segunda-feira, 29 de abril de 2013

As duas mortes de Adolfo


Berlim, 29 de Abril de 1945. Os efectivos soviéticos chegavam à Alexanderplatz quando uma chuva de granadas caiu sobre o bunker. Pela uma da tarde, sentindo o tempo a esgotar-se, Hitler desposou Eva Braun, tendo por testemunhas Goebbels e Bormann. A lúgubre cerimónia terminou com um marcial brinde aos esposos, que minutos depois se retiraram para uma sala, onde diligente Gertrude anotou o testamento do Führer.Doze anos de paranóia chegavam ao fim.No testamento, Hitler ditou: “não quero cair em mãos do inimigo, que quer oferecer um espectáculo com o único objectivo de divertir as massas histéricas. Consequentemente, decidi ficar em Berlim e escolher voluntariamente a morte, no momento em que considere que a posição do Führer e da Chancelaria não possam ser mantidas por muito tempo. Morro com a alegria no coração, consciente das imensas realizações do nosso povo e da contribuição incomparável que a juventude que tem o meu nome deu à História”. Cumprimentou os assistentes, um por um e de seguida almoçou com as secretárias e o cozinheiro. Depois, despediu-se de todos, um por um, e acompanhado por Eva, dirigiu-se para o quarto. Uma vez fechada a porta, Otto Gunche fê-los atravessar um corredor secreto com acesso a um hospital próximo, e daí os levou para fora de Berlim  numa ambulância, disfarçados de médicos. No bunker, eram três e quarenta e cinco quando se escutou um disparo, vindo do quarto onde o casal entrara, horas antes, posto o que, impávido, Bormann entrou no aposento, acompanhado pelo criado, Linge. Um corpo jazia inerte numa cadeira, outro, de mulher, esvaía-se em sangue, estendido no divã. A seu lado, duas pistolas, uma Walter PPK, e outra menor, que Hitler trazia sempre, do corpo da mulher exalava um cheiro intenso a cianeto. Bormann voltou à sala onde se encontravam Goebbels, Burgdorf e outros e anunciou, solene:"O Führer está morto." De seguida, os cadáveres foram tapados e levados para fora do abrigo, onde os regaram com gasolina e queimaram. Adolfo Hitler e toda uma época acabavam de se esfumar, deixando a Alemanha nas mãos dos ocupantes.
Portugal, 7 de Maio de 1945. Berlim fumegava ainda, destruída, já os russos, victoriosos, controlavam a cidade, depois da rendição. Longe dali, no extremo ocidental da Europa e alheio a tudo, Joaquim Gregório, banheiro da Praia da Adraga, apanhava mexilhões para mais uma patuscada na tasca do Paletas. Mar encrespado, apesar de o dia estar claro, nada como o iodo da praia pela manhã, ainda sete horas não eram. No mar, uma traineira, dolente, dirigia-se para a Ericeira,rodeada de gaivotas. Um vulto negro e compacto pareceu-lhe porém surgir vindo do mar, a idade já lhe entorpecia a vista, pelo que parecendo-lhe uma ilusão de óptica se foi a emborcar um tinto para aquecer. Junto à traineira, e longe dos olhares, emergia um U-BOOT XXI alemão. Depois de aberta a escotilha, e de uns vultos de gabardina e chapéu baixarem uma escada da embarcação, um homem e uma mulher saíram do submarino, entrando no barco de pesca. Ele, aparentava cinquenta anos, magro, ela, seria algo mais nova, assustada, seguiu-o, obediente. Pelo comportamento dos da gabardina seria alguém importante. De manhã, a PIDE encarregara inspectores de secretamente receber uns importantes dignitários alemães, nada mais adiantando, a neutralidade oficial não podia arriscar um envolvimento com o Eixo. Dali, a traineira rumou a Cascais, não sem que o comandante do submarino fizesse a saudação nazi ao homem, que nunca abriu a boca, gritando, marcial, “Até sempre, mein Führer!”.As suas instruções eram as de, após deixar o casal na costa portuguesa, acordada com o governo local, desembarcarem num salva vidas perto de Leixões e afundar o submergível, desmobilizando depois, e partindo cada um a novo destino. Com discrição, o casal foi alojado na Malveira da Serra, em casa guardada pela polícia portuguesa, embarcando em Agosto seguinte, sob falsa identidade holandesa e passaportes fornecidos por Lisboa, com destino a Buenos Aires. Na Malveira, constava serem refugiados judeus em trânsito para a América, mas ninguém nunca os viu, jamais saindo da casa enquanto lá permaneceram.
Rio Gallegos, Argentina, Setembro de 1964. Com consternação geral, gaúchos a cavalo escoltavam o funeral de Marcus Schoof, fazendeiro de origem holandesa há vinte anos radicado na Patagónia e grande proprietário local, uma fazenda com um milhão de hectares e a melhor carne da Argentina. Muitos europeus, sobretudo alemães radicados na província, compareciam ao enterro. A viúva, a senhora Eva, seguia atrás, numa charrette, vários dos presentes, amigos de Schoof, esticaram o braço, saudando em sinal de respeito. Pablo, o feitor da fazenda, lamentava a morte do patrão, vítima de sífilis, dizia-se à boca pequena, comentando a estranha colecção de dentes de ouro que guardava num cofre, de onde se dizia vir o dinheiro com que adquirira a fazenda, ao chegar de Portugal, anos antes. Junto a Eva, Leni Riefensthal, uma amiga dos tempos da Europa, confidenciou-lhe inconsolável que quando era novo, o siñor Schoof fora um grande orador e filantropo, em prol de causas sociais e muito amigo dos pobres.

