quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Das Patologias às Propostas para uma Sintra Sustentável


O quadro sócio-económico do concelho de Sintra revela-nos um território dispare, policêntrico e a carecer de coesão social e territorial, o que deve passar não só por criar apetências nos núcleos consolidados, como novas centralidades, evitando a fragmentação urbanística decorrente de aprovações casuísticas, apesar dos planos existentes.

Para tanto, há que apostar na reabilitação urbana, finalizar o processo de legalização dos bairros clandestinos, optimizar a rede de transportes, com aposta no sector ferroviário, criar um corredor verde entre a serra de Sintra e a Carregueira, por exemplo.

Como pontos fracos a ultrapassar, identificaria os seguintes:

1. A dimensão do concelho, e as suas realidades diferenciadas, interseccionadas pela zona-tampão de Chão de Meninos/Ranholas, que separa as “duas” Sintras, com realidades diferenciadas.

2. A sobreposição de planos e entidades, que criam uma cacofonia de gestão e não permitem ao decisor dos licenciamentos- a autarquia- uma assunção plena do seu papel, sendo certo que é a única com génese democrática e escrutinável.

3. A resiliência da administração local à agilização de procedimentos, numa postura penalizadora para os munícipes e seus projectos de investimento.

4. A quase paralisia do sector de planeamento, com inúmeras planos de urbanização e pormenor a marcar passo, penalizando quem espera por decisões e desincentivando a iniciativa reprodutiva de emprego e crescimento.

5. A multiplicidade de jurisdições de decisão- CMS, PNSC, PSML, IGESPAR, Região Hidrográfica, CLAFA, CCDR, etc.

6. A deficiente fiscalização da legalidade, raramente se fazendo valer a sua natureza preventiva e desincentivadora de intervenções ilegais no território.

7. A ameaça das decisões judiciais que imponham o respeito por direitos adquiridos originados em decisões tardias ou mal fundamentadas e às quais ao arrepio dos planos haja que dar cumprimento.

8. As lacunas ao nível dos cuidados de saúde (hospital) e de estabelecimentos de ensino superior, para os quais com opções recentes terá porventura passado a janela de oportunidade de ver implantados no concelho de Sintra, pelo menos nos tempos mais próximos.

9. O segmento do turismo ainda baseado no excursionismo, com uma média de dormidas no concelho de 2,3 noites (Cascais tem 3,4) e apenas cerca de 1500 camas entre hotéis, pensões e demais alojamentos.

10. A degradação do Centro Histórico, desertificado, sem plano actualizado e sem atractividade para moradores e visitantes.

11. O envelhecimento da população nas freguesias rurais e a falta de emprego para os jovens nas zonas urbanas que os fixem, permitindo a mobilidade social e a exponência de massa crítica e criativa.

12. A falta de apoio ao comércio tradicional e às PME (96% das empresas tem menos de 9 trabalhadores).

13. A falta de um plano de marketing territorial assente nas virtualidades das pessoas e não só no património histórico, sendo que a marca romantismo não é idónea a caracterizar um concelho onde apenas 10% da população vive na Sintra dita “romântica”.

Para tanto, dever-se-iam priorizar alguns nichos de intervenção:

-Apostar no segmento de eventos, no turismo de saúde, no ensino profissional e na agro-indústria transformadora, atento o facto de, apesar de desprezado, o sector agrícola ainda oferece vantagens competitivas pouco exploradas (vinho de Colares, pêra rocha, hortícolas, etc).

-Apostar numa rede de hotéis de charme e quintas de lazer, a par de espaços para bolsas mais débeis e na introdução de parques de campismo (quase inexistentes) e hostels de pequena dimensão.

-Criar bolsas de estacionamento e uma rede de mini buses que atravesse as zonas críticas e a carecer de preservação ambiental.

-Apostar no transporte público no acesso à serra e seus pólos turísticos (porque não preços mais moderados para quem aceda aos palácios de transporte público, sendo o bilhete de entrada e transporte vendidos em conjunto, e com um diferencial de preço significativo?).

