quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Cultura, Participação e Pókemons



Uma das virtudes da democratização dos meios de comunicação possibilitada pela blogosfera e pelas redes sociais é a de que a todos se tornou possível opinar sobre tudo o que ocorre no espaço público, o que, sendo uma conquista da Sociedade Aberta e uma virtude, traz consigo também a possibilidade diletante de tudo com a maior displicência criticar e atacar, sem que nenhum contributo positivo daí resulte (já sem falar da inércia em se envolver na elaboração de projectos e sua consecução, a tudo preferindo a frisa cáustica e a certeza de, ao não se envolver, fugir ao escrutínio dos outros).
Ser um operário da Cultura (em todas as suas vertentes, e não só as ditas eruditas) implica estar não só na concepção e no nascer das ideias, mas também na captação da comunidade para causas colectivas, no trabalho associativo que tanto pode passar por conceber um projecto ou uma iniciativa mas também contribuir para a mobilização dos demais, colar o cartaz, mandar o mail, arrumar as cadeiras ou vender a bifana. E essa é uma tarefa que muitos gurus da nossa praça escamoteiam, pensando que dar ideias para iniciativas é suficiente e que alguma empresa de catering ou batalhão de funcionários fará o trabalho de sapa. E depois, quando as coisas pela sua natureza tiverem dificuldade em alcançar um certo patamar ou revelem as lacunas próprias de quem muitas vezes tem de agir sem verba ou voluntários, lá vêm as vozes ululantes dos velhos (e novos) do Restelo, questionando as faltas mas nunca elogiando o que apesar de tudo se conseguiu, ou oferecendo contributo, não poucas vezes invocando a "indisponibilidade" naquele dia, um parente distante doente ou um inesperado compromisso noutro sítio.Mas sempre prontos a receber os "louros" e a ficar na foto quando o mérito é reconhecido ou a associação a certas imagens se mostrar oportuna.
Longe vão os tempos dos carolas das associações, do teatro amador ou dos saraus de poesia, e razão tem José Gil: tornámo-nos meros consumidores de produtos ditos culturais, muitas vezes não inscrevemos opinião que não seja mimetizando a opinião publicada vendida como  própria, ao palco onde se pode ser artista mas também electricista preferindo o confortável camarote das vaidades, em busca do aplauso fácil, mas raramente dando a cara pelo insucesso ou na hora das dificuldades.Deixem de caçar Pókemons e mexam-se c'um raio!

terça-feira, 6 de setembro de 2016

A Visita do Diabo



Nos 50 anos do incêndio da serra de Sintra, uma "estória" do meu livro "Histórias com Sintra Dentro"
 