sábado, 27 de abril de 2013

10 mandamentos para futuros autarcas



É essencial e moralmente exigível que uma reforma da Administração Local, além da modelação dum novo figurino territorial e de gestão, reforce as exigências de transparência e ética que credibilizem os autarcas e reforcem a imagem de seriedade, isenção e independência que aos mesmos é exigida, atentas até as experiências antecedentes e algumas patologias detectadas. A título de sugestão, aqui ficam 10 ideias:


1. Não deverão os eleitos ter qualquer tipo de regalias ou imunidades que não sejam as decorrentes do exercício do cargo, não conferindo tal estatuto direitos especiais aos titulares dos mesmos, isto é, deverão as imunidades ser meramente funcionais e não um novo direito subjectivo que os proteja em especial face aos demais cidadãos.


2. Deverá haver exclusividade de um só vencimento quando o cargo for exercido a tempo inteiro, proibindo-se acumulação de cargos que não sejam os de mera representação, vencimentos ou pensões.


3. Não deverão no exercício dos cargos, contratar por si, cônjuge ascendente ou descendente, ou por firma de que sejam sócios o próprio, cônjuge, ascendentes e descendentes, com a autarquia ou com empresa municipal ou de capitais maioritariamente da autarquia, bem como num período de 2 anos após cessar funções.


4. Não deverá ser aceite como candidato a eleição ou lugar em empresa municipal quem, por si ou através de empresa da qual seja sócio ou gerente, ou o seja cônjuge, ascendente ou descendente seja fornecedor de serviços, consultor, tenha contratos pendentes, litígios ou demandas com a autarquia à qual se pretende candidatar e depois de ser eleito, salvo se demonstrar estar desvinculado dos mesmos há mais de 2 anos.


5.Acabar com as pensões vitalícias e fazer prevalecer o princípio geral da não percepção de pensões durante o exercício de cargos remunerados.


6. Não acumular lugares públicos, seja por nomeação ou eleição, devendo prevalecer o princípio de uma vez eleito optar obrigatoriamente até ao prazo de 30 dias por um deles.


7. Suspender funções automaticamente sempre que haja a constituição de arguido em processo e após comunicação judicial do tribunal ao órgão competente de que o arguido seja membro ou integrante.


8. Consagrar do princípio de que havendo lugar a perda judicial de mandato, a mesma é aplicável de imediato ainda que os factos se reportem a actos praticados em mandato anterior ou no exercício de funções públicas, electivas ou de nomeação, sempre que nesse momento o condenado exerça funções electivas, ainda que em órgão ou autarquia diversos.


