sábado, 28 de dezembro de 2019

Amizade, essa Utopia


Chamamos amigos a todos os conhecidos com quem de forma amistosa nos relacionamos, no trabalho, no café, no ginásio, no clube de futebol, ou no ativismo, e as relações desenvolvem-se na partilha por vezes esporádica e gratuita de beber juntos um copo, dizer uma piada, praguejar contra um árbitro ou contra o governo. A forma continuada no tempo como fazemos isso faz-nos chamar amigos aos parceiros desses momentos, muitas vezes empolgados pela projeção dum ego grupal ou, se calhar, pelo álcool que a todos liberta e adormece. Gregários que somos, precisamos dessa inclusão, do abraço fácil, ontem feitos de idas ao cinema ou à discoteca, das futeboladas na rua, ou dos namoriscos de liceu, hoje filtrado pelas redes sociais e pelo preço barato de um “gosto”  que a todos faz “amigo”.

Amigos, porém, são os que, porventura tendo começado por ser conhecidos nesse contexto, souberam (soubemos) atravessar a cortina invisível das nossas personas, e olhar para eles, e eles para nós, fora das máscaras sociais com que nos projetamos, inclusive para eles (e muitas vezes, para eles, sobretudo). 

A amizade tem rituais iniciáticos, mas só quem souber ver para lá da caverna das ilusões e sentir o Ser, e não o Parecer, pode, após assentar a poeira dizer: este é um Amigo!. É um processo longo, doloroso por vezes, feito de desilusões e artifícios. Porém, quando uma centelha de Luz nascida de atos, e não só de palavras ou gestos mecânicos e previsíveis aproximar e afirmar essa cumplicidade, grandes momentos, e estradas patrulhados pelo Sol, surgirão, e os verdadeiros amigos se revelarão. A esses é consentida a frase que magoa, mas faz acordar, as lágrimas de desespero que logo um abraço limpará, ou o conselho desinteressado que pode dar força para dar um passo em frente. Eis a Grande Utopia.



quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Efemérides Sintrenses em 2020


Vem aí 2020, ano para assinalar algumas efemérides que a Sintra respeitam, nomeadamente o centenário da Escola Militar de Aviação na Granja do Marquês (foto) e o da morte na sua casa da Estrada da Macieira, do Dr. Gregório de Almeida, médico em Sintra desde 1891, e considerado "O Pai dos Pobres".

É em 1920 que Adriano Júlio Coelho funda a Sociedade de Turismo de Sintra, no âmbito da qual se constrói o Casino, o Bairro das Flores e fazem melhoramentos no caminho de ferro. Também neste ano morre em Londres o 2º visconde de Monserrate, Frederick Cook, deixando como herdeiro o filho, Herbert Cook. E, em 29 de agosto, nasce em Tavarede, Figueira da Foz, a poetisa de Sintra Maria Almira Medina,(foto) centenário que igualmente se espera tenha o relevo que Maria Almira merece.
Em 1920 Raul Lino constrói a famosa Casa Branca, nas Azenhas do Mar, e em Outubro é fundado o Sporting Clube de Lourel, filial nº 108 do Sporting Clube de Portugal. Já a 24 de outubro, morre o proprietário da Quinta da Regaleira, António Augusto Carvalho Monteiro,(foto) herdando a quinta o seu filho Pedro, e também este evento deverá ser um momento para revisitar a sua figura de filantropo.
Mas de memória mais recente outras datas são de assinalar em 2020: os 80 anos da morte de Carlos de Oliveira Carvalho, o “Carvalho da Pena”, da fundação do Hóquei Clube de Sintra, e da abertura da biblioteca municipal no Palácio Valenças, os 50 anos do restaurante Apeadeiro, ou os 40 da morte do cantor Max, residente no concelho.
Rumo ao futuro, Sintra não pode esquecer o seu passado, e os construtores de Memória que fazem dela uma experiência mais que um lugar.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

2019 a terminar


2019 chega ao fim com diversas nuvens no horizonte, desde a incerteza quanto à economia mundial, dado o Brexit e a tensão nas relações com a China, quer na evolução do processo democrático em muitas zonas do globo (Hong Kong, Venezuela e Bolívia, entre outras, sem falar no grande debate e nas grandes decisões adiadas sobre o combate às alterações climáticas, que os grandes poluidores teimam em procrastinar, quais avestruzes na areia.
O ano internacional foi marcado, nas Américas, pela irrupção do populista Bolsonaro no Brasil, a braços com o défice democrático, a catástrofe ambiental na Amazónia e as decisões pendulares em torno da Operação Lava Jato, que para já colocaram Lula fora da cadeia, bem como pela tensão política no Chile e na Bolívia, aqui tendo mesmo levado à demissão de Evo Morales, e o regresso do peronismo à Argentina. Mais a norte, a guerra comercial de Trump, a braços com a trapalhada dos telefonemas para a Ucrânia e o processo de impeachment, prometem cenas dos próximos capítulos em 2020, ano de eleições presidenciais.

Na Europa, o Brexit balançou entre os gritos por “order” e as piruetas de Boris Johnson, vencedor duma guerra ganha pelo cansaço, enquanto no universo comunitário uma nova equipa imposta pelo diretório franco-alemão impôs Ursula Von Der Layen como a “senhora que se segue”. Também Espanha esteve na berlinda, com as sentenças dos independentistas catalães e a sucessão de atos eleitorais inconclusivos, fato que também ocorreu em Israel, levando a soluções de compromisso instável ou mesmo a novas eleições no ano que vem.
África mantém-se pouco aberta a grandes mudanças, não obstante as eleições em Moçambique e na Guiné-Bissau terem ocorrido com transparência, segundo os observadores, e Omar El-Bashir e Boutflika tenham sido substituídos por pressão popular, no Sudão e na Argélia, o primeiro ministro etíope tenha ganho o Prémio Nobel da Paz, e Mugabe morrido, já afastado, aos 95 anos.
Produto ou não do clima que se revolta, houve ciclones em Moçambique, nas Bahamas e nos Estados Unidos, tornados nos Açores, fogos no Brasil, na Califórnia e na Austrália. Clima que pôs em destaque Greta Thunberg e as Fridays for Future, e a impotência dos Estados para afrontar o problema, como o fiasco da COP 25 o atesta.
Destaque ainda para os atentados de Christchurch, a prisão de Julian Assange, a entronização de Naruhito no Japão, o incêndio da Notre Dame, a morte de Jacques Chirac, a convulsão social em França e a vontade da Turquia de se tornar uma potência hegemónica na Ásia Central.