-Reforçar a sinalética e as placas explicativas dos monumentos a visitar, bem como dos pontos de maior interesse.

-Adoptar benefícios em sede de taxas ou impostos a quem voluntariamente recupere edifícios e património, bem como destinar 1% do montante cobrado em sede de contra-ordenações para um fundo de reabilitação urbana.

-Explorar as virtualidades da biomassa e dos combustíveis não poluentes e amigos do ambiente.

-Criar estímulos à arquitectura rural e tradicional.

-Criar uma bolsa de emprego rural, no quadro duma política efectiva e pró-activa de retorno ao mundo rural, e estimulando as hortas urbanas e a agricultura biológica.

Os espaços urbanos ocupam já 47% do território sintrense, pelo que há, no futuro, que actuar com parcimónia nas futuras áreas urbanas programadas, atento o facto de ainda subsistirem 100 áreas urbanas de génese ilegal, ocupando a REN 35% do total (incluindo espaços culturas e naturais).

Se é certo que o número de licenciamentos entre 2001-2009 ficou pelos 9.908, 1/3 do total da década anterior, o facto é que o concelho dispõe já de 180.000 fogos, 12% do total da Área Metropolitana de Lisboa, e dispondo de um número razoável de equipamentos e do grau de cobertura dos mesmos- 77 creches, 184 jardins de infância, 19 equipamentos desportivos, 25 centros de dia, 28 lares, 15 jardins de infância, 62 escolas básicas e básicas com o 1º ciclo, 18 escolas básicas com o 2º e 3º ciclo e 7 secundárias. Ao nível do ensino superior a oferta reduz-se, porém, contabilizando-se apenas a Academia da Força Aérea e o campus da Universidade Católica no Taguspark.

O tecido empresarial tem vindo a sofrer mudanças profundas desde a crise de 2008, tendo sido relevante tal mudança ao nível da construção e comércio, sector onde haviam nessa data 4075 e 8412 empresas, respectivamente, ocupando o 2º lugar a seguir a Lisboa e garantindo nessa data 15% do emprego na região da Grande Lisboa. É pois com esse quadro, e tendo em conta muitas (não todas) patologias aqui elencadas, que se deve desenhar o concelho de Sintra, num quadro metropolitano, reflectindo aquilo que se deseja para os próximos anos. Ouvindo as partes, que são parte do Nós, e não o Outro, intruso e amorfo. Para uma verdadeira Democracia do Território.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O PDM e o princípio da proporcionalidade

                                                        Fotos-Luís Galrão


A convite da Junta de Freguesia de S. Martinho participei numa sessão sobre a revisão do PDM na delegação dessa junta na Várzea de Sintra no dia 24. Para além das mudanças de paradigma que Sintra e o país experimentaram com a brusca queda do boom da construção e a necessidade de reorientar o concelho para um crescimento sustentável e gerador de emprego, de preferência acabando com os movimentos pendulares que diariamente levam o grosso da população para outros concelhos, há que ponderar algo que é igualmente importante como seja a forma de compensar aqueles que vêm os seus terrenos desvalorizados ao ficarem sujeitos a servidões ou restrições legais pelas quais não são compensados, numa autêntica expropriação por via do Plano, sem indemnização ou com reflexo no tratamento fiscal desses prédios.

O princípio da proporcionalidade comete à Administração a obrigação de adequar os seus actos aos fins concretos que se visam atingir, adequando as limitações impostas aos direitos e interesses de outras entidades ao necessário e razoável; trata-se, assim, de um princípio que tem subjacente a ideia de limitação do excesso, de modo a que o exercício dos poderes, designadamente discricionários, não ultrapassem o indispensável à realização dos objectivos públicos, assumindo assim três vertentes essenciais:

- A adequação, que estabelece a conexão entre os meios e as medidas e os fins e os objectivos

-A necessidade, que se traduz na opção pela acção menos gravosa para os interesses dos particulares e menos lesiva dos seus direitos e interesses

-O equilíbrio, ou proporcionalidade em sentido estrito, que estabelece o reporte entre a acção e o resultado.