9. Proibir que nos 3 anos subsequentes ao abandono de um cargo ou fim de um mandato possa exercer lugares electivos ou de nomeação nessa mesma autarquia, em empresa municipal da mesma ou em sua representação remunerada em outro organismo, ainda que ao nível de mera consultadoria.


10. Definir um quadro remuneratório dos membros de empresas municipais e seus órgãos fiscalizadores por igual e para todo o país, através do Ministério das Finanças, sendo proibidos abonos ou prémios não especificamente previstos nos estatutos, ainda que deliberados em Assembleia Geral das mesmas empresas.


Estes e outros critérios, parecem ser essenciais para moralizar a política e a vida autárquica, seja em que autarquia for ou quem sejam a cada momento os seus titulares.

Uma cidadania activa deve reflectir um projecto para servir e não para se servir, constatando-se que, se a participação da sociedade civil fosse maior, o aggiornamento dos mesmos em torno do poder e suas sinecuras seria menor e mais controlado, assim contribuindo para evitar que na prática o país esteja capturado por um grupo de 1000 a 2000 pessoas que há 30 anos se sucedem e alternam nos governos, autarquias, empresas públicas e privadas.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A recruta de Artur Baleizão



Reprovado em Direito, e com o segundo ano em atraso, em Março de 1974 Artur Baleizão foi incorporado em Santarém, em Cavalaria, o ramo onde uma besta em cima e outra em baixo, como dizia o avô, veterano da Primeira Guerra. A viagem desde o Alentejo até nem era longa, mas a perspectiva de ir parar a África não o deixava tranquilo. O pai já falara com o capitão Maia, conterrâneo de Castelo de Vide, mas a hipótese de ir para o Ultramar, finda a recruta, era incerta ainda, as coisas estavam acesas na Guiné desde que o general Spínola de lá saíra e editara um livro que deixou muita gente nervosa. Na véspera da incorporação tinham ocorrido incidentes nas Caldas, nunca percebera porquê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores sabia atar, com espinha bífida e óculos graduados, estava como um papagaio em capoeira, suportando, estoico, a solha frita à quinta-feira e o Fernandes a ressonar e a fazer as camas à espanhola.

Nessa quarta-feira a ordem de recolher foi às nove, antes, telefonou a Mariana para que o esperasse  em Lisboa no fim-de-semana, para um copo no Jamaica. Na quinta de manhã haveria instrução de sapadores, e ainda lhe doíam as pernas do cross da véspera, vida estúpida para quem não queria fazer carreira, a farda feijão verde alvo de troça em Santa Apolónia. Não conseguiu dormir logo, havia barulho na messe dos oficiais, noite de copos pela certa, o Passos estava de serviço, esperaria por ele para um bate papo, só a luz de presença estava ligada na caserna. Aí pelas onze e meia, o segundo-comandante, furibundo, atravessou a parada aos gritos, a fazer a folha a algum, por certo, Cavalaria não era mole, e Santarém era elite. Parte dos milicianos seguiria para o contingente NATO, Tancos ou Santa Margarida, outros para África, onde Nambuangongo fora  coisa séria.

Já perto da uma, o Passos tardava e uma algazarra soou, vinda da parada, o tenente Barbeitos, apareceu aos gritos à  porta da caserna a mandar formar em dez minutos. Mais uma praxe, pensou enfadado. Todos formados, foram então informados que sairiam para uma missão em Lisboa. Ordem de equipar o M-64 e G-3 municiada, duas rações de combate por homem, até parecia ter rebentado a guerra, pensou, lembrando a guerra do Solnado. Aquele folclore sempre lhe parecera obsoleto e teatral, mas havia que ser resiliente, antes Lisboa que Bissau.

No meio do reboliço, descortinou o capitão Maia, seu patrício, enfiado num camuflado e falando em murmúrio com uns graduados. Ordenando sentido, dirigiu-se aos homens na formatura:

-Homens! Se bem que ainda não tenham a recruta completa, a vossa destreza vai ser hoje testada! Há uma missão a cumprir: marchar para Lisboa, e controlar o acesso ao Banco de Portugal, à Rádio Marconi e ao Terreiro do Paço. A nossa missão visa devolver a dignidade ao povo português, e demitir o governo que tarda em arranjar soluções para os problemas inadiáveis do nosso país! Quem estiver contra, que dê um passo atrás!