Entre nós, o ano fica marcado pela reeleição de António Costa, o fim da “geringonça”, a criação do Aliança, e o aparecimento de novos partidos na Assembleia da República, o caso das golas inflamáveis, as greves dos motoristas de matérias perigosas e dos enfermeiros, a saída de cena de Assunção Cristas e a continuação da atenção mediática em torno de diversos casos judiciais, uns mais políticos (Operação Marquês, Tancos) desportivos (Alcochete) ou criminais (morte de Luís Grilo). Casos como o do bebé sem rosto ou o encontrado no lixo, o aumento da violência doméstica, as atitudes de Joe Berardo no Parlamento, e o estado do Serviço Nacional de Saúde foram notícia ao longo do ano e prometem passar para 2020. De referir também o desaparecimento de Arnaldo de Matos, André Gonçalves Pereira, Alexandre Soares dos Santos e Freitas do Amaral, e de figuras de relevo da cultura portuguesa, como Sequeira Costa, Bigotte Chorão, Maria Alberta Menéres, Agustina Bessa Luís ou Pinharanda Gomes.

No plano cultural e artístico internacional, é significativo o painel dos que nos deixaram este ano: James Ingram, Agnes Varda, Bibi Ferreira, Bruno Ganz, Karl Lagerfeld, André Previn, Beth Carvalho, Doris Day, Franco Zeffirelli, João Gilberto, Rutger Hauer, Peter Fonda ou Anna Karina, num ano marcado pela ascensão da Netflix e do digital e pelas ameaças do 5G chinês. No plano nacional, assinalar a morte de Dina, Roberto Leal, Teresa Tarouca, Argentina Santos, José Mário Branco, Eduardo Nascimento, o reconhecimento dos caretos de Podence como Património Imaterial da Humanidade, o Prémio Camões atribuído a Chico Buarque, e o Pessoa a Tiago Rodrigues.

O desporto continuou a ser marcado pelo futebol e pelas polémicas: a situação explosiva do Sporting, a expulsão de Bruno de Carvalho, os casos e-toupeira, Lex, ou Rui Pinto. Mas também pela vitória do Benfica e de Bruno Lage no Campeonato Nacional, a transferência milionária de João Félix para o Atlético de Madrid, a conquista da Liga das Nações, ou os sucessos nos campeonatos do mundo de hóquei em patins e futebol de praia, a par de troféus individuais, como o do judoca Jorge Fonseca, e o o reconhecimento internacional de Jorge Jesus no Brasil. Morreram, entre outros, Nikki Lauda, Jordão e Fernando Peres.
Last, but not the least, Sintra. 2019 continuou a marcar o crescendo de Sintra como destino turístico, confirmado pelos milhões de visitantes e potenciado pelos inúmeros prémios internacionais e a visibilidade dada este ano pela estreia do filme “Frankie” de Ira Sachs, integralmente filmado entre nós. Destaque fatual para a inauguração de novos centros de saúde, a aprovação do novo Plano Diretor Municipal ou as alterações ao trânsito e regulamentação do transporte turístico. Finalmente, uma nota de saudade para assinalar três amigos que faleceram, a todos deixando saudade: o arquiteto Diogo Lino Pimentel, grande defensor do Centro Histórico e sua autenticidade; o antigo vereador António Correia de Andrade, lutador em prol da resolução de muitos problemas urbanísticos, ligados, sobretudo, com os bairros ilegais; e o anterior presidente da junta de Cacém e S. Marcos, Estrela Duarte, exemplo de trabalho e dedicação às populações por si representadas.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Morrer depois de já ter morrido



Morreu José Lopes, dizem as redes sociais, ator que o meio abandonou, e viveria de forma precária numa tenda, algures no concelho de Sintra. Confesso que nunca ouvi falar dele, nem recordo nenhuma peça, filme ou novela em que tenha entrado. Mas de tantos "amigos" indignados, nas redes sociais, vituperando a sociedade pela falta de auxílio, não haveria um só que lhe pudesse ter valido, encaminhado ou apoiado? Tanto "amigo" e já só morto há dois dias se deu por ele? Tantos amigos que tinha afinal, e contudo...

Hoje a amizade e a compaixão são só nas redes sociais, ao alcançe dum like ou emoji, mais para que outros leiam e vejam que assentes na vida vivida e de sentimentos reais. Logo já outro assunto dominará a rede, e o falecido regressará ao silêncio para onde há muito já estava desterrado. Alguns terão sido amigos de verdade, admito, sem conhecer, mas ninguém que se assuma como amigo pode deixar de se interrogar, se no Inverno duma sociedade de foguetório não há já uma vela de esperança que, tendo podido ajudar José Lopes (n)os tivesse igualmente ajudado a salvar.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O envelope verde

Um Natal sportinguista...

