Sábio, o enfeitiçado caldeirão ia
borbulhando. Nessa era das trevas e noite do Mundo, alvor de conquistadores e
heróis, no alto da Serra Sagrada, longe dos elfos e silfos, vigiava castigador
o mago Klingsor, velho de duzentos anos, nos domínios que Afonso
Henriques, na madrugada de Portugal dera aos da cruz obnubilada, rodeada de
laboriosos mouros manejando charruas nas várzeas. Lá bem alto, num refúgio
sinistro, rodeado de pedras e urze sem idade, Klingsor, o Mago, construíra um
jardim mágico, de ninfas e amazonas, que com seus perfumes e encantos
seduziam os incautos, fazendo-os abandonar a pureza, perdendo-os com os seus
feitiços e assim punindo os violadores do jardim.
Vinte anos haviam passado desde
que a maura lança cedera em terras de Xintara, Afonso continuou para sul e
leste, tempos depois, com angústia, souberam os cavaleiros ter o rei caído em
Badajoz, grave aleijão o retinha no leito, em Coimbra, não fora seu genro e
teria o rei de Badajoz retomado seus domínios. Pensava Afonso Henriques ser sorte
aziaga a que o derrubara nesse dia infausto, era porém o poder dum anel que
Urraca Ximenes, conluiada com Klingsor, um dia lhe ofertara, que permitia que à
distância este lhe manietasse o destino, ardendo em febre no paço de Coimbra.
Tal maleita, agoirara Urraca, só coração sem pecado poderia debelar, quando
não, o reino luso soçobraria aos desígnios de Klingsor.
Gonçalo Ramires, moço do Arrabalde, crescera nas faldas da serra. Órfão de Ramiro, morto em cilada no
além Tejo, aos catorze anos sonhava com feitos de cavalaria, caldeado na
virtude e sem ódio no coração. Avisado da existência de Klingsor, alertado estava para que não se aproximasse do eremita, que por bruxarias tentava perder o
reino novo. Certo dia, perseguindo um gamo, passou os muros do jardim proibido, galgando
a alcáçova de Canaferrim, temida fronteira dos medos onde estranhas bestas
serpenteavam na mata orvalhada. Um silêncio perturbador dominava no meio das
brumas, ao fundo, um cisne altivo nadava num lago espelhado. Atraído, Gonçalo
quis vê-lo de perto, e, sem receio, o cisne deixou-o aproximar-se, para logo por magia
se revelar como uma esbelta moura, Morgana seu nome, prisioneira de Klingsor. No
cume ventoso, o mago manipulava, vendo a cena reflectida numa tina de água, e com
feitiços conduziu Morgana a seduzir Gonçalo com a sua beleza e graciosidade.
Repentinos silfos esvoaçantes emprestavam gravidade ao momento, Klingsor, cruel,
seguia o seu plano: uma vez subjugado pela sensual Morgana, dele faria
um cavaleiro das Trevas, com a missão de pôr cobro a Afonso, moribundo em
Coimbra.
Dois rouxinóis chilrearam na
floresta, um furão atravessou o restolho, e Gonçalo e Morgana, sem trocar
palavras, falaram a linguagem dos corpos, selada com um beijo cristalino. Súbita, uma dor lhe perpassou o corpo, qual lâmina afiada, em Coimbra e ao mesmo
tempo, El-Rei Afonso soltou um grito de dor, como se através do beijo o fel de
Klingsor atingisse as suas presas subjugadas. Suspeitando da armadilha, Gonçalo
sacou da espada, e dum só golpe decepou a moura, que voltando a ser
cisne, tombou ensanguentada, avermelhando o lago. Um sonoro trovão ameaçou os
ares, Klingsor chispou de ódio. Correndo para o Arrabalde, Gonçalo
reuniu os de Canaferrim, que de imediato galgaram a serra, a cercar o bruxo no
castelo. Ao falhar com Gonçalo, Klingsor perdia os poderes, e, furioso, ordenava aos
elfos para marchar sobre os de Sintra. Impotente, porém nada lograva, em
Coimbra, ao mesmo tempo, também Afonso melhorava e resoluto pedia a armadura
e um cavalo, para pasmo do chanceler e das infantas. Já o tropel dos cavalos
alcançava o castelo, com Gonçalo à cabeça, quando enormes labaredas invadiram
as muralhas, soltando um calor tal que não puderam os do Arrabalde aproximar-se, como
se o Juízo Final tivesse chegado.
Dias depois, apagado o fogo e
assaltado o fumegante antro do mago, dele não restavam vestígios de que alguma vez ali tivesse estado. Do alto da barbacã, Gonçalo olhou a vila, onde alheios e laboriosos os mouros lavravam as
terras, um sereno mar ao fundo marcava a fronteira dos Homens. Um mensageiro chegou
entretanto, anunciando o recobro do rei, feito saudado com um frenético repicar de
sinos. Num momento benfazejo, o anel de Urraca caíra-lhe do dedo, e também ele
estava livre agora, para a defensão do Reino e o louvor a Deus.
Anos mais tarde, partiu Gonçalo
para os Santos Lugares. Herói em Éfeso, guerreiro em Gaza, tornando à Pátria,
foi feito alcaide de Sintra, aí morrendo já de provecta idade. Em silenciosas noites
de luar, alguns dizem ainda avistar Klingsor, jurando vingança em desvairadas ameaças.
Na Fonte dos Passarinhos, um elegante cisne aguarda os
visitantes, às ordens do mago, dissimulado na pedra.
Sem comentários:
Enviar um comentário