O que parecia uma praxe, era afinal coisa séria, um golpe militar. Que fazer? Por um lado, a política pastosa que o atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas, e se falhassem? Mal tinham feito instrução de tiro, o Forte de Elvas parecia ser o fim certo para a noctívaga aventura. Ninguém deu um passo atrás. Um oficial correu entretanto a falar ao capitão Maia:

-Está tudo em marcha. A senha foi confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo, meu capitão!

-Óptimo! -saltando para o Chaimite, mandou avançar para a porta de armas. Pouco passava das três da manhã, e nessa noite, pelos vistos, não haveria camas à espanhola.

Um esquadrão de reconhecimento com dez blindados e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas ambulâncias e um jipe, saía amotinado para Lisboa. Tudo isto era confuso, mas excitante, com sorte, talvez ainda essa noite bebessem um copo no Cacau da Ribeira, pensou Artur.

A entrada em Lisboa ocorreu pelas cinco e meia. No Campo Grande, um polícia olhou para a coluna mas não interferiu, manobras com certeza, não houvera nenhum alerta. O Passos e o esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão Maia tomaram posição no Terreiro do Paço, já matinais carrinhas com legumes se dirigiam ao Cais de Sodré. Salgueiro Maia, sem encontrar grande oposição, contactou um misterioso Posto de Comando, dando conta da situação:

-"Informo que ocupámos Toledo (T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!

-Afirmativo! -respondeu uma voz metalizada do outro lado. -Papa Charlie no controlo!

As coisas pareciam correr bem e sem oposição, até o comandante distrital da PSP veio oferecer colaboração, descongestionando o trânsito, com o amanhecer, o 28 para a Graça cruzara já a praça, deixando o guarda-freio surpreso com o aparato. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão Maia:

-Meu capitão, vamos dar cabo do Marcelo, não vamos?

-Podes escrever, Artur, temos de pensar nos nossos filhos, e em Portugal! Esta é a nossa hora! -respondeu, pondo-lhe a mão no ombro. Apesar de sereno, tinha um ar cansado, à frente duns recrutas de surpresa virados contra o  Império.

Começando a chegar gente aos ministérios, alguns oficiais afectos ao governo apareceram a desafiar os amotinados, chegando a aquecer o ambiente com as provocações de  Ferrand de Almeida, a recusa dos seus homens em atacar camaradas fez passar os Panhard para o lado dos de Santarém. Artur regozijava, a farda verde  da chacota tornava-se agora símbolo de tenacidade e dum orgulhoso verde-esperança.

À medida que as notícias se espalharam, as pessoas invadiram as ruas. Com um frémito na espinha, viu a Mariana a acenar-lhe, de lágrimas nos olhos, perto da R. do Arsenal, o copo no Jamaica chegaria mais cedo, por certo, recruta-herói em instrução nocturna. Um beijo, soprado de longe, foi a silenciosa confirmação do sucesso.

Alucinantes, os acontecimentos sucederam-se: pessoas saindo à rua, saudando e oferecendo cigarros, a deslocação apoteótica para o  Largo do Carmo, o abraço emocionado ao Passos e aos demais camaradas do esquadrão. Uma florista no Rossio ofereceu-lhe um cravo, logo guardado para Mariana.

Passaram muitos anos, o orgasmo colectivo daquela extraordinária quinta-feira em que não houve instrução de sapadores, mudou o país de forma definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de Vide, não passa um dia sem que Artur deixe uma flor na soleira da casa onde nasceu o capitão Maia, vertendo uma melancólica lágrima ao lembrar aquela madrugada chuvosa em que um punhado de recrutas saltou apressado do beliche para um encontro com a História.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A cabala


