Defender o Património, nos tempos que
correm, é mais que nunca um dever cívico, porquanto, ainda que o PRR anuncie
amanhãs que brilham, avaras, as verbas continuam incertas, e a eficiência
também. Para os militantes dessa causa, este deve, porém, ser um momento de
vigília, e de não deixar que a frágil árvore desapareça na floresta densa de
dificuldades, cortes e silêncios motivados pela ditadura da dívida, ou
abocanhada por um qualquer orçamento.
Defender o Património, é cada vez
mais, estimular a cidadania, e as boas práticas; é pugnar pela educação escolar
como plataforma para o seu conhecimento e propagação; é descolonizar a memória
de imaginários estafados, acolhendo visões de património, que incluam o imaterial
e o das vivências, amanhã seguramente tradições; é resgatar a autoestima e o
“sentimento de nós”, num tempo de cerrar fileiras, e estimular a identidade que
constrói a nossa idiossincrasia e peculiar forma de estar no mundo; é lançar
pontes e massa crítica, mediar entre o poder público e as comunidades, num trajeto
virtuoso que acentue o pathos de ser português, e sê-lo de modo universalista.
Defender o Património é zelar por
restauros regulares, repor a estatuária nos Capuchos, continuar a repensar o
estacionamento e a sinalética nos lugares notáveis, pensar global para agir
local, devolver vida e criatividade a todos os lugares notáveis.
Defender o Património é estar atento,
ser parceiro com a lealdade de criticar, acompanhar as obras e não depois das
obras, chamar a agir e interagir, atuar virtuosamente e não como agente de
bloqueio ou de egoístas vaidades, atrás de protagonismos ou da negação pela
negação.
Defender o Património é revitalizar a
Quinta do Relógio e o Hotel Netto, a Quinta D. Diniz e o Rio do Porto, não
deixar aboborar a Gandarinhar, repor a desaparecida cúpula do Café Paris,
intervir na Peninha, e rever o preço dos bilhetes, instalar indústrias
criativas e empresas startup, residências artísticas e artistas sem ser a
recibos verdes.
Defender o Património é ser ouvido
antes das podas e das plantações, levar os utentes para a gestão das zonas
verdes, implementar um Plano Verde proactivo, obviar arborícidios e deixar
crescer as espécies endémicas, monitorizar a pegada ecológica e os ecossistemas
milenares, ouvir o som da água dos riachos e o coaxar das rãs, o voo dos
morcegos e a seiva das araucárias, a frágil beleza das camélias e a portentosa
guarda de honra dos plátanos.
Defender o Património é defender o
direito ao silêncio dos caminhantes, o cheiro da terra húmida, o pôr do sol na
Roca ou o palatal degustar dum travesseiro, dum ramisco ou duma noz dourada de
Galamares.
Defender o Património é divulgar e
proteger os vestígios arqueológicos, identificar os tholos, proteger as antas,
recuperar as fontes de água, classificar, promover classificações novas, e
divulgar as mais antigas.
Defender o Património é tocar a
rebate no campanário, sangrar a pena revoltada, cavalgar a comunicação com a
serenidade das emergências para tranquilidade das consciências, visitar,
escrever, protestar, ajudar, ouvir e ser ouvido, passar palavra, dar o murro
certeiro e alertar o adversário, que por vezes é a inércia, outras a
ignorância, as mais das vezes a incúria ou a miopia.
Defender o Património é vivê-lo, e
com ele conviver, como se cada peça, cada cheiro, cada sabor ou recanto, fossem
a mais preciosa relíquia deixada pelos nossos avós e que os nossos netos hão-de
um dia receber, estranhando primeiro, orgulhando-se depois.
Defender o Património é pugnar pelo
valioso presente que resultará da aliança da memória com a autoestima, da
singularidade com o talento, da polis com os seus moradores, dos conventos,
palácios e moinhos, com a serra, as tapadas ou os lapiás.
Defender o Património é aguarelar os
chalés de Raul Lino e o traço de Norte Júnior e Adães Bermudes, a pedra
esculpida de José da Fonseca ou a esculpida palavra de Eça, Francisco Costa,
M.S.Lourenço ou Gabriela Llansol.
Defender o Património é recordar os
que trilharam o caminho, erguendo a tocha dos seres maiores, dos eremitas
jerónimos ao senhor da Penha Verde, dos novecentistas bretões aos cavaleiros da
finança e aos poetas proscritos, de Fernando, o rei artista, ao Carvalho da
Pena, jardineiros de Deus na fértil horta de Klingsor.
Defender o Património é chamar à
formatura e honrar o legado de Cardim Ribeiro, Vítor Serrão, João Cachado,
Adriana Jones, Francisco Caldeira Cabral, Diogo Lino Pimentel, Gerald Luckurst,
Maria Almira Medina, Emma Gilbert, Hermínio Santos, Eugénio Montoito, Pedro
Macieira, Emília Reis, Cortêz Fernandes, Fernando Castelo, Teresa Caetano, João
Rodil, Inês Ferro, Cruz Alves, Ruy Oliveira, Martins Carneiro, Pedro Flor,
Jorge Trigo ou Carlos Manique, entre os muitos que em boa hora renderam Viana
da Mota, Mário de Azevedo Gomes, José Alfredo, Joaquim Fontes, Silva Marques,
António Medina Júnior, Félix Alves Pereira, Octávio Veiga Ferreira, Dorita
Castel-Branco, Milly Possoz, Carlos Viseu, ou Anjos Teixeira, numa lista sempre
incompleta e várias vezes anónima.
Defender o Património é poder ver o
teatro de Pedro Alves, Rui Mário ou Zé Sabugo, Susana Gaspar e Paulo Cintrão,
Gil Matias e Paulo Taful; escutar grupos corais com Miguel Anastácio ou Pedro
d’Orey, o Conservatório e os Bombos, ler Miguel Real, Luís Filipe Sarmento ou
Raquel Ochoa, apreciar a pintura de Edmundo Cruz, as fotos de Nuno Antunes,
ouvir novas sonoridades, reinventando a arte em narrativas dum presente
capturado e desbravando patrimónios de afetos.
Defender o Património é fazer prova
de vida. Contra alguns, algumas vezes, por todos quase sempre. Por Nós.
Fundamentalmente.