terça-feira, 15 de agosto de 2017

Welcome to India!



Nos setenta anos da independência da Índia, e em dia feriado, ocasião para relembrar o meu primeiro contacto com esse vasto país há cerca de dezoito anos. 
Depois de um voo de quatro horas desde Hong Kong, o periclitante avião da Air India aterrou no Indira Gandhi International Airport. Após a experiência do Aeroporto de Hong Kong, o moderno Kai Tak, numa ilha artificial construída perto de Chek Lap Kok, a aventura de pouco mais de quatro horas até Nova Deli mostrou-se decepcionante: passageiros tirando os sapatos e dobrando as pernas sobre os assentos, um entediante filme de Bollywood com enredo e cantores pimba, caril de frango logo pelas seis da manhã, para cúmulo, a casa de banho de bordo avariara e estava atolada em trampa nem meia hora depois que o avião descolara.
Depois das verdes selvas do Camboja e Vietname, a aridez castanha do Rajasthan foi-se desenhando lá em baixo, os casebres periclitantes e a ausência de estradas ou algo que se parecesse antevia uma realidade bem diversa da pujante China onde estivera três semanas, em progresso e modernizada. Tocado o solo, logo um bando de velhas com saris azuis e rosa se precipitou para a porta. Deixei-me estar, não tinha pressa, um guia da agência deveria esperar-me com um carro para me acompanhar nos dias que iria estar em Nova Deli.
Olhando pela janela, o cenário era pior do que o esperado: o aeroporto da capital da Índia era um barracão de madeira a lembrar a Rodoviária Nacional em Castro Verde, nos anos setenta. Nada de “mangas”, pista esburacada, os passageiros tinham de ir pelo seu pé para a zona da alfândega, sob um calor forte e seco. Dentro do barraco a que chamavam aeroporto, impotentes ventoinhas de plástico faziam  por atenuar o calor abrasador, o ar condicionado ainda não chegara àquelas bandas. Dezenas de indianos de bigode e cabelo escuro oleoso deambulavam carregados de embrulhos enrolados em cordas, muitos com barrigas proeminentes, exterior sinal do excesso de tandoori. Comecei  a ficar com náuseas e só esperava que o hotel de cinco estrelas que escolhera fossem cinco estrelas mesmo, e não cinco estrelas da Índia. Aquela viagem fora um fetiche romântico e exótico de entusiasta pela História, só para as vacinas passara duas horas no Egas Moniz semanas antes, pelo que a expectativa era grande.
Entre setas que tanto mandavam virar à esquerda como à direita, lá cheguei à zona de recolha de bagagem, um indiano desdentado e sorridente descarregava malas de mais de vinte pessoas, quase todas trouxas de roupa e material informático adquirido em Hong Kong, pelo aspecto encomenda de alguém, pois o indiano que o recolhia não parecia distinguir um computador dum micro ondas. As minhas  malas, duas, levaram vinte minutos a aparecer, uma cinzenta grande, com a roupa, e outra azul onde levava os souvenirs adquiridos na China: um conjunto de guerreiros terracota adquiridos em Xian, um dragão trabalhado em jade, miniaturas de pagodes e alguma roupa contrafeita adquirida em Xangai, boas imitações de uma mala Louis Vuitton e chás vários, para oferecer aos amigos. Ao passar na passadeira, a mala azul foi marcada com um giz branco por um polícia com odor a caril, que ia marcando aleatoriamente algumas malas, aí de cinco em cinco, para controlo na zona da alfândega. Peguei nelas e no passaporte e meti-me na fila, era o único português, e europeu, segundo me pareceu.
Chegada a vez, mostrei o passaporte, o visto estava em dia, para 6 meses. Já me preparava para seguir quando um polícia com bigode escuro e barba mal aparada mandou abrir a mala azul. Lá seguiam os guerreiros terracota e o dragão de jade, alguma roupa da manhã que não me apetecera arrumar na mala grande e o China Morning Herald. O polícia, com ar de Poirot asiático, pegou num dos guerreiros, mirou-o cirurgicamente, e sondou com ar sério, num inglês com sotaque arrastado:
-What’s this?- perguntou, com ar de quem detectara a jóia da coroa ou o ceptro do marajá de Jaipur. Descontraído mas saturado do calor e do cheiro a caril apressei-me a explicar, em inglês:
-Souvenirs. Venho da China, de férias, são coisas para os amigos, vou ficar uma semana. O trivial, sabe: Deli, Jaipur, Taj Mahal, o Triângulo Dourado….
O polícia colocou um ar grave e meneou a cabeça, estava só e o passageiro seguinte a mais de três metros:
-Hummm… não sei… não será roubado? É preciso licença para entrar com isto na Índia!- pareceu desencantar na altura. Nunca tal escutara, eram meras estatuetas das que se vendiam às centenas nas feiras  de Xian e Beijing.
-Pode crer, são souvenirs. Onde está escrito que é proibido?
O polícia chegou perto, e, baixando a voz, abordou com voz complacente:
-Bom… digo-lhe o que vou fazer. Você dá-me 50 dólares, e eu, para provar a  minha boa vontade para com sahib, deixo-o ir. Se não…
Pasmei, o polícia “fazia-se” a uma propina. Olhei em volta, nenhum europeu, estava entre a espada e a parede. Tentei refilar, mas, acabado de chegar e sem conhecer as praxes locais, saquei de 50 dólares, enfiei-os no passaporte e entreguei ao polícia, que, sorrindo, discretamente surripiou a nota, meteu-a no bolso e carimbou o passaporte, não sem desejar um sonoro “welcome to India!” que danado já mal ouvi.
Era demais! Bem me haviam avisado, países do terceiro mundo, mas logo a polícia, e ainda no aeroporto! Lá fora deveria estar um guia com um Tata para me levar ao Taj Palace, acelerei o passo suando de raiva a caminho da saída. Poucos passos faltavam para transpor a porta, suja de milhares de dedadas e rangendo por falta de óleo, outro polícia, quase sósia do primeiro, chamou-me, pedindo os papéis e que abrisse a mala azul, a marca do giz ainda recente alertara para a mala, era supostamente suspeita, fosse lá porque razão fosse. Ruborescido, abri e lá repeti que não, não ia fazer negócio com as peças e que os malditos guerreiros eram para oferecer aos amigos, “souvenirs, bloody souvenirs, only, understand?”.
Com uma calma de jumento e enrolando o bigode, o polícia colocou um ar clemente e lá repetiu o “formulário” de boas vindas à Índia:

