A recente
eleição de um governo do Syriza na Grécia trás à colação reflexões sobre o
estado da democracia na Europa e o seu nível de aprofundamento.
Jacques
Rancière, um dos principais filósofos contemporâneos, no seu livro Momentos Políticos, alerta-nos para o
facto de os Estados nacionais agirem hoje apenas como intermediários para impor
aos povos a vontade dos poderes financeiros. Em toda a Europa, os governos, de
direita como de esquerda, aplicam o mesmo programa de destruição dos serviços
públicos e da proteção social, que garantiam um mínimo de igualdade no tecido
social, revelando-se a oposição entre uma oligarquia de financeiros e
políticos, e a massa do povo submetida à precariedade sistemática e sem poder
de decisão. Estarão pois reunidas as condições para um momento político, isto
é, um cenário de manifestação popular contra o aparato de dominação. Mas para
que esse momento exista, não é suficiente que se dê uma circunstância, mas
também que esta seja reconhecida por forças susceptíveis de transformá-la numa
demonstração, intelectual e material, e de converter essa demonstração numa
alavanca capaz de mudar a paisagem do “perceptível e do pensável”. Segundo ele,
o movimento do 15-M, em Espanha, por exemplo, mostrou claramente a distância
entre um poder real do povo e as instituições. Resta a capacidade de
transformar um protesto numa força autónoma, representativa e independente.
Os
movimentos do 15-M ou do Ocupy Wall Street, hoje materializados no Syriza ou no
Podemos responderam à ideia do poder próprio daqueles que nenhum motivo destina
ao exercício desse poder, e esse poder materializou-se, subvertendo a
distribuição normal dos espaços. Geralmente há espaços, como as ruas,
destinados à circulação de pessoas e bens, e espaços públicos, como os parlamentos
ou os ministérios, destinados à vida pública e o tratamento de assuntos comuns.
Um renascimento da política passará pela existência de organizações que se
subtraiam a essa lógica, que definam objetivos e meios de acção construindo uma
dinâmica própria, espaços de discussão e formas de circulação de informação
visando o desenvolvimento de um poder autónomo de pensar e agir.
Em Maio de
68, as pessoas discutiam Marx. Não parece, porém, haver nenhum filósofo atrás
dos recentes movimentos. Mas, segundo Rancière, o que se discute hoje é uma
visão do mundo que estruture naturalmente estas novas formas de acção
colectiva. Em Maio de 1968, a explicação marxista do mundo funcionou no âmbito
de uma visão histórica pela qual o capitalismo estaria condenado a desaparecer
pela acção da classe trabalhadora. Os manifestantes de hoje não possuem
horizonte histórico para o seu combate e
são antes de tudo indignados, pessoas que rejeitam a ordem existente, que não
podem considerar-se agentes de um processo histórico, e é isto que alguns
aproveitam para escamotear, desqualificando o seu idealismo e o seu carácter
“inorgânico”.Com estes movimentos, há uma interrupção da lógica da resignação à
necessidade histórica preconizada pelos governos. Desde o colapso do sistema soviético,
o discurso intelectual contribuiu para endossar os esforços para implodir as
estruturas colectivas de resistência ao poder do mercado. Esse discurso acabou.
Seja qual for o seu futuro, os movimentos recentes põem em xeque essa
fatalidade histórica, lembrando que não lidamos com uma crise da sociedade, mas
sim com uma ofensiva destinada a impor
formas brutais de precariedade.
A experiência
do Syriza leva pela primeira vez a rua para os corredores do poder, num terreno
armadilhado e virgem, mas que não pode deixar de ser tentado e aprofundado.
Para
restaurar os valores democráticos, é necessário chegar a acordo sobre o que
chamamos democracia. Habituámo-nos a identificá-la como um duplo sistema de
instituições, as representativas e as do mercado. Hoje, isso é coisa do
passado: o mercado mostra-se cada vez mais como uma força de constrangimento
que transforma as instituições representativas em meros agentes da sua vontade,
e reduz a liberdade de escolha dos cidadãos às variantes de uma mesma lógica. É
esse o espectáculo do duelo Schauble-Varoufakis, num palco minado na noite dos
facas longas. Recuperar os valores da democracia será, pois, em primeiro lugar,
reafirmar a existência de uma capacidade de julgar e decidir, que é de todos,
frente a essa monopolização, e reafirmar a necessidade de instituições
próprias, distintas do Estado. A primeira virtude democrática é a virtude da
confiança na capacidade de qualquer um, e o poder dos cidadãos acima de tudo, o
poder de agir por si próprios, e constituir-se em força autónoma. A cidadania
não é uma prerrogativa ligada ao facto de se haver sido contabilizado nos
censos, como habitante ou eleitor, ela é, acima de tudo, um exercício que não
pode nem deve ser delegado. É pois preciso opor claramente o exercício da acção
cidadã aos discursos sobre a responsabilidade dos cidadãos na crise da
democracia, que lamentam o desinteresse dos cidadãos pela vida pública e o
imputam à deriva individualista dos consumidores penalizados. Essas supostas
chamadas à responsabilidade só têm, na verdade, e segundo Rancière, um efeito:
culpar os cidadãos, para prendê-los mais facilmente no jogo que consiste em
seleccionar aqueles por quem os cidadãos deverão deixar-se capturar na sua
possibilidade de agir fora do momento do voto. Estamos pois num ponto de
mutação na ideia de democracia, num sentido mais denso e sentido, cuja próxima
fase será a de encontrar vozes e meios com vista a ocupar o seu lugar numa
sociedade cuja construção/destruição está em curso.