Dispõe o nº 2 do artº 266º da Constituição da República Portuguesa:

 Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”

E o artigo 5º nº2 do Código do Procedimento Administrativo:

“As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar”

Também estes princípios devem ser vertidos e tidos na devida conta por quem planeia, gere e ordena o espaço que é de todos. É tempo duma Democracia do Território que acabe com tratamentos desiguais e a todos permita potenciar a sua propriedade, seja por ocupação produtiva, perequação ou ressarcimento adequado, no quadro de um documento aberto à evolução sócio-económica do país e do concelho, e às várias realidades conjunturais. As pessoas primeiro.


Menos entidades a mandar em Sintra!

Por princípio democrático, as populações elegem os seus representantes para que estes administrem ao nível autárquico (concelhos e freguesias) o território municipal, e assim deve ser: a história, a proximidade, o conhecimento dos problemas, assim aconselham, resguardados que estejam mecanismos de controlo democrático, a fiscalização legal e a participação de todas na res pública. Sucede contudo que invadindo e até desvirtuando o poder local enquanto verdadeiro poder se atravessa, hoje sem razão e como autêntica força de bloqueio, a força cinzenta, não eleita e redutora, muitas vezes, dos órgãos da Administração Central, que, por receio de se verem condenados à extinção, insistem (insiste o legislador) em mantê-los como poderes paralelos, sabotando ou coarctando na prática tarefas que as autarquias podiam e deviam desenvolver e a quem, em caso de responsabilização mais fácil seria aos administrados pedir contas, nas urnas ou nos tribunais.

Havendo quadros legais e regulamentares que presidem a matérias como o património, o planeamento urbanístico, a educação, a cultura, etc, para quê esse resquício napoleónico e desconfiado do “parecer vinculativo”, havendo instrumentos que tanto a Administração Central como as autarquias, por força do princípio da legalidade devem prosseguir? Os técnicos e eleitos locais não sabem ler a lei? Para quê um Parque Natural para dar pareceres sobre um plano publicado?  Não seria mais útil apostar na coordenação de acções de conservação da natureza a nível nacional? Para quê tantas entidades, e para quê garantir que se estas se atrasaram podem os processos seguir deferidos tacitamente, se quer a administração central ou os tribunais nunca vão decidir nesse sentido atempadamente?

É preciso descentralizar, mais que desconcentrar. É preciso confiar nas autarquias, é preciso aligeirar. Não são só os processos executivos que tanto preocupam a troika que devem ser alvo de preocupação. Também agilizar os licenciamentos, cujas delongas tantos danos têm trazido à economia portuguesa, dando mais poderes às autarquias, que sempre “pagam” pela lentidão de processos que não estão totalmente nas suas mãos, e permitindo o relançamento da economia, é necessário. Daí uma sugestão: acabe-se com as consultas a entidades quando a verificação das conformidades legais possa igualmente ser feita localmente. Manter o estado actual é desconfiar, recear perder poder, e prejudicar os agentes económicos que ainda restam.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Murmúrios no Legendary