Na casa de Janas, desde há muitos anos que na árvore de Natal aparece pendurado um envelope verde, sem remetente ou destinatário. Tudo começou por causa do tio Álvaro. O velho e espartano solteirão detestava o Natal, não porque não estimasse a família, mas para ele massificador de emoções, fazendo da fraternidade algo a que se acrescia lucro e iva. Era avesso às compras, às comezainas pantagruélicas e aos pares de meias com ursinhos embrulhadas com fitas cintilantes, confissão desesperada de quem não tinha nada original para oferecer. Até o Pai Natal fora inventado pela Coca-Cola, alegava reticente.
Sabedora do feitio torto, naquele Natal Sofia decidiu deixar de lado as peúgas e gravatas às bolas e foi à procura de algo que ele apreciasse, e a ideia surgiu-lhe um pouco por acaso: Sérgio, o filho mais novo, jogava futebol no colégio, e em meados de Dezembro a sua equipa fora disputar um jogo contra uma de Monte Abraão. Em contraste com os equipamentos limpos e de boas marcas da equipa do Sérginho, os deles eram usados e sujos, sapatilhas esfarrapadas, um mundo cruel e real. O tio Álvaro também foi ao jogo, e sentiu claramente a diferença entre os que têm e os que anseiam, reais mundos deste mundo. Os de Monte Abraão perderam o jogo, mas com o orgulho ferido calaram a derrota, não eram as sapatilhas a única coisa esfarrapada ali.O tio Álvaro, velho adepto de futebol, e do Sporting- nasci para sofrer, dizia - no fim do jogo encolheu os ombros, taciturno:
-Os miúdos da outra equipa têm potencial, mas é pena, têm poucas condições, é por isso que muitos deles depois desistem. Apesar de torcer pelo nosso Sérgio, hoje gostava que eles tivessem ganho! -desabafou, um pouco mais expansivo que o habitual.
Nos anos sessenta, Álvaro Camacho fora treinador de juniores no Sporting, a alguns viu mesmo singrar nas divisões intermédias, amigos para o resto da vida. Ainda nessa altura, no café do Fernando, com muitos dos putos já veteranos, comentava regularmente as partidas e as carreiras difíceis. O desabafo deu a Sofia uma ideia para um presente que por certo o levaria a mudar de ideias quanto à data. Divorciada e dona duma boutique, com alguma folga financeira que permitira a casa em Janas, tinha um coração generoso. Dias mais tarde, entrou numa loja de desporto, comprou onze pares de sapatilhas e enviou-as à escola de Monte Abraão. Na véspera de Natal, discretamente, pendurou na árvore cintilante um envelope verde, com um bilhete para o tio Álvaro, a oferta das sapatilhas aos miúdos era o presente dela para ele. Surpreendido, esboçou um sorriso discreto mas luminoso e naquele ano, depois da ceia, até comeu filhoses, e bebeu vinho do Porto.
Nos anos seguintes, a árvore de Natal passou a contar com um envelope verde pelo qual um grupo de crianças ou pessoas carentes beneficiaria, sem o saber, dum tio que recriminava o Natal, virando mesmo tradição: um ano, foi um cheque a um paralímpico sem meios; outro, um perú para o lar de idosos onde estava a Ercília, antiga criada da casa, o envelope surpresa passou a ser o momento alto do Natal pelo qual o tio Álvaro passou a aguardar, ansioso, sem grandes exuberâncias, mas interiormente feliz. Religiosamente, era sempre o último presente a ser lido na noite de Natal, e com o tempo até o Sérgio e os irmãos mais novos deixaram de lado os brinquedos que já sabiam ir receber, à espera do momento em que, qual entrega dos Óscares, se revelaria o nome dos contemplados desse ano. O tempo foi passando, e as crianças crescendo, mas o inevitável envelope nunca perdeu o seu lugar e encanto.
Um dia, um cancro de pulmão fez das suas e o tio Álvaro partiu, levando o velho sportinguista que detestava o Natal, mas involuntariamente fizera vários Natais felizes.
O ano passado, ainda chorosos pela perda do carismático tio, Sofia e Sérgio, já adulto, como sempre enfeitaram a árvore junto à lareira onde pontificavam retratos de familiares sorridentes, mortos e vivos, o tio Álvaro em destaque com o seu bigode farto e o nariz achatado. No meio das bolas e luzes, e do presépio da avó Chica, de novo um envelope verde, bem ao centro. Foi Sérgio, cúmplice, quem o colocou. Antes da ceia do Natal, um segundo envelope adornava outra ramagem da árvore, e à noite, mais três se lhe juntaram. Também os irmãos mais novos de Sérgio, fãs do Bruno Fernandes, sem o dizerem, colocaram envelopes, e sorridentes, disfarçaram surpresa, alegando ser coisa do Pai Natal. À meia-noite, depois da ceia e dos presentes, todos à vez foram à árvore e abriram o envelope com a prenda que em memória do tio Álvaro iriam dar: a Joaninha, duas bonecas para o ATL da escola, em Morelinho; o Rui, uma bola de futebol para os filhos do Etelvino, desempregado e em dificuldades; até o Marquitos, na ingenuidade dos seus cinco anos ofereceu um desenho representando o tio Álvaro com um leão, treinando dois meninos a jogar futebol, para o infantário.Nos natais da casa de Janas, o espírito de Natal passou a ser o momento da homenagem àquele velho tio avesso às aparências, e a ser mais importante dar que receber.É Dezembro de Natal, na rádio toca Rudolph the Red Nosed Reindeer, e fico por aqui, que há envelopes verdes para ir comprar. Só eu sei porque não fico em casa.  
   

domingo, 1 de dezembro de 2019

Portugueses, celebremos...


O momento é solene na Quinta do Espingardeiro. Sua Alteza Real El-Rei D. Duarte II, novo rei de Portugal, recebe neste momento os conjurados que o restauraram na Coroa depois dos extraordinários eventos da última madrugada.