Eliminar o caos, a dor, o sofrimento, tal o desígnio do engenheiro Ezequiel Levi, judeu e cabalista nas horas vagas, intérprete do Livro da Formação, o Sepher Yetsirah dos seus antepassados marranos, iniciado maskilim e céptico do Talmud. Encafuado no seu retiro da Ulgueira, em cada frase das escrituras descortinava sentidos escondidos, e ao procurar reconhecer fontes negativas na mente e coração, acreditava estar a contribuir para uma interioridade positiva, livre de egoísmos e próxima de Deus. Tardiamente separado de Greta, uma norueguesa com quem casara no tempo em que trabalhara numa plataforma petrolífera, reformado e dado às espiritualidades, vivia junto ao mar, com um gato e uma governanta, a Cecília, que de tudo o aliviava para que se dedicasse aos seus estudos e elucubrações. Já entrado nos setenta, como ela, divorciado e sem herdeiros, fizera testamento a favor da governanta, deixando-lhe a casa da Ulgueira uma vez que partisse, só ela o aturava nesse fim de vida, era justo que por tal fosse recompensada. Jurando nada querer, Cecília ia aguentando as taras de Ezequiel, ciente de que, apesar das excentricidades, a segurança de uma casa compensaria a sua paciência de santa. Em dias de maior excitação, Ezequiel procurava doutriná-la, mas Cecília, simples e de poucas letras, era doutorada sobretudo nos pastéis com que aconchegava o estômago do aprendiz de cabalista:
-Sabes, Cecília, a Cabala ensina-nos que todo o ser humano é uma obra em execução. Qualquer dor, desapontamento ou caos que exista nas nossas vidas, não ocorre por fatalismo, mas apenas porque ainda não terminámos o trabalho que nos trouxe até aqui. É preciso libertarmo-nos do egoísmo e criar afinidade com Deus!
-Senhor Ezequiel, eu para mim, já faço a minha parte. Todos os domingos assisto à missa aqui na Ulgueira, e sou muito devota de Nossa Senhora do Cabo, fique sabendo! -rematava a velha criada, para quem os calhamaços espalhados pelo chão mais não eram que um entrave para limpar o pó, tudo queimado ainda era pouco, pensava.
-É preciso a verdade, enfrentar o mundo com paciência, ter empatia com o nosso semelhante…- repetia-lhe, esbracejando pela sala, enfiado num roupão de cetim que lhe conferia um ar aristocrático.
-Sim, sim, lá empatia não tenho, graças a Deus, que o Dr. Botelho diz que estou rija, felizmente, mas olhe, até costumo ajudar o Exército de Salvação de Colares, e tudo…
Aluado, Ezequiel mergulhava na obra do rabino Kook, o primeiro rabino ashkenazi de Israel e fundador da Merkaz Harav. Devorando versões traduzidas do Livro da Criação, de Abraão, o Sefer Yetzirah, e do Bahir, do rabino Ben Hakana, Ezequiel procurava a paz e a verdade de que andara afastado em anos de vida materialista e mundana, dependente do álcool e com uma relação atribulada com Greta, que voltara para a terra natal depois do divórcio, ambos já entrados nos sessenta.
-O Zohar diz-nos que a alma humana possui três elementos, o nefesh, o ru'ach, e o neshamah. O ru'ach, a alma mediana, contém as virtudes morais e a habilidade de distinguir o bem e o mal. Como achas que está o teu ruach, Cecília?
Cecília encolhia os ombros, já habituada às excentricidades. Não fosse a promessa de herdar a casinha, depois dele bater a bota, e já se teria despedido.
Alguns meses ainda durou Ezequiel, devotado aos seus livros e estudos. Procurando uma tardia redenção no fim dos seus dias, sabedor de ter uma doença terminal, refugiava-se no estudo da alma, diariamente visitado pela Cecília, que lhe fazia a lida da casa e as refeições, voltando para o marido ao fim da tarde.
Um final de tarde, já no Verão, Ezequiel finou-se, em paz, partindo finalmente para a terra do Deus de Abraão. Como combinado, Cecília providenciou-lhe um enterro judaico, em Lisboa, aos livros e papéis encaminhou para Sintra, à guarda do Arquivo Histórico, que em sua homenagem abriria uma sala na biblioteca. O principal seria passar a casa para seu nome, uma vez lido o testamento do qual era única beneficiária, e foi isso que procurou tratar no cartório. Para pasmo da devotada governanta, do testamento cerrado constavam apenas frases enigmáticas da cabala, e a doação dum serviço de mesa que Cecília tanto gabava. Com medo de a perder e aos seus cuidados, Ezequiel nunca confessara que a quando do divórcio de Greta, a casa da Ulgueira ficara para ela, com reserva de usufruto em vida do engenheiro.
Depois de morto, o safardana pregava a partida à desinteressada Cecília, revelando que a sua alma mediana, esse ru'ach da virtude, do bem e do mal, mais que prática assimilada, não passara afinal de sórdida judiaria enredada por uma tortuosa cabala, movida não pela prática do bem e da redenção, mas mais atenta aos valiosos e quase gratuitos préstimos de fada do lar e seus divinais pastéis de feijão.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Sintra desertificada



