quinta-feira, 12 de março de 2015

Syriza, a democracia no tubo de ensaio


A recente eleição de um governo do Syriza na Grécia trás à colação reflexões sobre o estado da democracia na Europa e o seu nível de aprofundamento.

Jacques Rancière, um dos principais filósofos contemporâneos, no seu livro Momentos Políticos, alerta-nos para o facto de os Estados nacionais agirem hoje apenas como intermediários para impor aos povos a vontade dos poderes financeiros. Em toda a Europa, os governos, de direita como de esquerda, aplicam o mesmo programa de destruição dos serviços públicos e da proteção social, que garantiam um mínimo de igualdade no tecido social, revelando-se a oposição entre uma oligarquia de financeiros e políticos, e a massa do povo submetida à precariedade sistemática e sem poder de decisão. Estarão pois reunidas as condições para um momento político, isto é, um cenário de manifestação popular contra o aparato de dominação. Mas para que esse momento exista, não é suficiente que se dê uma circunstância, mas também que esta seja reconhecida por forças susceptíveis de transformá-la numa demonstração, intelectual e material, e de converter essa demonstração numa alavanca capaz de mudar a paisagem do “perceptível e do pensável”. Segundo ele, o movimento do 15-M, em Espanha, por exemplo, mostrou claramente a distância entre um poder real do povo e as instituições. Resta a capacidade de transformar um protesto numa força autónoma, representativa e independente.

Os movimentos do 15-M ou do Ocupy Wall Street, hoje materializados no Syriza ou no Podemos responderam à ideia do poder próprio daqueles que nenhum motivo destina ao exercício desse poder, e esse poder materializou-se, subvertendo a distribuição normal dos espaços. Geralmente há espaços, como as ruas, destinados à circulação de pessoas e bens, e espaços públicos, como os parlamentos ou os ministérios, destinados à vida pública e o tratamento de assuntos comuns. Um renascimento da política passará pela existência de organizações que se subtraiam a essa lógica, que definam objetivos e meios de acção construindo uma dinâmica própria, espaços de discussão e formas de circulação de informação visando o desenvolvimento de um poder autónomo de pensar e agir.

Em Maio de 68, as pessoas discutiam Marx. Não parece, porém, haver nenhum filósofo atrás dos recentes movimentos. Mas, segundo Rancière, o que se discute hoje é uma visão do mundo que estruture naturalmente estas novas formas de acção colectiva. Em Maio de 1968, a explicação marxista do mundo funcionou no âmbito de uma visão histórica pela qual o capitalismo estaria condenado a desaparecer pela acção da classe trabalhadora. Os manifestantes de hoje não possuem horizonte  histórico para o seu combate e são antes de tudo indignados, pessoas que rejeitam a ordem existente, que não podem considerar-se agentes de um processo histórico, e é isto que alguns aproveitam para escamotear, desqualificando o seu idealismo e o seu carácter “inorgânico”.Com estes movimentos, há uma interrupção da lógica da resignação à necessidade histórica preconizada pelos governos. Desde o colapso do sistema soviético, o discurso intelectual contribuiu para endossar os esforços para implodir as estruturas colectivas de resistência ao poder do mercado. Esse discurso acabou. Seja qual for o seu futuro, os movimentos recentes põem em xeque essa fatalidade histórica, lembrando que não lidamos com uma crise da sociedade, mas sim com uma ofensiva destinada a impor  formas brutais de precariedade.

A experiência do Syriza leva pela primeira vez a rua para os corredores do poder, num terreno armadilhado e virgem, mas que não pode deixar de ser tentado e aprofundado.

Para restaurar os valores democráticos, é necessário chegar a acordo sobre o que chamamos democracia. Habituámo-nos a identificá-la como um duplo sistema de instituições, as representativas e as do mercado. Hoje, isso é coisa do passado: o mercado mostra-se cada vez mais como uma força de constrangimento que transforma as instituições representativas em meros agentes da sua vontade, e reduz a liberdade de escolha dos cidadãos às variantes de uma mesma lógica. É esse o espectáculo do duelo Schauble-Varoufakis, num palco minado na noite dos facas longas. Recuperar os valores da democracia será, pois, em primeiro lugar, reafirmar a existência de uma capacidade de julgar e decidir, que é de todos, frente a essa monopolização, e reafirmar a necessidade de instituições próprias, distintas do Estado. A primeira virtude democrática é a virtude da confiança na capacidade de qualquer um, e o poder dos cidadãos acima de tudo, o poder de agir por si próprios, e constituir-se em força autónoma. A cidadania não é uma prerrogativa ligada ao facto de se haver sido contabilizado nos censos, como habitante ou eleitor, ela é, acima de tudo, um exercício que não pode nem deve ser delegado. É pois preciso opor claramente o exercício da acção cidadã aos discursos sobre a responsabilidade dos cidadãos na crise da democracia, que lamentam o desinteresse dos cidadãos pela vida pública e o imputam à deriva individualista dos consumidores penalizados. Essas supostas chamadas à responsabilidade só têm, na verdade, e segundo Rancière, um efeito: culpar os cidadãos, para prendê-los mais facilmente no jogo que consiste em seleccionar aqueles por quem os cidadãos deverão deixar-se capturar na sua possibilidade de agir fora do momento do voto. Estamos pois num ponto de mutação na ideia de democracia, num sentido mais denso e sentido, cuja próxima fase será a de encontrar vozes e meios com vista a ocupar o seu lugar numa sociedade cuja construção/destruição está em curso.