Assinalando-se como de costume o feriado do 1º de Dezembro, grupos monárquicos convocaram durante a noite, através do Twitter, uma manifestação contra o regime, em protesto contra a degradação das instituições e do prestígio do país, e logo pelas cinco da manhã umas dezenas de jovens, vindos do Urban e da Rua Rosa, se juntaram no Terreiro do Paço, local onde em 1908 o saudoso rei D. Carlos foi assassinado por cobardes carbonários.
Rápido alguns milhares acorreram em apoio, a captar o flash mob para o Instagram. Passando na hora, embuçado, o fadista João Braga falou à multidão, incitando contra os corruptos e vendilhões da Pátria, momento em que um grupo mais determinado apelou a que se restaurasse a monarquia no país. Inflamados, e fugindo ao controlo dos poucos policias destacados, marcharam até à fragata Corte-Real, ancorada em Alcântara, onde só um oficial de dia e alguns marinheiros permaneciam. Invadindo a embarcação, e aprisionado o tenente de serviço, fuzileiros veteranos, hoje porteiros de bares na 24 de julho, apoderaram-se do navio e do paiol, para gáudio da populaça, com nacionalistas e skinheads à mistura, conduzindo o amotinado vaso de guerra para Belém, onde via rádio, e já frente ao palácio presidencial, contactaram o Estado Maior das Forças Armadas exigindo a rendição do regime.
Enquanto grupos civis cortaram os acessos a Belém e S. Bento, controlando as saídas dos cacilheiros e do metro, os ocupantes do Corte-Real ameaçaram com fogo sobre Lisboa e o Palácio de Belém, exigindo a rendição do Presidente da República. Apanhado de surpresa, (apesar de saber sempre tudo), este encontrava-se no momento a tirar selfies no Banco Alimentar contra a Fome, e aí encontrou abrigo junto de alguns sem abrigo, tendo sido escondido por Isabel Jonet entre pacotes de esparguete e o leite em pó. Um assessor ainda tentou parlamentar com os revoltosos, mas estes, via grupo de Whatsapp, entretanto criado, mostraram-se intransigentes, e o ex-presidente acaba de ser evacuado num tuk tuk para a Base Aérea nº1, em Sintra.
Alertadas, a CNN e a CMTV enviaram já jornalistas para o terreno, Christiane Amanpour, Tânia Laranjo e Moita Flores estão a comentar em direto, garantindo a mão de Rosa Grilo e de Carlos Santos Silva na rebelião e financiamento do golpe. Em Sintra, no café da Natália, D. Duarte, vai sendo informado por telemóvel e pelos alertas da CMTV do curso dos acontecimentos, roendo as unhas e comendo travesseiros quentinhos.
Reunido no Restelo, o ministro Cravinho ameaçou com a força militar, e com um ciberataque aos revoltosos, para tanto tendo mobilizado alguns estagiários recentemente contratados a 500 euros na Web Summit, e Rui Pinto, que sabemos ter sido solto há pouco no calor dos acontecimentos por Ana Gomes e Francisco J. Marques. Ainda se tentou acionar um dos submarinos, o Tridente, mas este tem a guarnição toda em formação, e nunca fez tiro real, além de que os operacionais e a artilharia estão na República Centro Africana e os poucos que estão de serviço ainda estão de ressaca das comemorações do 25 de Novembro.
No auge da operação, os conjurados, com o apoio de um grupo de forcados e figurantes do programa do Baião, aliciados com a promessa de bilhetes para o Rock in Rio e o Europeu, invadiram o Palácio de Belém, apeando a foto do deposto presidente Marcelo e içando a bandeira monárquica. Uma proclamação ao país circula no Twitter e no Facebook, e muitos populares, arvorando bandeiras azuis e brancas, se multiplicam neste momento nas ruas da Baixa, num Black Friday patriótico. No Palácio da Independência, Mário Centeno e Eduardo Cabrita, amordaçados com golas antifumo, foram defenestrados pela populaça aos gritos, acicatados por Bruno de Carvalho, e pelo Rouxinol Faduncho, ostentando já umas reluzentes dragonas de marechal. Sem derramamento de sangue, reforçado o movimento com o apoio de ex-militares da PJM, com granadas recuperadas de Tancos, alguns amigos de Mustafá e do Macaco, e da própria Cristina Ferreira, caiu de forma abrupta a III República Portuguesa, implantada a 25 de Abril de 1974.As redes sociais estão entupidas de likes e emojis, os telemóveis saturados, e o Hino da Carta é neste momento o vídeo mais visualizado no You Tube, a par dos discursos de Greta Thunberg e do nascimento de pandas no zoo de Budapeste.
Ainda esta manhã, na casa de Sintra, D. Duarte vai receber uma delegação de conjurados que em exaltação patriótica o irão proclamar legítimo herdeiro do trono, gritando real por el-rei de Portugal. Sabe-se já que com o apoio da futura rainha, D. Isabel de Herédia, e dos infantes, Sua Majestade vai aceitar o pesado fardo que o povo português, nação de gente boa, lhe pede neste momento histórico, e em cortejo triunfal partirá ao fim da manhã para a Ajuda num UMM blindado, escoltado por motards e campinos a cavalo. Derrotado em Évoramonte, o bisavô, D. Miguel, exulta por certo, lá onde esteja.
Na sala do trono no Palácio da Ajuda as forças armadas irão prestar lealdade ao novo monarca, que, dirigindo-se ao povo duma das janelas, e envergando o manto que pertenceu a D. Carlos, irá prometer democracia e pluralismo, respeito pela tradição, e julgamentos isentos para os derrotados. Uma banda tocará o Hino da Carta, esperando-se igualmente discursos de Toy, Lili Caneças e Betty Grafstein, duquesa de Mântua.
Segundo nos fizeram saber já, as primeiras medidas do novo regime serão a extinção da Guarda Nacional Republicana, substituída pela Guarda Real, a convocação de Cortes Constituintes e a nomeação dum governo de puro sangue azul, sendo o nome mais falado para o presidir o Marquês das Antas, D. Jorge Nuno. A aclamação oficial de D. Duarte II ocorrerá na Sé de Lisboa daqui a um mês, perante o clero, a nobreza, e os parceiros sociais.
Ainda esta noite o presidente deposto, Marcelo, partirá para o exílio, encontrando-se neste momento a tirar selfies com os militares que o detiveram. Perturbado, fala sozinho, e solta frases sem sentido, como comprar leite para os sem abrigo ou ter ainda trinta e sete condecorações por entregar. O ex-primeiro ministro António Costa, que se encontrava na Índia, em visita oficial, ainda apelou à mediação de Guterres e do videoárbitro, mas reconheceu já a derrota. É impressionante o ambiente nas ruas, o povo exulta, grupos de forcados de Salvaterra, membros do grupo Stromp e até José Cid acorrem a celebrar o novo rei. Uma corrida à antiga portuguesa com pompa celebrará em breve este dia histórico, em que a velha nobreza e os marialvas estão finalmente vingados.
Refreadas as emoções, há que retomar a administração da coisa pública. Na quarta feira, o Conselho de Ministros irá reintroduzir o escudo como moeda nacional, com cotação em paridade com o bolívar venezuelano, e inúmeros dirigentes do PAN partirão para o exílio em Trinidad e Tobago, condenados a comer sandes de courato e febras durante a viagem. Ao deputado Ventura foi prometido um título de duque, e a nomeação como novo Intendente da polícia. Dois conhecidos líderes espirituais negros, Joacine e Mamadu, fugiram para um quilombo perto de Palmela, onde ainda hoje serão detidos e levados a julgamento, do Brasil voltarão exilados como Jorge Jesus, que será ministro do Desporto e feito Visconde de Flamengo.
Instalado na Pena, contemplando os seus domínios e as hordas de súbditos e turistas, D. Duarte II vai finalmente reinar no trono de Portugal. Viva o Rei! Viva o 1º de Dezembro! Antes Rei uma hora no Facebook que pretendente toda a vida!
Em breve num cinema perto de si.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Joacine, a sionista?


A deputada do LIVRE( hoje cada vez mais livre...),suposta lutadora contra o racismo e o colonialismo, acaba, paradoxalmente, por vir dar um contributo à disseminação de outros racismos mais dissimulados, como o sionismo, claramente assumido pelo Estado de Israel desde a sua fundação. Depois da abstenção no voto contra Israel a propósito dos ataques a Gaza, e de a sua primeira iniciativa parlamentar ser a proposta de transladação de Aristides Sousa Mendes para o Panteão (justíssima, mas, tendo o mesmo sido um generoso salvador sobretudo de judeus perseguidos), vem agora o elogio do embaixador de Israel em Lisboa, num texto entre o irónico, e uma arrogante intromissão nos assuntos internos nacionais, e pouco consentânea com o papel de um diplomata (ver PÚBLICO de hoje).

Decisivamente, Joacine a antiracista, é de raça! Não há contentor grande o suficiente, nem saias coloridas do Rafael para desviar as atenções e depositar tantos cacos...

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

25 de Novembro


O 25 de Novembro foi mais um evento na disruptiva história do PREC que a 25 de Abril de 1974 devolveu a liberdade ao povo português, desencadeando uma série de fenómenos enquadrados por falta de vivência democrática durante 48 anos e por Portugal, num quadro de Guerra Fria, se ter tornado palco para experimentalismos ideológicos, mais ou menos utópicos, que hoje, pousada a poeira, se viu terem sido explosivos, e poderiam ter feito resvalar o processo democrático ainda em fase de consolidação.
Para quem viveu o período, porém, a triunfarem os intuitos de ambas as partes político-militares em confronto, tanto poderíamos ter-nos tornado num regime populista de esquerda, caudilhista e terceiro-mundista, como um regime onde a esquerda teria sido eliminada, com retorno a situações de 24 de Abril. Prevaleceu o bom senso de Melo Antunes, de Costa Gomes, de Mário Soares, e também, não é de mais realçá-lo, de Ramalho Eanes, Otelo e Álvaro Cunhal, que, sabendo ler a conjuntura, puseram freio aos militares mais impulsivos, evitando o triunfo uma extrema direita vingativa.
Sem o bom senso de todos, o regime iniciado em 25 de Abril poderia ter soçobrado ali, espicaçado que foi pela maioria silenciosa spinolista em 28 de Setembro de 1974 e pelos raids aéreos contra o RALIS em 11 de Março de 1975. Contudo, em paz e pluralismo conseguimos chegar a 2 de Abril de 1976 e à promulgação duma Constituição democrática, a eleições legislativas e presidenciais livres e à normalização democrática. 
O 25 de Novembro foi o analgésico duma catarse de dezoito meses de explosão descontrolada, mas não resultou, felizmente, no resultado que alguns militares pretendiam, e que passava por eliminação dos partidos de esquerda e imposição duma visão segmentada do país e do regime.
Lembro bem esses dias, das manifestações dos SUV e do sequestro de Pinheiro de Azevedo e da Constituinte, do recolher obrigatório em Lisboa e da cisão politico–militar entre moderados e radicais. Mais que uma fação, triunfou a razão e o bom senso, e acima de tudo a democracia, que não sendo um sistema perfeito, é pelo menos o menos mau de todos.
Quem hoje escava num passado que não viveu, erguendo supostas bandeiras, sabe que o 25 de Novembro serviu para reiterar o 25 de Abril, e não para o enterrar ou desvirtuar. E a História é o que é, por muitas voltas que se pretenda dar para a maquilhar ou deturpar.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Todo o Tempo é composto de mudança



