exalando um cheiro a húmus em cada matinal despertar. Concentrado, um varredor recolhe os vestígios do Outono que se espalham nas ruas e nas almas, cumpridas as orgias de verde, folhas que foram de Verão e de Primavera.

Os deuses do Sul preparam a Viagem, deixando aflitos seres de regresso às cavernas, sem alegorias, assustados, passarão luas até regressarem, deixados a si próprios e ao Inimigo: “Eles”. Com sorte, alguns sobreviverão, portadores da esperança e da seiva fecunda numa renovada Primavera. Outros, tombados com as folhas de Setembro, e nos Setembros que se vão seguir provavelmente não, a romena continuará a pedir esmola, alegres miúdos comerão mais pizzas, circunspectos polícias aplicarão mais multas. Os jornais trarão novas capas, renovados, os rostos hão-de continuar esculpidos pelos tempos e por eles marcados, com a crise como marca de água. E Setembro também, no eterno spleen de lento adeus e prometida fénix.

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