A crise que se abateu sobre os estabelecimentos de restauração e no sector dos bares e cafés, em particular, é visível no panorama de Sintra, onde sempre foi apontada a falta de espaços para tal fim, atenta a circulação diária de centenas de turistas.
Muitos bares que antes faziam o horário tradicional optaram por abrir só algumas horas por dia, (o Saloon, o Legendary Cafe, o Sabot) outros fecharam (veja-se o caso da Ideal, na Estefânea, que funcionava desde 1936, há algum tempo encerrada) a par do panorama desolador da Heliodoro Salgado, a rua pedonal, donde vários estabelecimentos sumiram, como a papelaria Parracho, a Cintrália, e outros(até a loja da Benneton...).
E os estabelecimentos que resistem parecem ter chegado ao fim da linha, obrigados a praticar preços com margens irrisórias, sobrando os cacofónicos chineses, alguns espaços menos cuidados (o bar da estação, o Café Elite, ou a Adega do Saloio, só para dar alguns exemplos)e os bancos, catedrais da usura do nosso descontentamento. Nota positiva para o Café Saudade, e, numa óptica de consumo de passagem e da bica ao balcão, o Tirol ou o Monserrate, excluindo-se aqui a Vila Velha, com os seus preços turísticos
O elevado valor do IVA praticado, a retracção do consumo, as rendas elevadas e a inenarrável imposição de novas e dispendiosas máquinas têm levado a tal estado de coisas, de tal modo que um dia destes o deserto pode ser total. Dias negros, estes que se vivem

terça-feira, 16 de abril de 2013

Palmira



-Está lá? –António, esfregando os  olhos, tentava acordar- Está sim?

Já prestes a desligar o telemóvel, uma voz respondeu do outro lado:

-Sim... António? Sou eu, o Marco.

-Marco! Que se passa, já vistes  que horas são?

-António, tinhas razão. Nunca me devia ter metido com ela…

-De que estás a falar? Metido com quem?

-Veio  buscar-me, eu sei... Está à janela, desde que anoiteceu.

-Marco – insistiu António, tentando manter a calma – andaste a beber? Quem está à janela?

-Palmira…

A ligação caiu. António levantou-se, num misto de raiva e preocupação. Não era a primeira vez que Marco o acordava a meio da noite, mas havia algo diferente neste telefonema, Marco parecia assustado. Pegou no telemóvel e ligou para o amigo, mas a chamada foi parar à caixa das mensagens.

-Ah, que se lixe! – apagou a luz do candeeiro, estava bêbado, por certo, nem sequer se iria lembrar no dia seguinte. No entanto não conseguiu voltar a adormecer, ficou com a sensação de que algo havia acontecido. Olhou para o despertador, 4:30h da manhã. Se saísse de carro, chegaria à casa de Marco já dia. Isto é de loucos, pensou enquanto se vestia. -Bolas, Marco, se te encontro a  dormir e a curá-la, vais ter de te ver comigo!

Saiu de Colares e apontou à casa de Marco, na Vila Velha. Marco tinha-se mudado para lá recentemente,  escritor, trabalhava num livro inspirado na vida do conde de Valenças, antigo proprietário do edifício hoje Arquivo Histórico da Câmara.  Luís Jardim morrera há anos, para Marco era uma interessante fonte de informações sobre Sintra em finais do século XIX. Tentou lembrar-se do que ele disse, algo sobre alguém que teria ido buscá-lo...Palmira. Quem seria essa Palmira? Uma familiar do conde descontente, por certo, Marco tinha um talento especial para se meter onde não devia.