-Bom, digo-lhe o que vou fazer….- espumando, lá saquei de mais 50 dólares, logo correndo para a porta antes que o dinheiro acabasse e outro zeloso funcionário me quisesse aliviar a carteira com mais um fraterno welcome. Não há como o turismo para aprofundar a relação entre os povos… Depois, o fascínio com os contrastes da extrema pobreza com ratazanas veneradas como deusas, os esgotos a céu aberto e a espectacularidade do Taj Mahal, o profundo Rajasthan e a parafernália de Mumbai, tudo terminando no longo palmeiral a sul de Kerala onde Vasco da Gama, sem malas nem souvenirs chegara hà mais de quinhentos anos. E pronto, é feriado, e vou ouvir um pouco de Ravi Shankar a recordar o pôr do sol de Goa, os búfalos de Agra e os chás de Udaipur.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Parabéns, Rui Mário!



Conheci o Rui na Primavera de 2005 nas Caves de S. Martinho, mítico café de Galamares, hoje fechado, onde um mês antes nascera a Alagamares, sob o impulso de 46 entusiastas. Procurávamos quem declamasse poesia num evento de apresentação da nova associação, após um dia de actividades que envolveria visita a Monserrate e jantar, e alguém nos falou dum grupo de jovens actores, entre eles o Rui Mário e o Pedro Hilário, músico e inseparável companheiro, que logo se disponibilizaram para o efeito.
Do Rui retive logo a imagem dum ser apaixonado pelo seu trabalho, pela representação como dádiva, e do teatro como palco de vida, e nasceu uma amizade feita de diversas partilhas, duma forte ligação pessoal e do Tapafuros com a Alagamares, vertida nas noites de poesia no 2 ao Quadrado ou no Legendary, nas cinco oficinas de teatro por si orientadas para a Alagamares, das colaborações sempre pro bono que nunca nos recusou, de modo a considerá-lo não só um grande amigo mas um compagnon de route, fosse nos eventos na penumbra da Regaleira, nos bares e palcos de Sintra ou nas longas noites de conversa mole e líquida…
Sintra tem os seus ícones históricos, mas também formiguinhas laboriosas que vivem fazendo Cultura e fazem Cultura vivendo. E nos últimos anos, com Rui Mário, angustiado Ser mas seguro Mestre dando instruções e atento aos detalhes, (criar sonhos também é feito de muitos pesadelos), invisível arconte e alquimista na noite escura, atrás das árvores da Regaleira ou do Parque da Liberdade conduzindo aflitos mortais na valsa lenta de Ser/Fazer Teatro, colocar máscaras e construir sombras, convocando para a grandeza das fragilidades que só o Teatro, vivo e próximo, cúmplice e agrilhoante permite, assim invadindo e alimentando públicos, ávidos e fáceis no aplauso umas vezes, avaros na presença ou no incentivo outras. Com Rui Mário, o teatro é a Vida- um libelo de resistência, a sobriedade da loucura, a poção do druida que a todos tonifica e fortalece.
Ontem como hoje, o sonho continua! Parabéns, Rui!





quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Aura, o barulho das luzes




A realização do festival Aura em Sintra, de 10 a 13 de Agosto, suscita para lá do espectáculo visual e da animação de rua uma reflexão sobre a luz e a sua (omni)presença por vezes despercebida no nosso quotidiano, seja enquanto elemento estético, seja enquanto metáfora, por oposição às trevas.
Filosoficamente, a Luz tem uma conotação positiva.Para Heráclito, o fogo era um princípio de purificação e de geração de poder. Zeus, rei de todos os deuses, tem um nome cuja etimologia indica a palavra Dyeus, significava “luz”, “brilho”, “luminosidade”, “dia” ou “céu”. Antigas crenças, provenientes da Pérsia e da Babilónia ligavam o destino dos mortos com as estrelas do céu e com a sua luz, brilhante ou baça, segundo a ventura de cada pessoa. Em Platão, assim como a luz do sol torna visíveis os objetos materiais, a luz do Bem torna as Formas inteligíveis e visíveis aos olhos da mente. Na alegoria da caverna, o nosso mundo é colocado em contraste com o mundo real e perfeito das formas pela analogia com o sol. Os homens presos na caverna podem ver somente as sombras projetadas nas paredes pela iluminação do fogo externo sobre os objetos que passam pelo lado de fora. Neste contexto, a filosofia representava uma ponte pedagógica que serviria para que esses homens pudessem passar, gradualmente, da completa obscuridade para a luz do sol que permitiria o conhecimento verdadeiro da realidade. Criou-se, por conseguinte, o problema filosófico que consiste na caminhada das trevas para a Luz e da ignorância para o conhecimento. Lembre-se Descartes, e a sua ideia de que a luz natural da razão ilumina os objetos que podem ser conhecidos clara e distintamente, ou a força exercida pelo pensamento iluminista na filosofia contemporânea, período aliás conhecido como século das Luzes.
Já no plano da realidade palpável, a luz desde há muito suscita problemas estéticos e ambientais, muito se reflectindo hoje sobre a sua correcta ou má utilização, bem como da poluição ocasionada pela luz excessiva que interfere nos ecossistemas, causa efeitos negativos à saúde, ilumina a atmosfera das cidades, reduzindo a visibilidade das estrelas e interferindo na observação astronómica. Este tipo de poluição é considerado um efeito colateral da industrialização, resultando da má utilização das luzes das casas, dos anúncios publicitários, da iluminação viária e sinalização aérea e marítima, bem como todas as fontes artificiais de luz, o aumento crónico e temporário da iluminação seja de edifícios, ruas, barcos de pesca, luzes de segurança, veículos ou plataformas petrolíferas.
Alguns processos naturais só podem acontecer na escuridão, como o repouso, a predação ou recarga dos sistemas. Por esta razão, a escuridão possui importância igual à da luz do dia. A poluição luminosa pode confundir a navegação animal, alterar relações entre presas e  predadores e afectar a fisiologia dos animais. O aumento da claridade do céu à noite representa o efeito mais visível, e os astrónomos já o reconhecem. Numa escala global, aproximadamente 20% de toda a electricidade utilizada é no período da noite. O produto final da iluminação eléctrica gerada pela carbonização de combustíveis fósseis é a descarga dos gases do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global e pela exaustão dos recursos não renováveis.
Para além de ser prejudicial para os animais nocturnos, migratórios ou em voo, o efeito da luz na forma de fogo ou de lâmpadas atrai as aves migratórias e não migratórias durante a noite, e tem sido utilizado como uma forma de caça, já que a desorientação das aves que usam o horizonte como orientação é interrompida pela claridade. A luz artificial provoca graves efeitos nas tartarugas que procuram locais para postura e nas crias, que têm que encontrar o mar. Muitos estudos mostram que os peixes evitam fontes de luz branca, e existem espécies que são atraídas pela luz, o que é utilizado para os apanhar, dada a adaptação dos olhos dos peixes a um ambiente escuro e possíveis danos nos olhos devido a luzes mais brilhantes. Na aquacultura do salmão, a luz que se encontra submersa aumenta a profundidade de natação e reduz a densidade do salmão do Atlântico em jaulas de reprodução.
Devido ao facto de os oceanos possuírem menos fontes de luz artificial comparando com ambiente terrestres, o efeito e alcance de uma única fonte é muito mais elevado. Como consequência destas circunstâncias, as aves marinhas são altamente atraídas pelos faróis das plataformas e podem ficar directamente aleijadas ou morrer devido ao efeito de armadilha da luz que faz com que as aves circulem à volta da fonte de iluminação, reduzindo as suas reservas energéticas e tornando-as incapacitadas para alcançar a costa mais próxima ou diminuindo a sua habilidade para sobreviver ao inverno e à reprodução.
Sistemas de iluminação inadequados estão relacionados a diversos problemas de saúde. A iluminação noturna pode causar problemas de sono, depressão e cancro. O efeito atrativo que a luz exerce sobre os insetos também tem consequências sanitárias. Insetos transmissores de doenças tais como malária ou a leishmaniose podem ser atraídos por luzes e assim aproximar-se de populações humanas.
Para minimizar os efeitos negativos da iluminação artificial, são necessárias novas estratégias de iluminação. A luz tem que ser usada de um modo preciso e as regulações devem ser implementadas através de leis. O senso comum diz que ambientes urbanos mais iluminados são mais seguros, por isso, gasta-se muito com a iluminação pública. Porém vários estudos indicam que a iluminação pública, quando mal planeada, pode ser mais maléfica que benéfica. As lâmpadas ofuscam os olhos das pessoas, permitindo que os criminosos que se escondem em locais que não são diretamente iluminados não sejam vistos. Ou seja, mesmo que as pessoas tenham uma sensação de segurança maior em ambientes bem iluminados, isso não quer dizer que elas realmente estejam mais seguras.
Enfim, todo o mundo da Luz está para urbanistas, planeadores e decisores ainda muito às escuras, e não entrou a sério da forma de construção das cidades. Para já, com o Aura, teremos luz em Sintra por estes dias, ela que já é a Cynthia promontorial donde atlantes poetas sempre partiram em busca da Luz, e para se reflectir, quiçá, sobre o barulho das luzes.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Querido mês de Agosto




