domingo, 25 de novembro de 2012

Recomendação de leitura



Aproximando-se o Natal, e sendo a leitura a melhor sugestão de compras, agora que nos tiraram a vaca e o burro do presépio, coloquem-se  livros junto a ele, assim aquecendo o espirito e valorizando a mente. E como sugestão, a leitura, para quem nunca o fez, do premiado Anno Domini 1348, do sintrense Sérgio Luís Carvalho, obra de 1989, e impressionante fresco da Sintra medieval, num período marcado por uma mortífera peste, narrando com vivacidade e rigor histórico um longínquo período da história da vila, e permitindo imaginar sons, cheiros e personagens, enquadrados pela imutável serra e suas endémicas brumas.
Centrando a trama na última semana de vida do tabelião João Lourenço, em casa esperando a ceifa da morte, em flasback este revisita a sua vida, capítulo a capítulo desfolhando e queimando um incompleto livro de bestiário, e, conformado, fazendo em cinzas sumir besta a besta, uma vida que em dias terá um inexorável fim.
Cadenciado pelas vésperas e primas do sino em S.Martinho, sonora ampulheta dum tempo lento e sofrido, João Lourenço reporta-nos uma sociedade fechada e ritual, onde pontificam seu pai ou o amigo Martim d’Armez, também eles tabeliães, a malograda esposa Branca Vicente, morta após um frustrado parto, Iria Mateus, alcoviteira de Colares, o nefasto prior  Matias Henriques, Gaspar Eanes ou Maria do Adro, a parteira da vila. E na roda do tempo, enquanto percorre a via crucis do fim, queimando à vez figuras de animais do bestiário, recordando a infância e os bolos de Margarida Fernandez, Gil Vasques, prior e seu professor, ou a courela em Galamares. E também os ingénuos tempos de tabelião em Colares, o assassínio de Matias Henriques e a taberna do Ruço, a igreja de Santa Maria e o Hospital da Gafaria, o poço do Romão, o incendiado paço dos tabeliães ou a casa na Pêndoa, onde agoniza uma vida vã e sem razões para viver após a precoce morte de Branca. Tempo ainda para aflorar epidérmicos ódios contra os marranos, a pobreza da vereação de Sintra ou a opulência dos grandes do Reino, que em Sintra caçavam e folgavam.
João Lourenço, tabelião de Sintra e seu legal garante da palavra escrita,“que nela sinal pus, que tal é”, moribunda testemunha do tempo das vésperas, agoniza numa Sintra que o avisado Gaspar Eanes descreve de forma sintética e cabal: “Sintra é como aquelas mulheres do mundo que fazem pelos homens. Dá o seu corpo recebendo algo em troca. Uma mulher do mundo não anda aí a queixar-se da sua sorte. É assim que ela vive. É dessa forma que tem o seu sustento. Como esta vila”. E que, alheia aos humanos e sua sorte, vê os seus  holográficos e precários habitantes soçobrar, sempre ao som de primas, de terças ou de vésperas. Digneres ignem istum, quem nos indigni per invocationem unigenitifilii tui.
Apesar de levar já 23 anos, esta obra, pungente fresco tendo como cenário a plácida e tranquila Sintra, merece ser lida ou relida, num tempo em que novas pestes e outros sinos povoam os corpos e espíritos dos novos tabeliães, alcoviteiras e almocreves. A procurar nas livrarias, ou em especial na livraria da Câmara Municipal de Sintra, no Museu de História Natural, na vila.

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