Estou triste. Partiu José Mário Branco, e com ele um pouco de mim também parte, como inexorável e cruelmente vão partindo muitos daqueles que anunciaram a madrugada redentora de Abril, e hoje ainda nos incentivavam relembrando só ser derrotado quem desiste de lutar. Esta notícia remeteu-me para esse tempo hoje a sépia de felicidade e de orgasmo colectivo duma geração que sonhou, e lutou.
Escutando-o, agora, recordo emocionado aquela  longínqua quinta-feira de Abril em que não houve aulas, e o "ponto" de Física foi adiado por causa duns militares estacionados no Terreiro do Paço. O meu avô telefonou a aconselhar que não saíssemos de casa, chuviscava, em dia cinzento, a televisão, silenciada, passou um episódio do Daktari. Contente por não haver “ponto”, aproveitei e fui ao barbeiro, onde corriam boatos sobre o sucedido, um golpe de Estado, asseverava o Taborda. Aos catorze anos, ignorava o que fosse tal, mas um dia sem aulas era motivo de festa.
No dia seguinte, achei a escola agitada. Acossado, o porteiro do D. Pedro V fora preso, informador duma tal PIDE, anormalmente, o Miguel, neto do Marcelo Caetano, não apareceu, o avô viajara para a Madeira na véspera. No sábado seguinte, depois duma avalanche de acontecimentos, e debaixo de chuva miudinha, subi ao Carmo, onde soldados com cravos nas armas e pendurados em blindados tiravam fotos com os populares. Lisboa, cinzenta e molhada, exultava de alegria. Na estátua do Rossio, guedelhudos invectivavam os transeuntes, apelando à sua prisão, agentes da PIDE, denunciavam, levando à sua detenção por populares acirrados, um tal Saldanha Sanches, de megafone na mão, clamava contra os traidores fascistas.
Em poucos dias, tudo mudou. O “careca megalítico”, de História, até ali sempre sorumbático, mostrava-se simpático e adepto da nova situação, opositor silenciado durante anos, rejubilava, receoso, o professor de Moral, esse, temia a anarquia. Embriagado pelas notícias da liberdade que de todo o lado choviam, animado por canções de protesto nunca antes escutadas, aos quinze anos, feitos entretanto, descobri mundos escondidos, os sons de José Mário Branco,  do Zeca, do padre Fanhais, de Luís Cília e Adriano Correia de Oliveira, na sala de alunos, manifestos policopiados e jornais de parede diariamente apelavam a RGA’s, onde se discutia tudo em acalorados plenários.
Nas semanas seguintes, o país transfigurou-se, a escola entrou em ebulição, os partidos dividiram as opiniões, os plenários foram sendo organizados, a democracia gatinhou, vendo os jovens a tornarem-se homens. Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade, prometendo escola para todos, a servidão enterrada, e um futuro a despontar por culpa duma manhã de Abril, em que para gáudio da turma não houve “ponto” de Física.
Passada a embriaguez desses dias límpidos, acreditei que para sempre haveria de viver num país livre, qualificado, progressivo, de baby boomers com vinte anos de atraso, mas a tempo ainda de apanhar o comboio. O futuro era azul cor de mar e verde melancia, só coisas boas poderiam vir, depois de anos de silêncio e mudanças bruscas. 
Foram tempos gloriosos. Comunicados policopiados, pichagem de paredes, oportunos e revolucionários “copos” no Bolero ou no Jamaica, para tudo acabar em olheiras no reconfortante Cacau da Ribeira.
Portugal mudou muito, entretanto,hoje já não há slows dançados nas garagens dos amigos ao som do Hotel Califórnia. Uma utópica alegria de rasgar caminhos nos uniu, e, apesar de madura, essa recordação sobrevive ainda, na nostalgia de amigos de Alex, a contas hoje com a tensão arterial ou com a próstata.Coexistiam Zeca, Pablo Neruda ou os Fisher-Z, perdidos nos esconsos das garagens, onde após lânguidos slows se prometiam amores eternos, e o nirvana do Shangri-La socialista. Foi no velho Hot Club que apanhei as primeiras “cardinas”, chamando princesa a uma desdentada, que por vinte escudos prometia felicidade à porta do Fontória. A vida era marcada pelos bares: o Archote, o Whispers, o Bolero, mais tarde o Jamaica, o Bora-Bora e o Charlie Brown, mais burgueses o Ad Lib ou os Stones, atrevidos, a Cova da Onça e o Pipodrom junto ao Coliseu, onde por uma moeda de vinte cinco escudos se espreitava pelo óculo  a Olga de Jurídicas, fazendo streaptease para pagar os estudos. Todos os rapazes da turma lá foram várias vezes, esbugalhando os olhos ante a visão celeste do corpo alvo da hoje ilustre advogada em Portimão.
Os anos passaram, a nosso modo respondemos à chamada do tempo, de sangue na guelra para as causas generosas, razoavelmente exigindo os impossíveis, pois só salvando o mundo nos poderíamos salvar. Salvou-se a memória, o orgulho de ter tentado, a certeza de não ter desistido.Hoje, como ontem, atrás de tempo, tempo vem, e todo o tempo é, e será sempre, composto de mudança. E José Mário Branco  foi um arauto dessa mudança, dos anos sessenta até hoje. Até sempre, Zé Mário!

