sexta-feira, 29 de março de 2013

A guerra do soldado Avelino



Avelino nunca saíra de Fontanelas, feliz entre as vacas e hortaliças que diariamente levava à Malveira, a chamada à tropa, ainda mal fizera dezoito anos, deixou os velhos pais em cuidado, aflita, a Anacleta até acendeu uma vela pelo cachopo. Em 1916, Portugal entrara na Grande Guerra, e depois de uma recruta apressada, Avelino era integrado no Corpo de Artilharia Pesada Independente, composto por três grupos mistos de baterias de artilharia pesada.
Em Janeiro de 1917 embarcou para França, chegando a Brest em Fevereiro, e em finais de Abril às trincheiras. Não entendia aquela guerra, apenas que detestava a ração inglesa e o frio, contrastante com a brisa de Fontanelas. O tempo foi passando, escutando o matraquear da artilharia e esculpindo varinhas de pau com uma navalha. Ao fim de um ano na frente, nunca tinha gozado licença, sendo analfabeto, jamais escrevera à família. Em casa, a mãe temia, os ataques com gás pimenta podiam ser fatais, agoirava Venâncio, o regedor.
Na frente viu tombar camaradas, ao Gervásio, da sua brigada, que lhe morreu nos braços, ficou com o relógio, para entregar ao filho, em Palmela, pediu-lhe à hora da morte. O general Tamagnini nada informava sobre o sucesso das operações, mas sentia-se que as coisas estavam mal.
Certo dia, o general Haking, mandou a Divisão de Avelino tomar novas posições. À sua brigada competia guarnecer três linhas de trincheiras e a linha de defesa baseada em baluartes ao longo de 40 quilómetros. A norte dos portugueses, estava a 40ªDivisão de Infantaria britânica, a sul, a 55ª.
Pelas quatro da manhã de 9 de Abril de 1918, estava a brigada de Avelino estacionada junto à ribeira de La Lys, entre Gravelle e Armentières, quando os alemães desencadearam uma barragem de artilharia com mais de duas horas de duração. Emboscados, os portugueses, comandados por Gomes da Costa, viram-se subitamente em combate, subordinados ao Corpo Britânico. Oito divisões do 6º Exército Alemão, comandados pelo general von Quast, lançavam a operação Georgette, visando tomar Calais e Boulogne-sur-Mer. Em apenas quatro horas, perdeu-se um terço dos efectivos, bem como 327 oficiais, os alemães queriam abrir um flanco, e o sector português o sítio escolhido.
Na trincheira e sob fogo cruzado, Avelino rangia os dentes, e fazia fogo com a Lewis, a Luísa, como chamava à metralhadora, parecia dia de círio, tal o foguetório, com as balas cruzando os ares de forma alucinante. A seu lado, o Ramires e mais três tombaram mortos, o Tomé, polidor em Loures, gritava, atingido por uma bala. Ao fim de uma hora, só Avelino restava vivo na trincheira, deambulando entre os mortos e recolhendo cunhetes de balas que foi tirando a camaradas. Só pela noite, extenuado e ferido, se conseguiu reunir ao 8º Batalhão, e chegar ao hospital de Saint Venant, onde, ardendo em febre, pôde enfim descansar. Tinha um lenho na perna, mas não inspirava cuidados. Ao passar pela sala de tratamentos, ouviu chamar o seu nome, em português:
-Avelino!
Espantado, viu um jovem franzino, deitado numa maca e com um braço esfacelado, esperando para ser operado, o ar sério do médico prenunciava uma amputação. Era o Sebastião Trina, de Lourel, companheiro de cavalhadas em Sintra, ignorava que também estivesse na Frente.
-Sebastião. Que te aconteceu, homem? – apesar de ferido,  e a arrastar a perna, Avelino  foi abraçá-lo, no ar angustiado do amigo,  pinga-amor de Sintra, anteviu mais um estropiado, sorvido por uma guerra  contra gente que nunca lhe fizera mal. O destino tecia a sua teia, e, nesse dia, marcou encontro nas margens do La Lys.
No terreno, a seriedade da situação levou o General Haking a chamar reservistas para ajudar a 3ª Brigada portuguesa a conter o inimigo. O 1º Batalhão do King Edward's Horse e o 11º de Ciclistas foram enviados para Lacouture, onde se uniram aos portugueses dos 13º e 15º Batalhões, para defender a vila. Lacouture resistiu 26 horas, mas caiu a 10 de Abril, tendo os alemães capturado 168 portugueses e 77 britânicos. Nesse dia negro, os portugueses sofreram sete mil e quinhentas baixas, entre oficiais e soldados, 398 tombaram e mais de seis mil foram aprisionados. Em perda, os alemães ainda conseguiram abrir uma brecha de cinco quilómetros nas linhas aliadas, desmoralizadas, a 1ª e 2ª Brigadas da Infantaria portuguesa retiraram a 13 de Abril para nova linha de defesa, entre Lilliers e Stennberg. O comando britânico ainda enviou duas divisões para fechar as linhas aliadas, mas, para os portugueses, a batalha estava acabada.
No mês seguinte, Avelino e Sebastião foram evacuados para Portugal, sem um braço, o choro convulsivo da mãe recebeu Sebastião no regresso a casa. Para Avelino, uns arranhões apenas, e uma cicatriz a lembrar a guerra.
Mais tarde, já recuperado, foi a Palmela. Num mísero casebre, uma mulher e um rapaz descalço receberam-no, sem saber quem era o estranho que os visitava. Sem corda, parado no tempo, o relógio do Gervásio foi enfim entregue ao filho, orgulhoso do pai que por outros deu a vida que não viveu.