Passava das cinco da manhã quando chegou ao casarão, com uma localização magnífica, perto  do velho Paço. A porta da frente estava aberta, empurrou-a, lá dentro, tudo em silêncio, ninguém respondeu. Vasculhada a casa, nenhum sinal de violência ou de arrombamento, talvez Marco  nem estivesse em casa quando lhe ligou. De qualquer forma, decidiu-se a esperá-lo, queria saber como ia o livro e  quem era a tal Palmira. O escritório tinha uma enorme janela com vista para a serra, numa escrivaninha, aberto, estava um computador portátil e na parede um quadro reproduzia a paisagem que se via da janela, com o Palácio Valenças destacado a uns duzentos metros, conquanto no quadro um pequeno vulto branco surgisse miniatural numa janela. Nem sinais de Marco. Sentou-se diante do computador, estava aberto numa mensagem de e-mail:“ “Caro Marco. Seguem em anexo as cópias dos documentos que pediu. Um abraço. Montoito ”Anexados, três documentos.

A curiosidade começou a mordê-lo. Abriu um dos documentos, era a escritura da compra do palácio pela Câmara, no final dos anos 30. Um outro documento  continha a cópia de um contrato de comodato entre a Câmara e dois criados do conde, Albertino e Palmira, um casal a quem não quis deixar na rua, garantindo-lhes morada para o resto da vida nuns anexos do palácio, com a venda quase todo destinado à nova biblioteca. Noutro anexo, a foto de uma mulher jovem, a sépia, tirada aí sessenta anos antes. Havia ainda uma pasta chamada Palmira com uma série de artigos de jornal, num deles, já antigo, o recorte de uma gazeta de Lisboa relatava a bizarra morte em Sintra de uma criada traída por uma paixão impossível por um patrão a quem a classe social apartava e que, em desespero, se lançara da janela da mansão, desesperando de um  amor impossível.

António recostou-se numa cadeira, pensativo. Voltando ao computador, abriu mais um ficheiro. Outro recorte, com uma foto do conde de Valenças, sorrindo, em baixo uma legenda “Aristocrata vende palacete em Sintra ”. Observou-a com atenção  e virou-se para o quadro atrás de si, era a mesma casa renascentista: janelas trabalhadas, a serra sobranceira atrás. Luís Jardim, o conde, morrera há muito, era a inspiração de Marco para o novo livro, muitas vezes pusera os belos jardins do Duche à disposição do povo, para fruição e lazer.

Havia uma foto familiar num salão com a família do conde, a um canto, uma jovem de olhos penetrantes servia chá num bule de Limoges, uma criada, cujas feições chamaram a atenção de António, uma Pola Negri da plebe, pensou. No verso da foto, os nomes de todos: Luís, Adelaide, o conde da Idanha, de visita, e Palmira, a criada do bule. Começou a abrir mais ficheiros, à procura de partes do livro em que Marco estava a trabalhar, embrenhado já naquela história intrigante. Eram histórias de aparições, e relatos de cenas estranhas ocorridas no palácio, em anos recentes. E por que motivo Marco lhe falara duma tal Palmira ao telefone? O rascunho do livro levantava suspeitas sobre esses incidentes no Palácio Valenças, insinuando que algo misterioso na velha casa estaria na origem de algumas mortes, aparentemente de causas naturais, a última, a de um subdirector do Arquivo, aparentemente de ataque fulminante, certa vez que ficara a fazer serão. Só se deu conta que o tempo passara quando o sol começou a aparecer no horizonte. Pela janela pôde ver os raios nascendo, e o ruído de uma charrete enferrujada, já próximo da casa. Levantou-se, preocupado, pensando se não seria melhor chamar a polícia, o amigo continuava desaparecido, afinal. Na parede, o quadro já não era igual, porém. A visão do palácio Valenças continuava a mesma, mas a janela central estava agora aberta, e atrás dum cortinado branco via-se tenuemente um vulto de mulher idosa, o ponto branco que inicialmente vira minúsculo no quadro. Saiu da casa a correr, e quando chegou à rua, já na Volta do Duche, descortinando a janela do palácio aberta, atrás do grosso cortinado  foi nítida a visão dum vulto branco, igual ao do quadro em casa de Marco, segundos antes. Palmira, já velha, espreitava, antes que o dia nascesse. Quem levaria desta vez?   


