Amanhecia o dia 1 de Novembro e a Igreja celebrava a festa
de Todos os Santos. Sábado sereno, sol claro e céu nimbado, findava o ano de
1755 e reinava tranquilo o senhor D. José. Cadenciados, os fiéis afluíam à
missa em S.Martinho, celebraria D. Raimundo Miranda Henriques. O juiz dos
órfãos, o vigário da vara, o capitão-mor e todas as famílias de Sintra enchiam
a nave em dia grande no calendário litúrgico. Chamativo, o sino na Torre da
Vila repicava. Francisca Aires, a filha Tomásia e Maria Lemos, viúva de Teodósio
dos Santos, mesário da Santa Casa, foram as primeiras a chegar, roupa a
condizer com a solenidade, recordando os que já estavam no descanso do Senhor.
-Que dia bonito!
Nem parece Novembro! -comentou Tomásia para a mãe, dezassete anos incompletos e cabelo cor de
azeitona.
-É o Verão de S.
Martinho, minha filha! –lembrou a mãe, com a mantilha cobrindo os cabelos, também o marido se
finara já.
D. Raimundo, há vinte anos pároco em Sintra, nomeado pelo
cardeal D. José, uma vez mais cumpria o ritual dos sagrados mortos, o negro,
farda da dor, por longos meses lembrava os que partiam para junto de Deus, só a
esperança na redenção das almas ajudava a aliviar a perda. Em todas as casas
havia um falecido a lembrar, uma novena para rezar, sepulturas para cuidar,
vivos e mortos no temor a Deus.
-O Senhor esteja
convosco! –cumprimentou à porta da igreja, fazendo o sinal da cruz, a
muitos casara e baptizara os filhos.
Todos acomodados, deu-se início à missa, num latim
imperceptível e abafado. Ajoelhados, os penitentes prometiam arrependimento, mea culpa, o esconjuro dos pecados.
Pouco depois das nove, perorava D.Raimundo a homilia, num trepidar contínuo e
incontrolável, a terra começou a tremer, um abalo forte e tombou o tecto, sucumbindo
vinte fiéis sob escombros, perto da nave central. D.Raimundo, atingido por uma
viga do altar-mor, morreu com o peito trespassado, sendo o altar num ápice consumido
pelas velas. Os que puderam, fugiram, gritando, só parte da abside se aguentou.
Ao segundo minuto, edifícios começaram a cair, arruinados, e um cenário
apocalíptico e de fumo denso cobriu toda a vila.
A igreja da Misericórdia estava em escombros, a ermida de
S. Sebastião ruiu, na Alpendrada, colarejas em pânico rezavam erguendo as mãos
ao céu, enquanto galinhas e patos corriam desvairados. Lancinante, um cão
uivava na base do pelourinho. Francisca Aires, caída na igreja, sangrava, um
lenho pontiagudo quase lhe decepara a cabeça, ao lado, Tomásia, donzela e
serena, jazia morta, o missal na mão e um santo em cacos junto ao peito.
Duraram os abalos seis para sete minutos, interrompidos
por breves intervalos. Em todo este tempo um estrondo subterrâneo, qual trovão,
soou ao longe. Escureceu-se o sol e exalações sulfúreas empestaram o ar. Por
todo o lado abriram fendas na terra, qual Inferno abocanhando a Terra, para que
Belzebu a todos sequestrasse e levasse para o mundo das trevas. Na igreja,
criados de Maria Aires lograram encontrá-la viva, e descomposta a levaram para
a casa do Arraçário, ou o que dela sobrara: animais mortos, pipas de vinho
vertendo, viva entre mortos e morta para a vida. Ao longe, o mar encapelado
galgava as arribas desmoronando-as como grãos de areia soltando um ruído ampliado
pelo vento.
Em casa ou nas ruas, muitos outros foram vítimas da
gadanha mortal e predador armagedeão, e
os gritos, alaridos e clamores, sucederam-se, num carpir lancinante e
impotente. Ninguém cuidava senão de se salvar e pedir a salvação da alma.
Trinta e seis mortos se contaram só na Vila, emboscados nas missas de finados,
um fogo propagou na R. da Pendôa, cinzas e fumo toldaram as chaminés do Paço,
de onde a guarnição desertou em pânico, deixando sete cavalos mortos no
estábulo. Em menos de uma hora, o mundo desfigurava-se ante a violência dos
elementos, terra e mar uniam-se contra os indefesos mortais, sem o adivinhar,
as missas de finados tornavam-se de corpo presente no imenso cemitério em que a
Vila e o Reino se transformava. Era Verão de S. Martinho.
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