A televisão estava ligada, num preto e branco sumido passava pela enésima vez O Pátio das Cantigas, a cena do candeeiro, apesar de vista e revista, era sempre impagável. Actores histriónicos, dos que já não há mais, pensou Aníbal, concentrado no novo livro e dedilhando o portátil em busca das palavras certas. Escrever é ingrato e forçoso se torna ignorar os leitores, invasores sem licença profanando as palavras escritas, interiorizou, pensando uma coisa e escrevendo outra. Aníbal passava problemas pessoais: a Luísa deixara-o, o editor atrasava-se no pagamento, carrancudo, o médico torcera o nariz aos exames, o fígado estava uma lástima. Despegado, desde que houvesse para o gin, o talento fluiria à velocidade dum gole, pujante orgasmo da palavra correndo solta até que, saciado e  vingador, o dedo furioso se cansasse de martelar o te.lado.
A cena do candeeiro transportou-o para a sua própria realidade. Como o Vasco Santana do filme, sentia a invasiva solidão. Amigos de sempre haviam-se afastado, vegetava emocionalmente, não arengando a um candeeiro num pátio esconso e silencioso, antes náufrago entre palavras soltas, escrevendo, vingador, vomitando o desprezo em letras que talvez alguém lesse, quanto mais não fosse, o Semedo da editora.
Cansado da escrita, deu um pulo ao Legendary para um gin, intervalo para matutar no romance. Fartara-se do personagem principal, queria matá-lo, mas ainda só tinha trinta páginas, era cedo, como ele, alcoólico perdido, nada de autobiográfico, claro, embora nada os separasse a não ser o facto de o personagem praticar vudu, ao matá-lo, matar-se-ia a si, o resto do livro seria em flashback, talvez os leitores no fim tivessem saudades do herói.
Patrícia era uma jovem universitária. Dezanove anos, um livro de Philip Roth a meio, sempre se interessara por Aníbal, um professor já dele lhe falara como um grande talento. Ao vivo, próximo e ao mesmo tempo distante, observou-o de longe no balcão do Legendary, macilento e emborcando o gin como um rito, em nada condizia com o pujante Aníbal Gralheiro a quem a crítica saudava como grande talento. Avesso à vida mundana, dava poucas entrevistas, o editor até concordava, o epíteto de escritor maldito era bom para o marketing, funcionara com o Jorge de Sena e o Lobo Antunes. Já voltava para casa, onde apenas estava o Troika, o gato que recolhera da rua e o teclado, sedento de geniais palavras ou expectante por um súbito delete, quando Patrícia decidiu abordá-lo, um sorriso jovial e esfíngico, deixou-o interessado:
-Você é o Aníbal Gralheiro, não é? O meu professor de Literatura já me falou em si! –cumprimentou, o Philip Roth debaixo do braço deixava entender ser instruída. Aníbal, surpreso, esboçou um riso artificial e ensaiou um esgar, mais uma idiota embevecida pela sua obra, desde que o Vargas no Jornal Literário o chamara de “genial” passara a best-seller no Continente:
-Sim? Também gostou da “Profanação em Líquido”?
-Não! -ripostou, segura e mudando de expressão. -Acho que você é um frustrado, sem sensibilidade para entender os outros. Acho até que escreve sobre coisas que não conhece. É uma fraude, um personagem à procura do reconhecimento do autor!
Aníbal embasbacou. Como se atrevia!. Nunca devia ter lido nada seu, senão sinopses idiotas, ou resumos no Google, que percebia ela de escrita. Simulando indulgência e segurando a situação, lançou-lhe um sorriso cínico, entre o perdido e o conformado:
-Muito bem! Já vi que temos novo ogre literário a caminho! Adoro os pseudo-intelectuais, sabe, são óptimos para levar às vernissages de pintura, ficam bem na fotografia e sempre dão um ar de cultos! -sem as palavras certas, enveredou pelo cliché, magicando como o seu personagem se sairia duma destas, mas teria de ter uns seis confortantes gins de avanço. Ali era só um cliente, com a costumada crise balcânica, que diariamente cultivava ao balcão do bar, antes de na cumplicidade da noite virar o talentoso autor aplaudido pela crítica.
Patrícia sorriu, dominadora, e saiu apressada, deixando um comentário complacente:
-Quando conseguir ser uma pessoa, talvez venha a ser um escritor. Até lá, sabe o que é?É um administrador de fantasmas. E histórias como as suas não são o meu estilo, prefiro o original à cópia, o sofrimento sempre é mais autêntico, sabe? Tchau!
O Fred do Legendary escutou tudo, aviando uma imperial, mas concordando com ela. Humilhado, Aníbal pediu outro gin e saiu, danado. Em casa, pontapeou o portátil, num acesso de fúria, afugentando o Troika, que dormitava, e sentou-se no cadeirão. Na televisão, O Pátio das Cantigas chegava ao fim, o Rufino do candeeiro, por amor à senhora Rosa abandonava a bebida e incensava o leite com a filha do Brasil e já curado, marchavam a filambó felizes para todo o sempre, a palavra FIM depois do beijo deixava antever que sim.
Apanhando o portátil do chão, sentou-se com a cabeça entre as mãos e olhando a garrafa do gin, atirou-a contra a parede, fazendo delete das páginas do novo livro, o personagem morria antes de nascer.
No dia seguinte telefonou à Luísa, com a voz trémula pediu-lhe para a ver, queria o contacto do Anselmo, que fizera uma cura de desabituação. Pela tarde, voltou ao Legendary, numa mesa, Patrícia, vaporosa, tomava café com o namorado. Pediu uma Frize, que bebeu ao balcão, em silêncio, e ao sair acenou-lhe. Sem que ela tivesse tempo de dizer algo, levantou a mão e soletrou um silencioso “Obrigado!”
 