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Por Sintra


Em espectral cenário, um tempo de deambulante passeio. Passeio sabendo a serra ao lado, milenar guardiã e larvar berço de lendas e histórias, de mouros e cristãos, visionários reis e viajantes, aristocratas e feiticeiros, espantados com o renovado verde, em presépio aninhando casas, palácios, fontes e miradouros. Em volta batem ritmos e matizes, surpresas e ilusões, alunos para a escola e funcionários para o serviço, senhoras para as compras e reformados para o jardim, agrilhoados contribuintes a pagar o dízimo ou utentes contando cêntimos para a conta da água.
Fugindo da selva de intrusivos carros e denodados arrumadores, deixamos os anzóis do Brancana e as apólices do Catarino, a garagem agora azul, depois dum passado negro, a Ideal e o prateado Faria, antes da Vila e dos skaters invadindo a Estefânea da Marrazes e Simões, do Tirol e Monserrate, dos chineses dos guarda-chuvas e velas, e também dos bancos, centros de usura predadores dos fracos.
O Carlos Manuel do povo fechou, aristocrático vestiu roupa nova, casa de ópera e Cadaval, desaparecida plateia de filmes a cinco escudos, de John Wayne e Cantinflas. E também de Maria João Fontaínhas e Alvim, operários da cultura num tempo em que não era proibido sonhar.
No trilho da vila, chamado pelo silvar ventoso e perfumado da serra, lá está a Correnteza, miradouro e varanda, parapeito de amores e de pombos, do Larmanjat ninguém já lembra, ondulante e inseguro. Como sempre, chegam turistas e mirones, a descobrir o éden terreal, e rostos de muitas estações, baptizados e funerais, festas do Cabo e da vila, cúmplices envelhecendo com a serra, fria no Inverno e cacimbada no Verão.
A viagem espectral chega ao momento zenital.Aproxima-se o burgo velho, e o som cadente dos cavalos, pretérita lembrança de reis e burgueses, dos Maias e do Alencar, de Garrett e Zé Alfredo, Anjos Teixeira e M.S.Lourenço. Vernacular, o torreal município é porta de entrada e fronteira, o leão de pedra o guardião, palpitantes os sentidos à vista da miríade encantada, a curva do Duche, o canelado odor da Sapa, o Valenças e as mansões, a água da fonte mourisca, jorrando, cristalina. E o Grande Maior, da feiticeira Llansol, as camélias de Nunes Claro, o vulto do Carvalho da Pena cavalgando, vetusto druida da serra e dos lagos.
Ofegante, chega enfim a vila, utópico altar de poetas, lusitano reino dum palpável Parnasso. Não se vêm, mas pressentem-se, Rui Mário, Zé do Sabugo, Paulo Campos dos Reis, generosos actores de muitas gerações, as danças medievais e os bailes das camélias,bem como os vitoriosos patins do Raio e do Cipriano. E gulosos se saciam os sentidos na Periquita, absorvendo segredos de açúcar quais orgias do paladar, à sombra tutelar do Paço.
Apurados os sentidos, a escadaria enfim, para hipnotizados mirar o castelo e invisíveis ogres lançando caldeirões de azeite, e catalépticas bruxas invadindo a noite em invisíveis vassouras, e escutar os passos dum rei prisioneiro, e o ecoar das festas joaninas, Camões lendo para um rei alucinado, a condessa d’Edla e Viana da Mota acorrendo ao repicar do sino em S. Martinho.


Invisíveis faunos e visíveis heróis, incensados e perdidos, esperançosos e idealistas tomam então lugar no camarote do Tempo, com escolta da Nação dos pássaros, as camélias e as fontes todos abraçam, anunciando um lauto festim dos sentidos, à sombra da argêntea Lua.Sintra, eterna, única, e nunca por demais cantada.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Júlio Diniz, hoje




Há 180 anos, a 14 de novembro de 1839, nascia no Porto Joaquim Gomes Coelho, que passou à História como Júlio Diniz. Prematuramente vítima de tuberculose, que o levou aos 31 anos, dele nos ficaram clássicos da literatura portuguesa como A Morgadinha dos Canaviais, Uma Família Inglesa, Os Fidalgos da Casa Mourisca ou As Pupilas do Senhor Reitor. Júlio Diniz é hoje um nome secundarizado e esquecido, apesar dos frescos literários com que nos aproximou duma sociedade rural e nortenha, com o seu cunho pueril e de apego a tradições e valores. Talvez por isso esteja para muitos datado, como o estão Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Fernando Namora, João Araújo Correia ou Miguel Torga, arautos dum Portugal de serranias, aldeias pacatas e famílias obedientes e crentes a Deus.
Ler Júlio Diniz, para mim, urbano e ávido do que vinha de fora do rincão, nesses atónitos anos setenta, foi beber e descobrir um Portugal desconhecido, que em Júlio Diniz e noutros autores ia da faina no Douro às lavadeiras de Caneças, do Alentejo de  agrários e gaibéus às terras do Demo, graníticas e de ventos silvantes, e embrenhar-me num linguajar e hábitos longe dos da pequena burguesia das Avenidas Novas, onde esse mundo chegava apenas por via de alguma criada que vinha servir para casa dos meus avós ou pela visita de algum primo afastado, carregado de couves, queijos e galinhas a cada visita, exótica e colorida, mas ao mesmo tempo autêntica e generosa.
Ainda hoje relembro esses livros da minha infância, hoje considerados “clássicos”, mas distantes dos (poucos) leitores que ainda sobram. Já não há nas serranias de Portugal nem morgadinhas, nem pupilas, nem reitores, hoje só “territórios de baixa densidade”, desertificados e envelhecidos, como as pedras milenares deste velho Portugal. É pena.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Dizer não antes de dizer sim


Não queremos o lítio em Montalegre, não queremos a barragem do Fridão, não queremos a dragagem no Sado, não queremos a Torre das Picoas, não queremos o prédio no quarteirão da Portugália, não queremos o aeroporto do Montijo (nem o da Ota, ou o de Alcochete) , não queremos o petróleo em Aljezur, não queremos carne de vaca, não queremos o glifosato. Como no passado não quisemos as Torres das Amoreiras (hoje Prémio Valmor) a Expo 98, o Euro 2004, o CCB, a Casa da Música, o Túnel do Marquês, o Túnel do Marão ou o Museu dos Coches. Ainda gostava de saber o que é que se faz ou fez em Portugal  que seja unânime ou desejado por todos.

Recordo aqui um trecho do final de “Os Maias”, em que, passeando por Lisboa, Carlos da Maia e João da Ega criticam o então novo obelisco dos Restauradores, que imitava Paris , mas para pior:
"- De modo que isto está cada vez pior...
 - Medonho! É dum reles, dum postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão que comemos!"
E hoje? Alguém ousaria retirar o obelisco dos Restauradores? Como desde sempre, continuamos a reclamar do falso e do postiço, contudo, só até que a memória se desvaneça, e faça do presente o passado do futuro. 
Gritou-se contra o fim do Passeio Público, em Lisboa, hoje alguém ousa gritar contra o fim da Avenida da Liberdade? Clamou-se por fazer do convento onde em pleno Chiado se instalou o Grandella, mercantil boteco em espaço espiritual, alguém ousou não repor o Grandella depois do incêndio de 1988? Como escreveu o Padre António Vieira, “Não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba.”
Tudo é efémero. Omnia est unum diem durantia!


sábado, 9 de novembro de 2019

Já não há nadadoras em Berlim



Recordo uma visita a Berlim em 1980, ainda jovem estudante, e a impressão que me fez, mais que o muro, a diferença abissal entre uma cidade viva, colorida e cosmopolita, e o seu lado oriental, cinzento, sem lojas ou néons, imperial, mas parada no tempo. Só o Checkpoint Charlie, twilight zone de dois mundos, permitia a experiência duma visita ao socialismo, para mim à época tudo menos aquilo que se me apresentava. Nesse tempo, a RDA, para mim, eram as nadadoras musculadas dos Jogos Olímpicos e os pares da patinagem artística, conquanto uma certa esquerda vendesse aquele mundo como o produto do sucesso da economia planificada, no quadro do COMECON e do Pacto de Varsóvia.