Com o país a banhos, rodeado da fumaça dos incêndios, e a aproximação do período de campanha para as autárquicas, em Sintra anda-se a passo de caracol e os turistas chegam aos milhares, logo cercados pelos vendedores de visitas a caminho dos palácios idílicos por estes dias mais parecidos com o metro de Tóquio. O velho burgo mexe, rendido aos alojamentos locais, wine bars e caravanas de tuk tuk, serpenteando pelo delicious Edén, por ora Suplicious Hell. Nos quarteis generais dos partidos, tudo se prepara para mais uma saison de febras, sardinhas e discursos épicos sempre muito zangados com os adversários, não esquecendo de prometer o leite e o mel, a ciclovia, a devolução do IMI, casas baratas e estradas, centros de saúde, empresas, para logo travar ao cair do dia 1 e voltarmos ao business as usual, às coligações entre os até aí indignados, ao escolher dos gabinetes, motoristas e lugares na Administração, sempre com sacrifício da vida pessoal, claro.

No meio de tudo, onde ficam as ideias, o debate, as pessoas, meros boletins de voto com pernas? Como diria um velho professor, há ideias novas e boas, só que as novas não são boas e as boas não são novas. O ecossistema político está aprisionado do CO2 da partidarite, demagogia, falta de ideias e sobretudo falta de competência para resolver os problemas. Não falo da autarquia A ou B, falo do quadro geral de clubite onde os candidatos são os mesmos do costume, numa clara falta de ousadia para renovar (os fieis estão sempre garantidos, com lugar futuro nalguma divisão, comissão ou grupo de trabalho), refrescar as ideias e chamar gente nova, cada vez mais afastada da coisa pública e anestesiada no analgésico mundo do virtual.