domingo, 27 de janeiro de 2013

Morte no deserto



O dolente e desconcertante exército deslocava-se entre areias revoltas, Larache ficara para trás, a pouca distância, alheadas, cabras comiam urtigas. Era 1 de Agosto, há uma semana haviam largado do Reino e nem sombras de Abd-Al-Malik.

André Gonçalves, segundo alcaide-mor de Sintra e o cunhado, João de Castro Albuquerque, neto do vice-rei D. João de Castro, engrossavam voluntários o anacrónico mar de gente arrebanhado para a aventura de D. Sebastião, qual Lancelot em busca de Avalon. André Gonçalves, por morte do pai, sucedera não só no juro de cem mil réis que lhe pertencera, como em toda a Casa e Morgado de Ribafria. Comendador de S. Mamede de Sortes na Ordem de Cristo, Porteiro-Mor de D. Sebastião, era, tal como o pai, alcaide da vila e castelo de Sintra. Contava trinta e oito anos, o cunhado dezanove. Sempre juntos, partilhavam tenda e criados, em Sintra, com o rei muitas vezes haviam juntos passeado a cavalo. Entusiasmados com a empresa em África, seguiam na babel de guerreiros onde se juntavam criados, rameiras, camponeses e carros de bois, o improvável exército de Portugal.

Largados do Reino a 25 de Junho, passaram a Tânger, onde se juntou o rei aliado, Abu Abdallah Mohammed II Saadi, daí seguindo por terra para Arzila e Larache. André Gonçalves e João seguiam com os cavaleiros de Tânger, Adalid, o batedor enviado por Mohammed e mais cem homens patrulhavam as colinas ocres onde apenas cresciam cardos secos, enfrentando o suão com animais sedentos. Na tarde de dois de Agosto, chegaram à margem esquerda do Mekhazen, afluente do Loukkes, que contornaram no dia três, atravessando um vau transitável, já os homens acusavam exaustão. André Gonçalves coordenava a distribuição de alimentos, uma vaca e dois alqueires de biscoito por companhia, cinco mil mouros vigiavam a menos de duas milhas. O rei tudo aceitaria, desde que lhe não tirassem o privilégio de ser o primeiro a combater.

Amanheceu finalmente o dia 4, dia de S. Domingo de Gusmão. O exército de Abd Al-Malik, que agonizava numa liteira, estava já perto dos exércitos de Sebastião e Mohammed. Morabitinos arrebatados e gritando na colina ao fundo, exibiram os símbolos do crescente, prometendo o céu aos soldados. Pela alvorada, André Gonçalves rezou, recolhido, menos arrebatado, observou o terreno, demasiado exposto e com a retirada dificultada pelo rio. D.Duarte, o alferes-mor, iluminaria o rei sobre decisão a tomar, pensou. A seu lado, João tinha um ar determinado, ansioso por glória e honra, para si e para o Reino, fronteiro da Cristandade.