Essa parte da Alemanha, talvez por muitos anos ter vivido isolada e ter sentido a dificuldade da integração face a um ocidente mais próspero, é a que hoje mais rejeita os estrangeiros, que sente como melhores recebidos que eles próprios após a unificação, e onde prosperam partidos xenófobos como o AfD.

Trinta anos depois, permanece por saber qual o futuro da Alemanha europeia, gorados que foram duas vezes no século passado os sonhos duma Europa alemã. Quando outros querem erguer muros, é no entanto bom celebrar a queda de outros, se não totalmente nas mentalidades, pelo menos na geografia.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O regresso de Calisto Elói

O deputado do Chega, André Ventura, quer ser o novo justiceiro da politica portuguesa. Depois de alguns anos a perorar sobre o Benfica e sobre casos de polícia na pantalha da CMTV, que o acobertou, usando do tempo de antena gratuito que a Cofina lhe deu, chegou a um assento em S. Bento, qual novo Calisto Elói dos indignados com a criminalidade, na defesa estoica dos valores nacionais, na aversão à ciganada, e no incitamento às galés perpétuas para a escória ignóbil, assim captando a aceitação salivante da populaça que exige sangue e fogueiras, dando voz (vox?) aos taxistas irados, aos velhos saudosistas da leitaria de bairro ou aos utentes  suados dos comboios suburbanos ao fim da tarde.
Sob a capa da Justiça, o novo indignado de colarinho branco cavalga a vox pop da espuma dos dias, salivando contra “eles”, mas com uma nuance em relação à direita musculada e exuberante: Ventura tem aquele ar de filho de família que à tarde vai lanchar com a avó, vai à missa, e grita pelo Benfica, português médio e bom pai de família. Ouvindo-o, ninguém o leva preso, ali não se vêm matracas, tatuagens guerreiras, ou cabeças rapadas, tudo é elegantemente bourgeois, a firme voz da razão e o clamor pela justiça, verdadeiros, tardiamente descoberto como o mais recente Nun’Álvares da Pátria. E tem tudo para dar certo: urbano e educado, doutor em Direito, benfiquista indefetível, em cruzada contra os corruptos, a morosidade dos tribunais ou a invasão dos migrantes berberes, sequiosos do RSI. Num tom sereno e cativador, quem verá ali um Fuhrer da Segunda Circular ou um sanguinolento Torquemada de gravata?
Tudo espremido, Ventura decidiu cavalgar a notoriedade que uma televisão tablóide lhe proporcionou, com exposição diária na pele de provedor dos indignados. Lançado o isco, alguns morderam. Veremos se ao fim de 4 anos, qual Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, a lapidar personagem de Camilo em "A Queda de um Anjo", não veremos o deputado Ventura rendido às prebendas do regime, conquistado que foi o assento (mesmo sem ter sido necessário cortar o corrimão) no conforto de S. Bento.

No Dia Mundial do Urbanismo



Hoje é o Dia Mundial do Urbanismo, data instituída em 1949 pelas Nações Unidas, com o objetivo de promover a integração entre a Comunidade e o Urbanismo, e criada em 1934 pelo engenheiro argentino Carlos Maria Della Paolera, então diretor do Instituto de Urbanismo da Universidade de Buenos Aires, e redigiu um manifesto intitulado “O Símbolo do Urbanismo”.
O Movimento moderno na arquitetura e no urbanismo pregava que a atividade de planear as cidades era matéria de ordem eminentemente técnica, e que, portanto, possuía a neutralidade política inerente ao trabalho científico. Tal pensamento formalizou-se especialmente com o trabalho dos Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna, e com a Carta de Atenas.
Entre 1900 e 1930, muitas cidades nos Estados Unidos introduziram comissões de planeamento urbano e regras de zonamento. Um dos mais famosos planos de revitalização urbana desse período foi o Plano Burnham, que revitalizou uma grande parte de Chicago.
Nos tempos modernos, veio a assumir especial acuidade a necessidade de Planeamento, e como categoria maior do mesmo, e entre nós desde a década de 80, os Planos Diretores Municipais. 
Um plano diretor mostra um território como ele é atualmente e como deverá ser no futuro, tendo como objetivo principal, fazer com que a propriedade urbana cumpra a sua função social, com o atendimento do interesse coletivo em primeiro lugar, em detrimento do interesse individual ou de grupos específicos da sociedade.
Em Sintra, território que cresceu desordenado, e onde o planeamento chegou depois do desastre consumado, urbanismo significou durante os últimos anos uma multiplicidade de realidades: o casuísmo sem planeamento, a cacofonia decorrente de conflitos entre uma pluralidade de entidades que se arrogam tutelar o território e a pressão imobiliária, conduzindo a que nos anos 70 a 90 se tivesse produzido a tempestade perfeita, facilitada pela procura habitacional facilitada por crédito fácil e uma economia dinamizada pelas obras públicas e a integração europeia, e a proximidade a Lisboa, fazendo do fator localização o cerne dum urbanismo de renda fundiária e não de planeamento urbano coerente.
Em minha opinião, para um Urbanismo virtuoso, deveria em cada cidade o  PDM ser objeto de revisão em permanência e não apenas nas datas burocraticamente previstas,(aliás, raramente respeitadas) adequando-os à dinâmica da economia local e num quadro inter-regional, corrigindo os erros dos PDM de 1ª geração Nessa perspetiva, importante será um quadro geral em que o paradigma seja a captação de investimentos sustentáveis e geradores de qualidade e receita qualitativa, através dum quadro urbanístico, ambiental e fiscal claro, supervisionado por uma Agência Municipal de Investimentos dinâmica e com poder real de facilitação entre serviços; fazer coincidir as ambições de gestão do território das várias entidades num mesmo espaço categorial, seja no PDM, PP’s ou outros instrumentos vinculantes para a gestão do território ;promover cartas de redes que permitam integrar e orientar as intervenções dos fornecedores de serviços públicos e assim planear as suas atividades, bem como reforçar o papel de autoridades locais de transportes e acessibilidades; e agilizar o processo da elaboração de planos de pormenor que estariam em atualização permanente, abertos á sociedade e ao escrutínio dos destinatários duma verdadeira Democracia do Território, adotando critérios de governação que deixem ao PDM um papel de estratégia e a planos mais concretizados a ação e intervenção necessários. O PDM deve partir do conceito de Direito ao Território e não de Direito à Construção, onde se pondere a possibilidade de elementos urbanos em espaços rurais, pois o conceito de espaços delimitado é demasiado estanque e redutor, deixando de fora os direitos dos proprietários rurais, suas famílias e atividades económicas (extinguindo-as, na prática), se defina quais e o que são áreas urbanas programadas, reduzindo as áreas urbanizáveis e criando um capítulo para análise do mercado imobiliário e das mais valias expectáveis com as intervenções previstas e permitidas.
Um Plano Diretor de 2ª geração deve definir um quadro prático de promoção da reabilitação urbana e da habitação, tendo em conta as suas carências efetivas, os agricultores, as segundas residências, mapear as zonas de risco e as dos recursos naturais (zonas de incêndio, cheias, sismos, energia), definir a rede ferroviária, tão esquecida nos planos anteriores, e agilizar ao nível autárquico a gestão, enquanto competência própria, das áreas de servidão, de RAN e REN e de especial proteção.
Deve, enfim, apostar num paradigma de participação, de todos e para todos, salvaguardando as garantias dos particulares, a articulação com as entidades e clarificando as competências das autarquias, enquanto entidades de maior proximidade na gestão do território.
Com tal quadro mental se pode e deve apostar num novo Urbanismo, que atento às realidades de Espaço e às circunstâncias do Tempo, crie cidades inclusivas para habitantes felizes.