Seja pelo prazer venal do soundbite, a satisfação de egos pessoais, interesses económicos ou grupais, modas em prol dos gatinhos ou da comida vegan, de tudo estamos a assistir nesta feira de vaidades bacoca e sem desígnio que de tempos a tempos invade a nossa rotina. Muito têm alguns batalhado pela mudança do estado de coisas comatoso em que o país adormeceu, mas é difícil mudar quando, chegadas as eleições, a única mudança porque se luta é a das caras ou a manutenção das mesmas.


É certo que os programas eleitorais lá trarão as incontornáveis referências à inclusão, ao empreendedorismo, ao apelo à participação ou à mudança, essa palavra chave que todas as esperanças permite no sentido em que cada uma a entenda. Mas que a monotonia e torpor do deja vu capturam cada vez mais a política é um facto indesmentível, só os fait divers suscitando o voyeurismo efémero para preencher os telejornais do dia. Entretanto, temos a rentrée futebolística, os festivais de verão, as festas da aldeia e mais um querido mês de Agosto bafejando com dias quentes as almas amornadas por quotidianos duros, embora sob o zumbido de palavrosas campanhas eleitorais, com as segundas iguais às sextas, os jornais-abutre salivando escândalos e tragédias, os golos marcados e os penalties roubados e a necrologia, a ver quem deixou de fumar. Lê-se a opinião publicada para se ter opinião, há culpados, e os culpados são “Eles”. “Eles”, sacrossanta tribo do nosso descontentamento, “Eles”, que roubam, conspiram, tiram partido, servem-se. “Eles”, que são o corpo alienígena, possuídos mutantes e criaturas esfaimadas, adamastores de gravata e ogres de notebook, justiceiros de pecados por expiar. Valem as páginas eróticas, oferecendo ninfas a cinquenta euros em qualquer espelunca do subúrbio, a fezada do Placard ou o novo episódio da Guerra dos Tronos.
Mas pronto, a culpa de tudo é das alterações climáticas, e como não podia deixar de ser, do SIRESP...Como dizem os ingleses, "No news? That's good news!"

 