Depois de envergar a armadura, azulada e debruada a ouro, e de elmo no braço, o rei dirigiu-se aos homens, alinhados. Após o discurso de incitamento, o padre Alexandre, da companhia de Jesus, levantou um crucifixo ao alto e todos ajoelharam. Era chegada a hora. Nesse mesmo instante, longe dali, em Velilla, Aragão, os sinos tocavam a rebate, anunciando a derrota do exército português. Fatídica premonição…

A batalha estava em marcha, os atabales deram o sinal para a batalha: no campo português todos gritaram pelo nome do rei, inspirados para a vitória. André Gonçalves integrou o terço de Vasco da Silveira, do lado dos de Abd Al-Malik, formados em meia-lua, Mulei Ahmed, irmão do rei moribundo comandava. Quinze mil cavaleiros, sob comando de Abraham Suffin, alcaide de Alcácer-Quibir, formaram num semicírculo, qual lâmina de foice, pronta a envolver o temerário exército, chefiado por um garoto intrometido em disputas de família. Ao tocarem as trombetas, um arrepio na espinha atravessou André Gonçalves. Eram oito da manhã. Duas horas depois, os mouros tomaram a iniciativa, com tiros de artilharia. Os portugueses vacilaram, ignoravam que os mouros tivessem armas pesadas. Logo dois cavaleiros caíram mortos e os soldados, mais familiarizados com arados e enxadas, entraram em pânico. Depois de hesitação, os aventureiros, cabeça do exército, avançaram, mesmo sem ordem de combate. João de Castro juntou-se-lhes, com maça e espada. Era hora de fazer tremer os africanos, porém, logo tombaram, varados por setas assassinas. André Gonçalves não mais o voltou a ver, espezinhado e sumido na poeira.

Sem que ninguém se apercebesse, Abd El-Malik morreu entretanto, na liteira, o que os seus ocultaram, na frente a sorte balançava. D. Sebastião trocou de cavalo e continuou bramindo a espada, desfigurado e temerário. Mohammed, o aliado, pouco se expôs, o exército parecia um barco à deriva e sem comandante. Preocupado, D. Luís de Meneses pediu ao rei que se cuidasse, a sua salvação era precisa para segurança do Reino, mas ele repeliu-o, cerrando os dentes. Pouco passava do meio-dia, André Gonçalves foi atingido com uma flecha no rosto, tão funda que só deixou de fora as penas. Vendo o fim próximo, resistiu com as forças que lhe sobraram, até cair também, junto ao rio. Os terços adiantados do exército rendiam-se, impotentes, varados por setas e arcabuzes, sendo de seguida massacrados e despojados, num verdadeiro açougue exterminador dos jovens de Portugal. Pelas duas da tarde, já só D. Sebastião resistia, frenético, quando cinco mouros lhe cercaram o cavalo. Muhamad fugiu, atravessando o Mekhazen e morreu afogado. Pouco depois, também o vulto alvo do rei sumiu também, na voragem dos corpos e artilharia. Eram três da tarde do último dia de Portugal.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Filomena Marona Beja, a escritora avara em adjectivos



Escreve desde os 5 anos, mas tarde se deixou editar. Filomena Marona Beja, revelação com As Cidadãs em 1998, foi a convidada da tertúlia mensal da Alagamares, dia 25 de Janeiro no Saudade, com a moderação de Miguel Real e Sérgio Luís Carvalho. Com uma obra que passou em 2007 pelo Grande Prémio da APE de Romance e Novela com A Cova do Lagarto, define a sua escrita como de muitos substantivos e poucos adjectivos, aparentemente para deixar fluir a narrativa sem dela se apropriar, deixando o leitor seguir a trama como sua e não só conduzida pela mão e olhos do escritor que a tece. Assim acontece ao descrever a figura do ministro de Salazar, Duarte Pacheco, em A Cova do Lagarto, ou com a narração da morte do operário José Carvalho por energúmenos de direita em Bute daí Zé!. O mundo de Filomena Marona Beja é um mundo sensorial virado para as coisas dos nossos dias, num voyeurismo militante captado por uma visão simples das coisas mas dentro da sua desordem emocional, que ela deixa ao leitor para desvendar, silenciosa passageira dum virtual eléctrico que atravessa a Cidade-Mundo, captando os operários para o emprego, as vidas para a encruzilhada, e os homens no seu claro-escuro aflito. Bute daí ler Filomena Marona Beja! 