sábado, 2 de novembro de 2019

Joacine


Discordando na maior parte das vezes de João Miguel Tavares, não posso deixar de acompanhar a reflexão que hoje faz no PÚBLICO sobre a eficácia da forma como a deputada do Livre poderá levar avante o seu mandato.
Um parlamentar é eleito para (supostamente) fazer passar mensagens, marcar posições, e divulgar agendas, objectivos que com Joacine Katar Moreira, na medida em que é deputada única do seu partido, se perdem na sua complexa e arrastada oralidade, que leva a que quando acaba uma frase ninguém se lembra de como começou. Invocar que quem contesta esta realidade é racista e despreza os direitos de quem sofre de deficiências (neste caso chamar.lhe-ia disfuncionalidades) é menorizar o problema, que, quanto a mim, só prejudica o próprio Livre.
Não sendo eleitor desse partido, respeito a riqueza para o debate de ideias que o mesmo trouxe, pela voz e mão sobretudo de Rui Tavares, mas, receio muito que de futuro o debate em torno dos pró ou contra Joacine virão a relegar para segundo plano as ideias do próprio Livre. Pode ser que com a continuação a vertente nervosa provocada pelos microfones e pelos holofotes diminua.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

A justiça tablóide

Tirando o futebol e o Brexit, as televisões estão dominadas pelos reality shows judiciais, com heróis, vilões, advogados, juízes e jornalistas a intervir, não da casa mais vigiada de Portugal, mas dos tribunais mais devassados de Portugal. Quem matou Luís Grilo?Donde vem e a quem pertence o dinheiro de Sócrates? Quem acedeu aos mails do Benfica? Só Deus e a Tânia Laranjo é que sabem. A tabloidização dos noticiários de processos mediáticos só têm comparação com as inócuas e inúteis "conferências de imprensa" de antevisão dos jogos ou os programas de tagarelice desportiva de domingo e segunda feira.Pena que para ver algum programa interessante se tenha de navegar para outras plataformas e hoje sempre com a prévia necessidade de fazer o fact check do que se vê e ouve, não há informação sem confirmação, o pântano noticioso permite todos os populismos, a verdade e o boato, o rumor e a mentira dissimulada. Quase apetece relembrar os ingleses nos dias perturbadores da II Guerra Mundial."No news? That's good news!".

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Desenterrar a Memória

Decorre hoje no Vale dos Caídos a exumação de Francisco Franco, o ditador que governou Espanha durante 36 anos, após uma guerra civil fratricida e sanguinária. O lugar dos tiranos é longe dos altares da glória, e nunca num local construído com o sangue dos que aprisionou e mandou matar. Peca só por tardia, pois, esta exumação, que ao mesmo tempo aviva demónios do passado, hoje de novo de rosto descoberto, como a emergência da extrema direita em Espanha o demonstra. O povo, porém, é sempre o supremo, o verdadeiro, e o único Herói



segunda-feira, 21 de outubro de 2019

E um Museu da Caricatura em Sintra?

Foi no século XVII que o humor apareceu na imprensa, fazendo veicular a crítica satírica através de folhetos de cordel, papéis volantes, etc, sendo os desenhos que surgiram nesta época adaptações de trabalhos estrangeiros que procuravam criticar o sistema político nacional, uma vez que a arte da gravura erudita não tinha raízes na tradição artística portuguesa. O único exemplar de sátira erudita portuguesa da época foi criado por Viena Lusitano, e os focos de arte popular concentraram-se nos desenhos satíricos como expressão do sentimento de revolta contra o poder.

A partir do séc.XIX a produção jornalística e a sátira flutuaram ao sabor da liberdade de expressão e da intolerância do poder. Em meados de 1850 surgiram os primeiros jornais com ilustrações satíricas: «O Patriota», «O Torniquete», «Demócrito», «Duende», etc. As caricaturas de teor político surgiram como resposta à repressão, à ditadura, ao despotismo e na maior parte das vezes eram anónimas ou assinadas por pseudónimos.

Foi assim, no anonimato, que nasceu a caricatura nacional e os trabalhos daquele que é considerado por muitos o primeiro caricaturista português: Cecília.Com o desenrolar do século, os ânimos violentos do desenho acabaram por dar lugar a uma nova concepção filosófica de arte, mais preocupada com a evolução estética. Manuel Macedo e Nogueira da Silva foram os principais responsáveis por este virar de página na vida da caricatura em Portugal, e o seu grande expoente Rafael Bordalo Pinheiro.

Em Sintra ou de Sintra foram (e são) alguns deles, de relevo no panorama nacional, como Leal da Câmara, Stuart Carvalhais e Vasco de Castro, ou mais locais, como José Alfredo Costa Azevedo, Maria Almira Medina, Mestre Alonso, e contemporaneamente Luís Cardoso (Cardosálio) ou Rui Zilhão, reunindo uma obra que merece uma leitura de conjunto e homenagem pelo contributo com que através dela conta a história de um certo tempo, e como o mesmo foi ou é visto de forma acutilante e incisivo, fazendo mais com uma imagem que muitas vezes com mil palavras.

A existência de um espaço dedicado a esta valência artística, bem como à banda desenhada e ao cartoon poderia ser duplamente a forma de homenagear estes e outros artistas, bem como de a partir daí se criar um centro artístico dedicado às artes do Traço, com realização de workshops, exposições, conferências, etc, numa vertente integrada com a rede de museus e galerias municipais existente, para tanto importando factores como acessibilidade, localização, empenho da comunidade local e artística e ligação com os promotores turísticos e as escolas. Aqui fica uma ideia para lançar à comunidade sintrense e aos decisores, numa lógica de valorizar o que é nosso e homenagear aqueles que de uma forma ou outra são nossos também.

Abaixo, alguns trabalhos de autores sintrenses (cá nascidos ou que por cá andam ou andaram):
 Leal da Câmara
José Alfredo Costa Azevedo
(retrato de José Bento Costa)
Stuart Carvalhais (auto caricatura)
Maria Almira Medina
(retrato de Florbela Espanca)
 Mestre Alonso (auto caricatura)
Vasco
(caricatura de Mário Soares)
 Luís Cardoso (Cardosálio)
 Rui Zilhão
(caricatura de Salvador Dali)