Vergílio
Ferreira, o consagrado autor de Manhã Submersa, nasceu há 100 anos, a 28 de Janeiro de 1916, e Sintra é um dos lugares frequentemente presentes na sua
obra. Na sua Conta-Corrente, por exemplo, são frequentes as referências a
Fontanelas, onde passou largos períodos, e a outros sítios de Sintra, como
local onde pôde repousar e ler, e também concluir alguns dos seus livros até a
morte chegar, em Março de 1996, aos 80 anos.
Dois
dos seus romances foram concluídos em Fontanelas: Para Sempre (1982) e Na Tua
Face (1993). E a acção de Nítido Nulo (1971) decorre no Magoito.
Além
de Fontanelas, muitos são os registos sobre Praia das Maçãs, Praia Grande,
Azenhas do Mar ou a Aguda. Sobre a Praia das Maçãs escreveu em 1981:”A Regina e eu fomos depois do almoço à Praia
das Maçãs tomar o café e olhar o mar. Praia quase deserta. A armação de algumas
barracas agrupadas a um lado. Os panos listrados de azul já arrumados. Um ou
outro banhista ainda despido por exemplarismo ou falta de resignação. O mar com
uma cor já fria de inverno e muito batido de espuma da ondulação. Sentamo-nos
na esplanada do café, ao sol.”
Ou
a Praia Grande, depois das cheias de 1983:
“22 de Novembro.1983 - Ontem de
tarde fomos ver os desastres da cheia aqui ao pé. Do Rodízio para a Praia
Grande há uma ponte com um pilar sobre uma ribeira seca durante quase todo o
ano. Com a enchente, a ribeira inchou pavorosamente e levou a ponte adiante ontem
inundava todo o areal numa maré de água turva. Havia almofadas vermelhas a
boiarem, talvez de automóveis, muros derrubados, canos rebentados ou postos à
mostra nas ruas. Na grande adega de Colares os tonéis sem vinho boiavam leves e
ficaram trancados contra as portas que eram estreitas para darem passagem”.
Deslumbrado
pelas Azenhas do Mar, onde “as águas
alargavam-se até a um horizonte de neblina, as ondas quebravam num rolar manso
e dormente sobre a breve areia da praia”, grande parte de Até ao Fim (1987)
decorre em Fontanelas e nas Azenhas do Mar, com a Capela de São Mamede
relembrada na Conta-Corrente em 1983:
“Aproveitámos para excursionar até
São Mamede que tem uma capela num alto donde se vê o mar. E foi um deambular
lento, de olhos abismados na verdura dos campos, nas flores silvestres à beira
da estrada. (...) Divagámos até ao alto de São Mamede. Nas margens da estrada e
no meio dos campos visíveis havia maciços rubros de papoilas, manchas amarelas
de malmequeres. De um eucalipto novo colhi um ramo de que esmaguei na mão
algumas folhas para o seu perfume me penetrar.”
Também
a Peninha, Galamares ou o Cabo da Roca são presença familiar nos seus textos (“ouve-se ao longe, no Cabo da Roca, a
"ronca" de aviso à navegação. Não há vento, os pinheiros
imobilizam-se na névoa como espectros. Silêncio. Nem uma ave se ouve. E
irresistivelmente lembro- me de um mundo nos começos da génese, antes de um ser
vivo surgir à sua face. E então, mais evidente, assola-me o absurdo de um universo
sem razão, sem sequer um ser pensante que o fizesse existir.”)
De
resto, há sempre um registo dos muitos amigos que passaram por Fontanelas para
longas conversas e tertúlias. E foi nesse modo de conviver descontraído que o
autor de Aparição encontrou a razão de ser para assim não deixar de registar as
suas impressões de Fontanelas e quase sempre nos dias de Verão, na presença de
pinheiros, o cantar dos pássaros ou a imensidão do mar.
Sobre
Sintra, “o único lugar do país onde a
História se fez jardim”, como escreveu um dia, foi profético, quando a
exalta, de forma lapidar: ”Sintra é o
mais belo adeus da Europa quando enfim encontra o mar. Camões o soube quando os
seus navegadores a fixaram como a última memória da terra, antes de não verem
mais que "mar e céu". E no entanto, ou por isso, o espaço que ela nos
abre não é o da infinitude mas o do que a limita a um envolvimento de repouso.
Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade
de amar. Ela é assim o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos
agride ou ameaça.”