Reportagem sobre a tertúlia com Filomena Marona Beja no Sintra Canal
http://www.sintracanal.tv/html/?v=Hb9rr0gEPf

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A revisão do PDM e seus equívocos


Se o actual PDM de Sintra, de 1999, teve por base estudos já de 1986, este, que verá a luz do dia lá para 2015, na melhor das hipóteses, começa tendo por referência números de 2008, e um quadro que ignora os Censos 2011 e a mudança radical que houve no país e em Sintra nos últimos 3 anos, pelo menos, factos que se crê teria havido tempo para rectificar antes de passar a esta fase.
Partindo desse quadro, põe-se agora à discussão pública a revisão do dito instrumento estratégico  para mais 10 anos, numa altura em que a pressão urbana estancou e o paradigma se alterou, e se demonstra à saciedade que planos a 10 anos, estáticos, "vacas sagradas" da proibição e falhos de monitorização, estão longe de servir de motor de progresso ou de satisfação das populações, apenas ouvidas para cumprir calendário e dar uma roupagem de participação a um documento já cozinhado, no qual as vozes dos munícipes se perderão na esquizofrenia dos poderes erráticos, da Administração Central e das entidades de facto.
Participei como orador, ontem, numa sessão sobre a revisão do PDM de Sintra na junta de S.Martinho, e foi curioso constatar estar-se a discutir sem base de partida e perante documentos a seco. Mais curial teria sido que os técnicos tivessem precedido esta fase de reuniões com deslocações às freguesias, e ao encontro das populações, recolhendo a expressão das suas vontades e registando as suas angústias, ao invés de remeter para algo que pode ser óptimo, mas também péssimo, disponibilizando os textos (desactualizados) apenas na Internet, mas sem a possibilidade de se formularem sugestões directamente nesse sítio ou noutra plataforma. Assim, permite-se a maior das confusões, a principal das quais é dar a ideia que a intervenção das pessoas nesta fase poderá ter efeitos imediatos, sem balizar os limites da revisão e explicar detalhadamente do que que se fala quando se fala em PDM.
A overdose de planeamento que se verificou em Portugal depois dos anos 90 provou à saciedade que o problema não são os planos, mas a sua opacidade, e a falta de agilização de acordo com a evolução da economia, não sendo raros os planos que vegetam no limbo dos gabinetes anos a fio e aqueles que apenas servem para o olímpico "não" da Administração, sem acrescentar soluções ou dar pistas a cidadãos e promotores, falhando assim o seu papel de ferramenta para o desenvolvimento e não de gongorismo quixotesco, com laivos de linguagem up to date.
Estando o processo numa fase inicial, há tempo para corrigir procedimentos, chamando as pessoas ao processo e imprimindo dinamismo e debate real, sob pena de acontecer o que ocorreu com a reforma das freguesias: ouvir, mas não escutar, apelar à participação mas sem vinculação à vontade expressa, dizer-se democrata sem praticar a democracia, para muitos semântica excrecência e engulho a que de tempos a tempos se tem de dar espaço. E apostar no planeamento dinâmico, com incidência em planos de menor escala e de actualização permanente, sem clausura do território em classes de espaço estanques e sem um programa de investimentos activo e pró-activo que concretize metas e não espere sentado pelos promotores ou interessados, passivamente e de espada na mão.
Isto, no que respeita à metodologia e ao pathos democrático, já sem falar nas vertentes estratégicas, as quais, como muito bem disse um participante, oscilam de acordo com a Sintra em que as pessoas se reveem: a dos castelos e litoral ou a do corredor de betão, a do terciário e serviços ou a dos hortícolas saloios. Uma dúvida existencial a dissipar, com o tempo, e a pensar no pós-troika, a que Sintra, sendo não uma mas várias, ainda não conseguiu dar resposta.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Generosos ou mesquinhos?