quarta-feira, 11 de março de 2015

11 de Março de 1975



11 de Março de 1975. Aluno do 6º ano no Liceu D. Pedro V, em Lisboa (correspondente ao hoje 10º) ao som da Marcha do MFA- marcha militar americana da autoria do luso-descendente John Philipp De Souza- que passava nas rádios e no único canal da RTP, era surpreendido a caminho de mais um dia de aulas com o inopinado voo de uns paraquedistas de Tancos que supostamente atacavam o quartel do RAL 1, em Sacavém. As notícias eram desencontradas, e por segurança, fui buscar a minha irmã, então aluna na Marquesa de Alorna, sob a visão de aviões nos céus da Praça de Espanha, com aquela emoção de quem fugia a um bombardeamento de napalm sobre Saigão. Eram dias em que tudo estava em frequente mudança, e spinolistas ressabiados tentavam mudar o rumo da política esquerdizante do governo de Vasco Gonçalves, pró-descolonização e colectivização da economia, no que aliás, a nós, geração de Abril, nos parecia o caminho, filhos do Maio de 68 e a quem a Internacional causava frémitos na espinha em busca das madrugadas redentoras. Em consequência, falhando a intentona, Spínola fugiu para Espanha, o governo radicalizou as políticas económicas, e vieram as nacionalizações e a reforma agrária no Alentejo, dando inicio àquilo que se convencionou chamar o PREC. Kissinger dava Portugal como perdido para os bolchevistas, e o caso República, mais tarde, já depois de eleições para a Constituinte terem apontado um rumo moderado para o país, afastava de vez a esquerda portuguesa, ainda hoje sobre o síndroma do famoso “olhe que não” de Cunhal.

Depois daquela quinta-feira em 1974 em que não houve aulas e o ponto de Física ficou adiado por causa duns militares que ocuparam o Terreiro do Paço, a vida corria vertiginosa, sempre agarrados à rádio ou televisão, com os chaimites do COPCON no lugar hoje ocupado pelos tuk tuk. Embriagados pelas notícias da liberdade que de todo o lado choviam, animados por canções de protesto nunca antes escutadas, haviam-se descoberto os sons de Zeca Afonso, Francisco Fanhais, Luís Cília e Adriano, manifestos policopiados e jornais de parede apelavam a RGA’s para discutir problemas da escola, e o país agigantava-se fazendo a última revolução utópica dos tempos modernos. O período que mediou entre 11 de Março e 25 de Novembro desse ano foi o mais agitado da nossa História contemporânea, durante o qual a maior parte das colónias se tornou independente e se tentaram experiências oscilantes entre a social-democracia nórdica e o maoísmo panfletário.

Passam hoje 40 anos dessa tarde em que os aviões rasantes sobrevoaram a Praça de Espanha. Hoje, sem derramamento de sangue, embora, outro napalm caiu sobre as cidades e campos deste país, estilhaçado, vivendo na twilight zone da esperança e sem Marcha do MFA a empolgar os amanhãs ululantes. Definitivamente, o futuro já não é como era.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Alagamares-10 anos de militância


Foi a 9 de Março de 2005 que um punhado de sintrenses fundava no desaparecido café das Caves de S. Martinho a Alagamares, e nunca mais até hoje parou, ocupando um espaço em aberto no nosso panorama local.

Com mais de 150 iniciativas e eventos realizados, a Alagamares interagiu com a sociedade, e nela bebeu experiências, tentou rasgar caminhos e ser agente de mudança, um parceiro e actor cultural, para tanto se balizando pela discussão e abordagem permanente de assuntos novos ou em novas perspectivas. Como disse Miguel de Unamuno, “a erudição é, em muitos casos, uma forma disfarçada de preguiça intelectual ou um ópio para adormecer as inquietações íntimas do espírito“. Não somos um núcleo de eruditos, mas continuaremos a ser artífices e artesãos do Saber, sem dirigismos, dogmas ou espírito de capela, assim cumprindo a nossa missão de cidadãos. A participação entusiasta e crítica nas actividades e na vida associativa tem sido a pedra angular do sucesso e eficácia da nossa associação, cujo objectivo é o da promoção da cultura, da região de Sintra e dos seus associados. Em tempos de anemia financeira, não permaneceremos anémicos mas interventivos, cientes de que a cidadania activa deve ser congregadora de sinergias. Rejeitamos a desistência e com entusiasmo e pés no chão proclamamos a nossa vontade de afirmar a Cultura  como um dever social e a acção mobilizadora como propulsora de novos horizontes.