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Carolas, Pacholas e Artolas


 
Fundação da Alagamares, Março de 2005

Colaborar em associações, sejam culturais, sociais ou desportivas, é um desafio nos dias que correm, e eu que integro umas cinco em lugares de responsabilidade bem o constato ao longo dos anos. Desde o longínquo MAEESL (de antes do 25 de Abril, Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa, que realizou a primeira RGA de alunos do secundário no Liceu D. Pedro V, em Maio de 1974, e onde participei, numa fase de aprendizagem, devorando o Manual das Assembleias Gerais do saudoso Roque Laia), à Associação Académica de Direito nos finais de 70, da participação em movimentos e causas como a da Palestina, Timor, a libertação de Nelson Mandela (que depois tive o prazer de cumprimentar na sua vinda a Portugal) e outras, sempre me ficou o estímulo para fazer e inovar, nessa época com o entusiasmo de quem sabe estar a criar pela primeira vez, consolidar amizades, gritar pelas ruas e praças, escrever em folhetos universitários e de análise crítica, cantar e redigir poemas (cheguei a concorrer a um festival da Canção, como autor de uma letra…) etc. Nos anos 90 integrei uma direção do Sintrense, inclusivé, num período de grandes dificuldades financeiras do clube.
Com os anos, nunca esse “bichinho” me largou, tendo fundado a Alagamares com mais um conjunto de “carolas” em 2005, o Núcleo do Sporting de Sintra em 2016, tenho batalhado pelo restauro e manutenção na esfera pública do Salão de Galamares, promovi causas como o restauro do Chalé da Condessa ou a campanha contra alguns atentados no Centro Histórico de Sintra e contra a recente  tentativa de cortar 1400 árvores na Lagoa Azul, e esta semana integrarei a nova direcção dos Bombeiros de Colares.Pelo caminho, muita escrita, dois livros, três blogues, textos em jornais, centena e meia de eventos com a Alagamares, e tudo o que por aí virá.
Ao longo de todos estes anos, tenho sentido como as associações e as colectividades locais sentem profundamente o quanto são o parente pobre do Orçamento e os agentes culturais meros adereços decorativos nas campanhas ou usados para abrilhantar as listas dos apoios.
Pergunta-se se o modelo associativo como o conhecemos tem futuro. Terá, se certos atavios forem debelados de forma enérgica.
Baluartes de resistência e cidadania durante o período do Estado Novo, as associações irromperam no pós-Abril como cogumelos, distribuídas nas vertentes cultural, desportiva, sócio-profissional ou de solidariedade. Mas se ser associativista é uma forma de dizer que se quer estar activo como cidadão-actor em prol duma participação efectiva e do legítimo exercício da democracia -na vertente de cultura para todos, e com todos -tal não impede que a mudança de paradigma que as novas solicitações da sociedade global e da informação impõe permitam e exijam que se ultrapassem algumas patologias.
A falta de formação de novos dirigentes, articulados com as realidades do tempo que passa e sem espírito corporativo, de imobilismo na preservação de lugares ou incapazes de congregar novas sinergias.
A eterna falta de verbas e da perspectiva de olhar para as associações sobretudo para a preservação da vertente patrimonial, das sedes e equipamentos, desenquadrada do fim último de congregar vontades, mobilizar opiniões, e gerar actos de cultura, desporto, etc
A prevalência do individualismo hedonístico, que desvaloriza o trabalho de equipa ou colectivo, em benefício das figuras e dos egos, num estereótipo transmitido por um modelo de sociedade onde o Eu vence o Nós, mas de forma volátil, efémera e perversa.
A falta de investimento na inovação, e na ruptura com certas práticas, reproduzindo uma "cultura de corpo" estática, distanciada das necessidades para que muitas vezes essas associações foram criadas, facto espelhado nas múltiplas associações que apenas mobilizam para jogar o dominó ou assar o courato, mas deixaram de ter desporto activo, de produzir cultura da terra para importar cantores de moda efémeros e dissonantes, ou de se rever com o conjunto da população, num multiplicar por esse país fora de inúmeros Cinema Paraíso decadentes e ansiosos por revitalização.
A subsidiodependência, a suburbanidade de escolhas culturais, o divórcio com as forças mais dinâmicas das comunidades, e o espírito -há que dizê-lo- reaccionário e imobilista de certos dirigentes- fazem os pavilhões às moscas, os teatros a cair de podres, os balneários sem água quente, tudo símbolos que ninguém quer herdar ou assumir, e logo de pouca atractividade.
É na subversão deste estado de coisas que o associativismo, com novos modelos de financiamento, com novos e empenhados dirigentes, de braço dado com as novas tecnologias e sob o desígnio de parcerias profícuas poderá e deverá singrar. Daí a necessidade de conjugar esforços com outras associações no sentido de criar elos de fortalecimento do movimento associativo, em prol de mais Participação, mais Organização e mais Capacidade e Alcance. Mas, é preciso, sobretudo, que tal decorra duma interiorização do papel social e comunitário dos agentes culturais, e da manifestação pujante e unida destes perante um Poder que deles faz parente pobre, e a quem, infelizmente, muitos se submetem.
Como escreveu André Malraux, a cultura só morre vítima da sua própria fraqueza. Há que lubrificar as mentalidades e tomar em mãos a força que, mais que qualquer arma, a Cultura e seus agentes devem ter na Sociedade, se se quer viva e factor de mudança. Os agentes da cultura não são bibelôs instrumentalizados para fotos de ocasião ou contagem de espingardas. Oiçam-nos como parceiros de desenvolvimento, pensem nas suas necessidades no momento de elaborar os orçamentos, sentem-nos em orgãos consultivos com visibilidade e representatividade, vão aos seus espectáculos, exposições, debates e mais eventos sem ser em período eleitoral, pensem neles nos regulamentos de taxas e na ocupação das salas municipais. Aos agentes importa interiorizar que participar não é só meter um like no Facebook, a postura critica e activa é importante e só ela é idónea a produzir a mudança que faz a diferença, e não repetir mimetismos desajustados no tempo e divorciado das pessoas no mundo de hoje. Todos teremos de mudar um pouco, pensar Global para agir Local, exigir a democracia mas respeitá-la no nosso seio, exigir ser ouvido, mas saber ouvir, ter a humildade de Estar e não apenas de Ser e sobretudo Parecer. O futuro a todos convoca, vamos lá agarrá-lo!