A recente tragédia na serra de Sintra levou a Parques de Sintra-Monte da Lua e associações cívicas a apelar para uma acção de voluntariado, no sentido de ajudar nas limpezas, no sábado, 26 de Janeiro.
Globalmente solidários, muitos se ofereceram e passaram palavra, nas redes sociais e pessoalmente, num sentimento de defesa do que é nosso e que os elementos, avaros, quiseram destruir. A esses, o saudável sentimento de pertença, de ligação às raízes ou conforto moral veremos ajudando no que for preciso, limpando uma berma, varrendo os galhos ou transportando folhas secas, sintrenses ou não, cidadãos, porém.
Outros, contudo, não perderam ocasião já para deixar vir ao de cima os sentimentos mais mesquinhos e egoístas, próprios afinal da natureza humana.Desde descartar-se alegando que os preços de entrada nos parques são suficientes para pagar as limpezas, ao revanchismo primário de contrapor à proibição da prática de certas actividades ou desportos radicais uma supostamente legítima escusa, rancorosa, própria de quem da sociabilidade e civismo nem o significado demonstra saber.
Outros ainda demonstram uma solidariedade semântica, por bem parecer, alegando depois afazeres inadiáveis ou compromissos de última hora, deixando por vezes ímplicita a solidariedade se daí vier algum provento, seja monetário, seja na divisão da lenha que dos abates resultar, porventura.
A solidariedade e o voluntariado implicam despreendimento e atracção pelas causas, e não vaidades empoleiradas ou apoios com contrapartida. Pensem nisso, tanto os que não vão como os que tencionam ir de reserva mental. 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Apelo ao voluntariado

Na sequência do temporal que assolou Sintra no último fim-de-semana, a Parques de Sintra - Monte da Lua convida à inscrição de voluntários para colaborarem numa campanha de limpeza a ter lugar no próximo sábado, dia 26 de Janeiro, no Parque da Pena. Durante a semana, os profissionais da Parques de Sintra estão a avançar com a maior rapidez possível no corte e remoção das árvores, bem como nas limpezas mas, no sábado, será possível receber voluntários para apoio nas limpezas que não envolvem riscos de segurança, explica a empresa.
Embora já tenham sido reabertos os acessos aos Palácios da Pena e de Monserrate, a tempestade de dia 19 causou a queda de mais de 2000 árvores e inúmeros ramos e, consequentemente, toda a área de parques e jardins necessita de ser limpa: "as valetas precisam de ser desentupidas, os muitos ramos e folhas têm que ser varridos e, no geral, são necessários grandes esforços para permitir o regresso do Parque à sua normalidade, reabrindo-o à circulação de visitantes por todas as áreas."
Nesse sentido, a Parques de Sintra convida todos os que quiserem colaborar, para que participem durante a manhã (10h/13h) ou durante a tarde (14h30/17h30) de sábado, na resposta àquela que foi uma situação única na História da Serra de Sintra, e que ficará certamente na memória de todos.
É obrigatória a inscrição prévia através do npa@parquesdesintra.pt ou do telefone 21 923 73 00 (crianças apenas a partir dos 12 anos e sempre acompanhadas de um adulto).
Serão disponibilizadas ferramentas de trabalho e coletes reflectores para cada participante.
A Alagamares apoia esta iniciativa e apela aos seus associados, amigos e população em geral, para que se inscreva e colabore nesta imperiosa tarefa de limpeza.