6 de Setembro de 1966, Sintra era notícia  na imprensa nacional e estrangeira, violento fogo lavrava com intensidade brutal na Penha Longa, Lagoa Azul e nos Capuchos, favorecida por altas temperaturas e constantes mudanças do vento. Seteais, Monserrate, a Pena e até S. Pedro, estavam em risco, e todos os corpos de bombeiros do distrito de Lisboa mobilizados, aos quais se juntaram homens vindos das Caldas, Elvas e Leiria, militares e civis, num total de quatro mil. Sitiada, Sintra era pasto de chamas assassinas, e a vila transformada em quartel para uma batalha que durou seis dias, lançando cinza e fumo a quilómetros, sob um clarão enorme e infernal.
Por esses dias, Luís fazia a tropa em Queluz, repartida entre serviços rotineiros e a angústia por uma chamada para o Ultramar. Aos vinte anos, e noivo da Angelina, a oficina de torneiro do tio haveria de chegar para começo de vida, se tudo corresse bem, uma casa em Queluz estava já debaixo de olho. O incêndio apanhou-o no quartel, o Regimento de Artilharia Anti-Aérea Fixa de Queluz, onde durante toda a manhã do dia 6 se escutaram as sirenes. A Emissora relatava danos na vertente de Cascais, mas por toda a serra os focos se espalhavam, incontrolados, os populares, com ramos, impotentes faziam o que podiam. Preparava-se para almoçar quando o comandante de batalhão mandou formar na parada, era preciso acorrer ao fogo, todos os meios estavam a ser mobilizados. Reunidos em viaturas, saíram a dar apoio. Luís, com mais alguns homens, foi enviado para perto da Peninha, comandados por um tenente inseguro sobre onde atacar e quando. Os comandantes dos voluntários dividiam-se sobre a frente prioritária. Apagado num lado, por viaturas em idade de reforma, reacendia logo noutro, zonas antes cerradas eram clareiras incandescentes. Envolta num braseiro, a Tapada do Mouco já pouco tinha de verde. O Antunes e o Fernandes, do pelotão de Luís, rudes, e habituados à mata, ajudavam a dar luta, inglória porém, Lúcifer parecia ter-se mudado para Sintra, levando o inferno até lá. Nessa noite, pernoitaram na serra, poucas e inseguras horas, senhoras do Penedo alcançaram leite, e pão com presunto. Passando no local, um jornalista dizia ao major que se falava em decretar o estado de sítio, e mandar vir homens de Santa Margarida, tais as proporções que o fogo tomara.
Durante todo o dia 7, exaustos e sem coordenação, Luís e os camaradas, quais baratas tontas, acorreram aonde o tenente ordenava, a chuva de Setembro, que tão necessária era, tardava em aparecer. Segundo os comandos, cinquenta quilómetros estariam sob pasto das chamas, vestígios na Lagoa Azul indiciavam origem criminosa. O Antunes transpirava, de galho na mão, asfixiados pelo fumo, dois cabos tiveram de ser assistidos, e voltar para o quartel. Luís fazia o que podia, pensando quando tudo terminaria. Todo o dia a serra ardeu. Chegada a noite, o clarão laranja do apocalipse não dava tréguas, persistente, o fogo levava a melhor. Motobombas dos Lisbonenses passaram por eles, em correria, reposta a água, concentraram-se num local elevado, mas perigoso.
Temerário, o tenente mandou avançar para o Alto do Monge. Tentaria um corta-fogo, e aberta uma frente, combater fogo com fogo, a estratégia pareceu adequada. Todos os homens se colocaram no epicentro do incêndio, bombeiros e civis protegiam as povoações. Aos poucos, perdiam-se cem anos de floresta, visto de Cascais, era o juízo final. A dada altura, o Antunes deu um grito,a mudança do vento criara nova frente ali perto. Luís ficou apreensivo. Fogo pela frente e pelos lados, uma coluna de fumo por trás, o tenente ordenava que se mexessem, ele próprio tentando posicionar-se. Mais vinte e um homens estavam perto da anta do Monge, por ironia chamado Cerro da Queimada. Aumentando o calor e o fumo, deixaram de se ver uns aos outros, gritos lancinantes abafados pelo fogo invasivo anunciavam o Inferno colhendo novas vítimas, impotentes anjos naquele Setembro negro. Afogueado, Luís viu-se perdido, já não vendo nem ouvindo os camaradas. De relance, pensou em Angelina, olhou o céu, vermelho, e absorto sentiu-se levar, colhido e febril. Possuída, a serra de Sintra ganhava mártires, e os homens, heróis. Até que Lúcifer, desperto, de novo regresse, inclemente, faminto de carne esturricada. Regressará?

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Quo Vadis, Europa?