Nestes 10 anos, além da Alagamares, Sintra viu surgir grupos como o Danças com História, o Sintra Estúdio de Ópera, a Três Pontos, a Voando em Cynthia, a Dínamo e o Ardecoro, a revista digital Selene, blogues de intervenção cívica como o Rio das Maçãs, Sintra do Avesso, Retalhos de Sintra, Sintra Deambulada, O Reino de Klingsor, Tudo sobre Sintra ou Serra de Sintra, os Encontros de Alternativas, o trabalho de grupos como o Chão de Oliva, o teatromosca, o Teatrosfera, o Utopia Teatro, o byfurcação ou a Musgo. Restaurou-se o Chalé da Condessa e a Parques de Sintra veio mudar o paradigma na abordagem do Património, abriu o Centro de Ciência Viva, afirmaram-se escritores de Sintra como Miguel Real, Sérgio Luís Carvalho, Raquel Ochoa, Luís Filipe Sarmento, Filomena Marona Beja, Liberto Cruz, Jorge Telles Menezes ou Luís Corredoura, fizeram-se tertúlias e encontros, como os Meninos d’Avó, o Traço Comum, os III e IV Encontro de História de Sintra, nasceu a Saloia TV. E abriu o Museu de História Natural, rotinaram-se festivais como o Córtex e o Periferias, a CMS lançou o Tritão, uma revista digital, e abriu o MU.SA. É todo um panorama que difere dum passado mais rarefeito e esporádico.

 Há muito a fazer, ainda, e nem tudo foram sucessos, num quadro de redução de verbas e dificuldades de sobrevivência de muitos agentes culturais e grupos. Desapareceu o Centro de Arte Moderna e o Museu do Brinquedo, falta dar destino à Quinta da Ribafria, resolver de forma definitiva os problemas do estacionamento, a violência dos abates e podas agressivas, o preço das entradas nos monumentos, dar atenção à formação de públicos, criar um cluster de indústrias da Cultura.

Igualmente muitos partiram nesta década: Maria João Fontaínhas, Xaimix, Pinto Vasques, Simplício dos Santos, Maria Gabriela Llansol, António Caruna, Eduardo Lacerda Tavares, M. S. Lourenço, Ana Daniel, Carlos Viseu, João Benard da Costa, Ernesto Neves, Cláudio Brito, Bartolomeu Cid dos Santos, José Manuel Conceição, Helena Langrouva. A sua memória e testemunho nos guiarão na luta por uma Sintra de Cidadãos, activos e preocupados.

Militar em associações, e por causas, nos tempos que correm, é mais que nunca um dever cívico. Vivemos momentos de vigília, e de não deixar que a frágil árvore desapareça na floresta densa de dificuldades, cortes e silêncios motivados pela ditadura da dívida e do défice. Nestes dias dum Portugal cinzento, é essencial estimular a cidadania, e as boas práticas, pugnar pela educação como plataforma para o conhecimento, descolonizar a memória de imaginários estafados, resgatar a auto-estima e o “sentimento de nós”, e estimular a identidade que constrói a nossa idiossincrasia e peculiar forma de estar no mundo. É lançar pontes e massa crítica, mediar entre o poder público e as comunidades, num trajecto virtuoso que acentue o pathos de ser português, e sê-lo de modo universalista. É estar atento, ser parceiro com a lealdade de criticar, acompanhar as obras e não depois das obras, chamar a agir e interagir, actuar virtuosamente e não como agente de bloqueio ou imbuído de egoístas vaidades e atrás de protagonismos. É tocar a rebate no campanário, sangrar a pena revoltada, cavalgar a comunicação com a serenidade das emergências, visitar, escrever, protestar, ajudar, ouvir e ser ouvido, passar palavra, dar o murro certeiro e alertar o adversário, que muitas vezes é simplesmente a inércia, a ignorância, a incúria ou a miopia. É pugnar pelo valioso presente que resulta da aliança da memória com a auto-estima, da singularidade com o talento, da polis com os seus moradores, dos conventos, palácios e moinhos, com a serra, as tapadas ou os lapiás. É recordar os que trilharam o caminho, erguendo a tocha dos seres maiores, dos eremitas jerónimos aos dandys novecentistas, dos cavaleiros da finança aos poetas proscritos, ou do rei artista ao Carvalho da Pena, jardineiros de Deus na fértil horta de Klingsor.