quarta-feira, 27 de março de 2013

O Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou trez vezes,

Voou trez vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?»

E o homem do leme disse, tremendo:

«El-rei D. João Segundo!»
 

«De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?»

Disse o mostrengo, e rodou trez vezes,

Trez vezes rodou immundo e grosso.

«Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:

«El-rei D. João Segundo!»
 

Trez vezes do leme as mãos ergueu,

Trez vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer trez vezes:

«Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um povo que quere o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

D' El-rei D. João Segundo!» 
Fernando Pessoa 

terça-feira, 26 de março de 2013

Chipre, limões amargos


De Chipre havia já a memória de Guy de Lusignan, rei de Jerusalém, tido como antepassado de Carvalho Monteiro, o da Regaleira; a obra de Lawrence Durrell, “Chipre Limões Amargos”, que li há já muitos anos, dele bebendo esse anizado sabor a mediterrâneo e a sul, que mais tarde constatei in locco durante um périplo pelo Mar Egeu; e a anacrónica situação de uma ilha disputada por Grécia e Turquia, uma parte na União Europeia e outra fora dela, retendo na memória a grande figura do nacionalismo cipriota, o arcebispo Makários, o paladino do Chipre moderno após a separação dos ingleses.
De Chipre chegam hoje novos e amargos sabores, contrastantes com o sol do sul, os sabores azedos  da União Europeia, salivante guardiã do euro alemão (e Malta? E o Luxemburgo? lá não há paraísos fiscais?). Com amigos assim, quem precisa de inimigos?
Paraíso fiscal. E não era já? Os depósitos ficam melhor em Berlim e Frankfurt, é sabido, mas não foi por ajudar a Grécia que Chipre ficou exposto? O estalinismo espreita em Bruxelas, deixando estuporados Durão Barroso e Rompuy, e o novo ministro holandês do Eurogrupo, campeão de gaffes em 3 meses no lugar.
Esta Europa acabou. Como incutir esperança no futuro, quando os nossos “parceiros” praticam a política de terra queimada, fazendo tiro ao alvo às nações que seguiram a cegueira dos eurocratas, que se prova hoje estarem ao serviço da Prússia?
Mais um país sustentável soçobrou, face ao hoje tenebroso euro. Quando surgirá o primeiro com coragem para sair? Continuar no euro, é agonizar em austeridade, negar futuro às novas gerações e desistir de voltar a crescer, ou fazê-lo apenas quando os alemães quiserem, na sua sacrossanta política de castigo aos preguiçosos do Sul e horror a qualquer sombra de inflação que se coloque no horizonte.
Dinheiro no banco? Recomendo o colchão, confortável cofre das pequenas poupanças. Ortopédico, de preferência.
Hoje somos todos cipriotas. Boa sorte! καλή τύχη

sábado, 23 de março de 2013

O Baile das Camélias



A sala estava profusamente engalanada, orgulho dos jardineiros que andaram preparando o evento: a noite das Camélias. O visconde de Asseca, o Presidente da Câmara, Joaquim Fontes, Medina Júnior, Rui Cunha, todos compareciam, com as esposas e as filhas casadoiras. Em breve o visconde de Asseca receberia a princesa Margarida, irmã da rainha de Inglaterra, e seria juiz da festa da Senhora do Cabo em S. Miguel, pelo que teria um 1959 em cheio. Homem alto e altivo, fora visita regular de D. Amélia em Versailles, durante o exílio, e sua ligação privilegiada desde que a condessa de Seisal falecera de provecta idade.

Ao microfone, Amadeu José de Freitas convidava os pares para os boleros e valsas, temas de Frederico Valério e Tavares Belo, e a orquestra excedia-se, ritmada, tocando congas, rumbas e músicas da moda. Os mais velhos falavam de política, exaltando as obras do governo: o novo ringue do hóquei, o matadouro, o bairro económico de Queluz, a bem da Nação, a política de fomento chegava a Sintra. Um discurso aqui, uma inauguração ou lápide ali, o progresso chegava ao ritmo de jantares e homenagens.