Na Quinta da Ribafria, a partir de hoje, questões como a do futuro da Europa vão ser colocadas no âmbito dum espectáculo concebido e escrito por Miguel Real e Filomena Oliveira, conceituados escritores e dramaturgos, e pessoas queridas da comunidade cultural sintrense. E o tema é não só actual, como premente.
 A Europa está moribunda e em fase de estertor, como os motores falseados da Volkswagen.
Em 1953, em Hamburgo, Thomas Mann defendeu que devemos ambicionar ter uma Alemanha europeia e não uma Europa alemã. Vinte e cinco depois da unificação, sobre o papel da Alemanha na Europa e no mundo, ninguém se preocupou, com os alemães ocupados nessa altura consigo próprios e com a integração económica dos novos Estados federados do Leste, tanto que no final dos anos noventa a Alemanha era tida como um caso problemático na Europa, do qual se haveria de cuidar da questão do endividamento estatal, com níveis de desenvolvimento abissais entre o Leste e o Oeste, e canalizando muitos fundos (grande parte deles comunitários) para nivelar as economias. Era impensável então que a Alemanha um dia pudesse apresentar-se como modelo nas questões de política fiscal e do saneamento orçamental. E com a introdução do euro, pareceu que a Alemanha tinha aberto mão do seu mais importante instrumento de poder frente às outras economias europeias, o marco alemão.
O problema é que a Europa mudou e, na medida em que mais países entraram na União Europeia, o projecto dos Estados Unidos da Europa distanciou-se cada vez mais. O que parecia possível na Europa dos Seis, tornou-se impossível com as ampliações para Sul, Norte e Leste.
A crise do euro posterior a 2008 tornou visíveis as contradições da Europa. Querendo-se ou não, a Alemanha é, com os seus recursos e capacidades, o único país que pode manter a coesão da Europa heterogénea e ameaçada por forças centrífugas. Na Europa, tem a possibilidade de manter a coesão na União Europeia, e no mundo, tem de cuidar para que a economia europeia não seja marginalizada através da ascensão da Ásia. Mas não seria isto, na verdade, uma tarefa das instituições europeias? Não foram tais instituições, principalmente o Parlamento, fortalecidas nos últimos anos, para assumir essas tarefas, nomeadamente depois do Tratado de Lisboa? O que resultou foi exactamente o contrário. Valorizado anteriormente, o Parlamento Europeu não desempenhou praticamente nenhum papel no apogeu da crise do euro, ficando as decisões a cargo das reuniões intergovernamentais, e a "cabeça" da UE dividida entre a Comissão e o Conselho Europeu. Algo semelhante ocorre também na questão de saber se a Grã-Bretanha permanecerá como membro da UE ou se deixará a comunidade, o que provavelmente será negociado quando chegar a hora directamente entre Berlim e Londres. Tudo isto, bem como a recente aprovação do Brexit pelos britânicos, contraria profundamente o projecto europeu. Uma coisa parece ser certa: estão a ser as crises que indicam se as instituições são robustas ou não. E nas crises actuais, de que ressaltam os problemas financeiros da Grécia e a tendência de saída da Grã-Bretanha ou a crise dos refugiados sírios e magrebinos, as instituições europeias mostram-se incapazes e dissonantes. Talvez porque elas foram criadas a pensar no “funcionamento normal” da Europa enquanto não surgissem grandes problemas e as questões pudessem ser resolvidas em consenso. Como não tem vindo a ser esse o caso, e o eixo franco- alemão está debilitado, o poder deslocou-se e os governos nacionais voltaram a desempenhar o papel principal, com destaque para a Alemanha.
A Alemanha contribui sozinha com mais de um quarto do poderio económico na zona euro, e são seus os riscos maiores nos programas de ajuda aos países endividados do Sul da Europa. Com isto, coube-lhe a posição decisiva na fixação das condições para a ajuda, achando que pelo facto de a austeridade ter funcionado na Alemanha nos anos noventa, tal pode ser copiado a papel químico para países com outros estádios de desenvolvimento e outras políticas e práticas fiscais, orçamentais ou bancárias. Essa falta de tolerância e compreensão está pois a levar cada vez mais a uma Europa alemã longe da Alemanha europeia de Adenauer, Willy Brandt ou Helmut Kohl. É uma Europa em cadeira de rodas, e cada vez mais comatosa.