O desaparecido Cineteatro Carlos Manuel, construído por Norte Júnior em 1945 (passam dia 11 de Dezembro 50 anos da sua morte), no local onde antes funcionou o primeiro Sintra Cinema (não o da Portela, que foi construído em 1947) foi um local emblemático para várias gerações de Sintra até ao seu ocaso depois do fogo dos anos 80.
Veraneante em Sintra desde que nasci, e aqui residente desde 1984, recordo sobretudo o Carlos Manuel dos anos 70 e 80, quando, saindo de "carreira" ao sábado, ali ia ver os filmes que normalmente Lisboa já havia visto, mas que, na falta de outras diversões, enchiam a espaçosa sala para ver os filmes em Cinemascope, os westerns americanos ou as comédias de Dino Risi ou com Cantinflas.A audiência era frequentemente ruidosa, e sensível às cenas mais "quentes", sobretudo quando os filmes eram para maiores de 18 (lembro ainda o tempo de serem para maiores de 21...) e com apenas 16 anos entrando à sucapa ou com a complacência do porteiro, ali podíamos admirar os atributos de Claudia Cardinali, Sylvia Kristel, Ira de Furstemberg e outras divas, em "fitas" que hoje até a crianças de 6 anos fariam sorrir. Era o Portugal dos brandos costumes, e a transgressão da ida ao cinema para adultos uma forma de ousadia, a cinco escudos por sessão.O regresso a casa, noite fora, era frequentemente a pé, por falta de transporte e em grupos de quatro ou cinco, disponibilizando por vezes a Sintra-Atlântico uma carreira especial aos sábados à noite.Outros tempos...
Depois de Abril, recordo bem o primeiro comício ali realizado, já em liberdade. Jovem e idealista, ali escutei inflamados Zé Alfredo e Salgado Zenha, proclamando a era da liberdade, e o dr. Sargo Júnior, velho advogado madeirense e meu vizinho em Galamares, residente em Sintra desde que nos anos 30 participara na revolta do general Sousa Dias, e a quem recordo, solene, de fato e gravata, pregando cartazes de divulgação desse comício nas árvores de Galamares, na pré-história dos outdoors e dos flyers. Depois do 1º de Maio de 1974 em Lisboa e das RGA's no Liceu D.Pedro V, posso dizer que foi no Carlos Manuel que participei no meu primeiro comício, dum PS de que nunca até então ouvira falar, e que trazia atrás de si um tal Mário Soares que a seguir à revolução chegara a Santa Apolónia em apoteose, e que decorreu num clima de liberdade e alegria, nada fazendo prever então os difíceis momentos que com o PREC viriam mais tarde.
Já nos anos 90, e depois do incêndio de 85 que o deixou ferido, ali assisti a peças encenadas pelo João Alvim, de que recordo O Falatório de Ruzante ou o A Fé nos Amores, entre outras, num período em que o tempo fazia já sentir o seu efeito na estrutura do edifício e o cinema desaparecera, como aliás ocorreu com o "barracão" da Praia das Maçãs, ou o modesto drive in do Pintassilgo, em Colares, num tempo de ocaso dos Cinema Paraíso, tão bem retratados no filme de Tornatore.
Depois que virou Olga de Cadaval, não obstante o ganho para a vila, enquanto equipamento cultural, deixei de o considerar como o cinema de Sintra, desaparecidas que foram as sessões nocturnas, ou o trabalho pioneiro do Alvim, deslocado para o outro lado da estrada. De certa forma, perdeu a autenticidade, na medida em que os novos públicos passaram a ser mais ecléticos e provindos quer de Sintra, quer de fora, cumprindo uma função cultural essencial, mas sem aquele sentimento de pertença que durante anos nos ligou ao "nosso" Carlos Manuel. Mas a vida é assim mesmo, e a Memória um património particular da nossa humanidade. Que ninguém pode apagar, porém.
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