Olavo Moreira, jovem licenciado em Direito, era o secretário do visconde, e naquela noite estava particularmente atento a Lucrécia, uma corista do Maxime a quem convidara para o baile, embora dela não conviesse aproximar-se, era perigoso. Lucrécia, de sorriso malicioso, já lhe conhecia os hábitos, e sobretudo a carteira, e disfarçava trocas de olhares junto ao bar, onde assistia acompanhada de Humberto Madeira, em breve ambos entrariam na nova revista de Giuseppe Bastos. Humberto estava a par da relação, e de soslaio ia piscando o olho.

A certa altura, Olavo invocou um telefonema e saiu na direção do Hotel Nunes. O gerente era conhecido e cúmplice logo lhe deu a chave da suite rosa, uma previdente nota de vinte compraria a discrição. Lucrécia chegou pouco depois. Lançou-se nos braços de Olavo e, avidamente, beijou-o, e tirou-lhe o casaco, enquanto lhe ia pintalgando o rosto de bâton, qual camélia ao seu dispor. Já rebolavam na cama quando da porta veio um toque seco e cadenciado:

-Quem é? –rosnou Olavo, irritado, ordenando silêncio a Lucrécia.

-É urgente, senhor doutor! Está um senhor lá em cima para falar consigo! – respondeu o porteiro da noite.

-Comigo? Aqui? -compôs-se, num ápice, e subiu à recepção. Era Arménio Raposo, agente da PIDE e visita assídua de Sintra, a quem a escapadela do baile não passara despercebida. Em Lisboa seguira-o no Maxime, havia ordens de discrição, o visconde era uma figura grada do regime e não se queriam escândalos.

-Sr. doutor…não queria incomodar, mas….Sintra, sabe, é muito pequena. Ainda se fosse no Estoril…-insinuou o agente, enfiado numa gabardina enxovalhada e com um borsalino preto. Olavo ficou furibundo:

 -Você, aqui? Como se atreve a incomodar-me? -reagiu altivo e desafiador. Quer que o senhor visconde telefone ao seu chefe e o mande para os Açores de guarda aos cachalotes? -ameaçou.

-Eu se fosse a si não fazia isso, senhor doutor…-e puxando da carteira, sacou de uma foto dele com Lucrécia no Maxime, uma garrafa de champanhe francês ao lado…-O senhor ministro  podia ficar incomodado, e nós não queremos que se estrague uma carreira promissora, pois não?..

A armadilha estava montada. Despachado Arsénio com azedume, voltou ao quarto, meteu Lucrécia num carro de praça para Lisboa, e voltou para o baile. Raposo seguiu-o, e discretamente  ficou pelo  bar, pedindo um copo de vinho. Por essa altura já o álcool reinava entre os convivas: o capitão Américo Santos repetindo-se, contava histórias estafadas do seu regimento em Benguela, no bar, senhoras balzaquianas e já rubras pediam capilés de groselha. O visconde, que trocava impressões com amigos, estranhou a longa ausência  de Olavo e procurou-o:

-Olavo, onde foi você numa noite destas? O Provedor da Santa Casa quer falar comigo, mas gostava que você escutasse, tive de o despachar…

-Desculpe, senhor visconde, mas tive de atender um telefonema, era o engenheiro Pavão, por causa do apeadeiro da Portela, sabe, empreiteiros, não sabem quando estão a ser inconvenientes…-inventada a desculpa, pediu um gin e foi falar com o prof. Fontes, o presidente da câmara, a quem elogiou o  novo ringue no Parque da Liberdade. O baile continuou e uma hora depois os viscondes voltavam a S. Sebastião, e Olavo à casa dos pais, enriquecidos com o volfrâmio durante a guerra.

Uns dias mais tarde, Raposo foi alvo de um processo disciplinar, dum cofre na PIDE sumira o fundo de maneio, o Mesquita e o Roldão, agentes de 2ª classe, juravam tê-lo visto a tirar o dinheiro e levá-lo numa mala. A foto sumira, entretanto, sem que desse por nada, num aperto de convivas meio ébrios, um amigo de Olavo furtara-lha na noite do baile. A carteira apareceu mais tarde, mas sem a foto. Alvo dum processo inconclusivo, acabou em Elvas, a carimbar salvo-condutos.

No ano seguinte, Olavo voltou à Noite das Camélias. Desta vez, Lucrécia não foi, aguardaria numa vivenda na Rinchoa, um vinho e  velas esperariam uma tardia ceia, camélia mas suplente, no baile da vida. A foto do Maxime, ornamentava o psyché junto à caixa das jóias que ele, agora administrador dum banco e em ascensão na União Nacional, regularmente ia acrescentando com brincos de amor e anéis de paixão...