sábado, 13 de abril de 2013

O governo dos teóricos



Face a uma crise de proporções anormais, seria de pensar que os melhores e mais experientes seriam convocados para lidar com uma realidade que se sente nos locais de trabalho, escolas, hospitais ou transportes de forma amarga e pesada. Um governo presidido por alguém que nunca geriu uma empresa, e prega a favor do emprendedorismo , chamando piegas a quem não arrisca, mas se acobertou toda a vida em lugares nas juventudes partidárias ou empresas de correlegionários amigos, não pode conduzir o país a uma solução que a todos envolva, olhando as pessoas como compatriotas e iguais, mas como meros números em folhas de Excel ou anódinos powerpoints .
A par do seráfico e académico Gaspar, do universitário Álvaro ou dos tirocinantes estagiários Mota Soares e Cristas, "reforça-se" agora o governo com os "experientes" teóricos Maduro e Lomba, tudo concorrendo para constituir uma associação académica mais que o Governo de um país em crise. É o que há, dirão alguns. Mas se não há mais e melhor, bem podemos começar a tratar dos vistos, ou tomar atitudes consequentes de uma vez por todas. E isto tem a ver com outros partidos, também. Um Governo de emergência nacional tem de convocar os empresários de sucesso, o mundo do trabalho, a academia e todos os que ao longo dos anos com experiência acumulada aprenderam a lidar com as crises, e assim dar avisado contributo. Defensor da juventude e de ideias arejadas, penso porém faltar cabelo branco e o saber da História nos centros do actual poder. Sobram os boys, mas, infelizmente, só bad boys.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Palácio Valenças: fantasmas e ratazanas

 


O Palácio Valenças, em Sintra, antiga residência do conde de Valenças, genro do rico proprietário António Ferreira dos Anjos, que o mandou construir, tem vindo a ser referido num livro sobre casas assombradas de Portugal, nomeadamente por nele se relatar a história do fantasma de Palmira, uma serviçal do conde, que, apaixonada por ele e por um amor impossível, lá se terá suicidado. Com o passar dos anos, tendo a Câmara de Sintra aí instalado a Biblioteca, e tendo uma Palmira, antiga empregada, habitado numa zona inferior do edifício durante alguns anos ainda após a instalação da biblioteca, quando esta faleceu, funcionários mais brincalhões, a fim de assustarem os colegas mais crédulos, começaram a pregar partidas em torno do seu suposto fantasma, provocando o ranger de tábuas, ruídos silvantes ou manipulando os relógios, dando a impressão de os ponteiros andarem sozinhos. Tais histórias são conhecidas, e antigos funcionários da biblioteca, como o Ferrão, o Rodrigues ou o Félix, delas poderiam dar testemunho, se vivos fossem, tendo o “boca a boca” conduzido à pitoresca história que hoje consta de alguns livros, e que, diga-se de passagem, conferem um perturbante mistério a Sintra, para azar da pobre Palmira,  eternamente condenada a alma penada.
Do Valenças, igualmente se conta a famosa história da ratazana suicida. Antigos funcionários da biblioteca hoje ainda recordam de forma bem humorada a história dumas obras numa casa de banho, onde, dum esgoto aberto, terá certa vez saído uma corpulenta ratazana, que, acto contínuo um dos pedreiros terá morto e, pegando pela cauda, lançado pela janela, com tanto azar que foi a mesma estatelar-se numa mesa do Parque das Merendas, onde, incrédula, uma família inglesa a viu cair, vinda do céu. Considerando o caso imperdoável, o inglês, por sinal inspector da Scotland Yard, apresentou queixa na biblioteca, e exigiu explicações, ao que, com bonomia, os funcionários responderam com as tendências suicidárias do perturbado roedor. Valeu a boa disposição do inglês, que percebendo a história, invocou a qualidade de vegetariano para dispensar tão inusitado presente, partindo para Inglaterra com a imagem de Sintra, terra de palácios e ratazanas. Assim nascem as histórias e lendas. E fico por aqui, que sinto a Palmira a aproximar-se, tossindo.