Estou
triste. Partiu José Mário Branco, e com ele um pouco de mim também parte,
como inexorável e cruelmente vão partindo muitos daqueles que anunciaram a
madrugada redentora de Abril, e hoje ainda nos incentivavam relembrando só ser derrotado quem desiste de lutar. Esta notícia remeteu-me
para esse tempo hoje a sépia de felicidade e de orgasmo colectivo duma geração que sonhou,
e lutou.
Escutando-o, agora, recordo emocionado aquela longínqua quinta-feira de Abril em que não houve
aulas, e o "ponto" de Física foi adiado por causa duns militares
estacionados no Terreiro do Paço. O meu avô telefonou a aconselhar que não
saíssemos de casa, chuviscava, em dia cinzento, a televisão, silenciada, passou
um episódio do Daktari. Contente por não haver “ponto”, aproveitei e fui ao
barbeiro, onde corriam boatos sobre o sucedido, um golpe de Estado, asseverava
o Taborda. Aos catorze anos, ignorava o que fosse tal, mas um dia sem aulas era
motivo de festa.
No dia
seguinte, achei a escola agitada. Acossado, o porteiro do D. Pedro V fora
preso, informador duma tal PIDE, anormalmente, o Miguel, neto do Marcelo
Caetano, não apareceu, o avô viajara para a Madeira na véspera. No sábado
seguinte, depois duma avalanche de acontecimentos, e debaixo de chuva miudinha,
subi ao Carmo, onde soldados com cravos nas armas e pendurados em blindados
tiravam fotos com os populares. Lisboa, cinzenta e molhada, exultava de alegria.
Na estátua do Rossio, guedelhudos invectivavam os transeuntes, apelando à sua
prisão, agentes da PIDE, denunciavam, levando à sua detenção por populares
acirrados, um tal Saldanha Sanches, de megafone na mão, clamava contra os
traidores fascistas.
Em poucos
dias, tudo mudou. O “careca megalítico”, de História, até ali sempre
sorumbático, mostrava-se simpático e adepto da nova situação, opositor
silenciado durante anos, rejubilava, receoso, o professor de Moral, esse, temia
a anarquia. Embriagado pelas notícias da liberdade que de todo o lado choviam,
animado por canções de protesto nunca antes escutadas, aos quinze anos, feitos
entretanto, descobri mundos escondidos, os sons de José Mário Branco, do Zeca, do padre Fanhais, de Luís Cília e
Adriano Correia de Oliveira, na sala de alunos, manifestos policopiados e jornais de parede
diariamente apelavam a RGA’s, onde se discutia tudo em acalorados plenários.
Nas semanas
seguintes, o país transfigurou-se, a escola entrou em ebulição, os partidos
dividiram as opiniões, os plenários foram sendo organizados, a democracia
gatinhou, vendo os jovens a tornarem-se homens. Nada poderia deter a força
indómita da geração da liberdade, prometendo escola para todos, a servidão
enterrada, e um futuro a despontar por culpa duma manhã de Abril, em que para
gáudio da turma não houve “ponto” de Física.
Passada a
embriaguez desses dias límpidos, acreditei que para sempre haveria de viver num
país livre, qualificado, progressivo, de baby boomers com vinte anos de atraso,
mas a tempo ainda de apanhar o comboio. O futuro era azul cor de mar e verde
melancia, só coisas boas poderiam vir, depois de anos de silêncio e mudanças
bruscas.
Foram tempos
gloriosos. Comunicados policopiados, pichagem de paredes, oportunos e
revolucionários “copos” no Bolero ou no Jamaica, para tudo acabar em olheiras
no reconfortante Cacau da Ribeira.
Portugal
mudou muito, entretanto,hoje já não há slows dançados nas garagens dos amigos ao
som do Hotel Califórnia. Uma utópica alegria de rasgar caminhos nos uniu, e,
apesar de madura, essa recordação sobrevive ainda, na nostalgia de amigos de
Alex, a contas hoje com a tensão arterial ou com a próstata.Coexistiam Zeca,
Pablo Neruda ou os Fisher-Z, perdidos nos esconsos das garagens, onde após
lânguidos slows se prometiam amores eternos, e o nirvana do Shangri-La
socialista. Foi no velho Hot Club que apanhei as primeiras “cardinas”, chamando
princesa a uma desdentada, que por vinte escudos prometia felicidade à porta do
Fontória. A vida era marcada pelos bares: o Archote, o Whispers, o Bolero, mais
tarde o Jamaica, o Bora-Bora e o Charlie Brown, mais burgueses o Ad Lib ou os
Stones, atrevidos, a Cova da Onça e o Pipodrom junto ao Coliseu, onde por uma
moeda de vinte cinco escudos se espreitava pelo óculo a Olga de Jurídicas, fazendo streaptease para
pagar os estudos. Todos os rapazes da turma lá foram várias vezes, esbugalhando
os olhos ante a visão celeste do corpo alvo da hoje ilustre advogada em
Portimão.
Os anos
passaram, a nosso modo respondemos à chamada do tempo, de sangue na guelra para
as causas generosas, razoavelmente exigindo os impossíveis, pois só salvando o
mundo nos poderíamos salvar. Salvou-se a memória, o orgulho de ter tentado, a
certeza de não ter desistido.Hoje, como ontem, atrás de tempo, tempo vem, e
todo o tempo é, e será sempre, composto de mudança. E José Mário Branco foi um arauto dessa mudança, dos anos sessenta até hoje. Até sempre, Zé Mário!