Neste momento de festa, o orgulho de sem dinheiro nem alcandorados em capelas termos feito o nosso percurso independente, sem subsídios ou interesses encobertos, plurais mas com individualidade, é para nós motivo de orgulho e de afirmação. Não somos políticos, mas temos interesse nas políticas, e assim prosseguiremos, à frente e ao lado, mas nunca atrás.
Dez anos estão volvidos, que venham mais 10 anos.

domingo, 1 de março de 2015

Um barco para Ítaca

 
O momento que vivemos tem que representar uma viragem no lodaçal esquizofrénico em que a nossa vida colectiva se transformou. Falta a esperança, essa palavra talismã, e falta mostrar o osso com que, como o cão de Pavlov, de novo haveremos de voltar a ladrar. Para que tal aconteça, há que levantar do sofá, largar o comando da televisão e o asténico isolamento das redes sociais, silencioso espaço para gritar desesperos, buscar cumplicidades, e, todavia, nada decidir que altere o pathos dum reino de novo cadaveroso de anormal normalidade.

Antes de um inesperado Abril, muitos de nós lutaram contra a liberdade raptada, uma guerra anacrónica e por um futuro que por gerações nos foi negado, numa lógica de inevitabilidade por entre saudados costumes de brandura, que escondiam um povo amordaçado mas secular lutador. Um dia, fruto dessa guerra, surda mas germinal, tudo voltou a ser possível, e o Futuro teve rosto, calendário, protagonistas, muitos cães e muitos Pavlovs, ladrou-se e latiu-se, e apareceram ossos, carne, ração. Fez-se a democracia, mudaram-se retratos, discursos, atitudes, e, ao sétimo dia, o povo descansou, contente com a obra feita, e entregou-se à volúpia consumista, ao hedonismo egoísta, à anomia social, de bom selvagem, o indígena ficou tão só selvagem, com casas T3 em Massamá, férias no Algarve ou carro novo cada três anos. Barato, o vil metal abundou, o maná igualmente, triunfantes mas cegos pelo sol, havia-se alcançada a Terra Prometida, depois de anos a errar no deserto depois dos grilhões do faraó. Silencioso, porém, o veneno dos inimigos  fervia no caldeirão, acelerado pelo novo metal da Europa e pelos trinta dinheiros com que a ele nos rendemos, finalmente leais a César, e nas suas teutónicas mas capciosas mãos. Um dia, legiões de cobradores chegaram a cobrar o dízimo, e, qual Sodoma, tudo ruiu então, transformado em sal e às mãos dos que na penumbra manobravam, sabendo da fraqueza dos deslumbrados.

Como na caverna de Platão, onde agora, cegos e aprisionados uivamos a perda e buscamos um rumo, haverá de chegar a luz, do fogo primeiro, mas cristalina e pura, e anunciando um novo dia, depois. Mas tal não virá de sortilégio do Olimpo, antes imporá a necessária revolta dos escravos, o quebrar das algemas, a união denodada e sem temores. Imporá pôr à prova se os escravos merecem ser um país ou, erráticamente, mero quilombo de deserdados em fuga e com liberdade vigiada.

Os dias são de desespero e de spleen, chamamentos de Circe e apelos à fuga de Ítaca, para, assustados, sulcar fronteiras, ziguezagueando a vida e trocando voltas ao futuro, dias de sofrimento, exaustão, entre a loucura e a entropia, o estilhaçar de sonhos ou o seu cruel adiamento. É chegado o momento da renovação, do regresso da alva Iemanjá e dum assomo de magia que faça das fraquezas forças, dos rebeldes líderes, das ideias planos e deste rincão desígnio. O grande exército do Futuro, dos que se indignem com consequência, ajam com sabedoria, tracem planos consistentes e de diferença, e que, reconquistada a chama, a reponham na pira sagrada onde se venere a dignidade e perspective um Devir.

Um calendário é uma sucessão de luas e sóis, chuvas e secas, colheitas e gestações, e o inóspito inverno em que um tentacular inferno capturou as nossas vidas e as mantêm longe de Ítaca, num mar encapelado, de Circes e Polifemos, ventos gélidos e trovões açoitantes cerceia-nos e fustiga. Mas, ao Inverno sucederá a Primavera, e de novo o Verão. Lento e silencioso, o Futuro prepara o seu caminho.

A esperança sem mobilização, equivale a resignação. Uma solução há apenas: a de sermos militantes cavaleiros da esperança ou inúteis escravos da resignação. Avancemos  pois, convocados que estamos para a sagrada missão de porfiar Futuro e capturar a Luz, para tanto levantando firmes a cintilante espada da dignidade.