quarta-feira, 6 de maio de 2020

Do Diário do George (um qualquer George)



Chove na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra envelhecida dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão da praia, agora sem gente, cinzenta, onde alguns náufragos em terra circulam, sedentos de miragens. Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de tranquilizantes melodias.
É estranho este novo país desconhecido, onde não se pode abraçar um amigo, beijar uma namorada ou acariciar uma avó, raptados das nossas emoções atrás de aviltantes panos que talvez um dia sirvam para nos enrolar, como múmias nos sarcófagos, mortos por ter de deixar de ser humanos, por ousar respirar a liberdade e, sem o querer, viver capturado por um microscópico ditador, alheio a lágrimas, sorrisos e ilusões.
O mar provoca, desafia a vencer, a cavalgar a onda, ousando, e logo a seguir, uma quebra, um atávico apelo a desistir, vencidos de nós, temerosos. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, anunciando um perturbador purgatório, entre o pesadelo e a ilusão. No leitor do carro, oiço Kurt Weil, e, como ele, suplico, onde está o caminho para o próximo whisky bar?…
Escrevo. Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo ao inimigo? A Primavera fugiu, fugaz, em quarentena da Vida e confinamento da Alma. Volta, és nossa, és Sul, e és Sal, és o tónico deste velho e atónito Portugal!
Ululantes e fantasmagóricas hordas de conformados, a medo patrulham a Cidade, raptada e de luto. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas, ameaçadoras agora, com a promessa de castigos, cruéis e castradores, e de estivais armagedeões relampejados. Que fazer para não mais despertar, para de vez voltar ao filme onde todos são felizes, que inveja. Ah, como é puro o cheiro límpido do iodo, magnânimo e libertador.
Dedilho umas linhas para a imortalidade, esculpidas no vasto areal, ao lado observo trilhos de passos, na areia molhada. Empolga, a canção do CD, a velha Alabama Song, cantem os Doors ou David Bowie, é Portugal amarelo scotch passando em fundo, albergue de errantes, trôpego de futuro, e sem pedras de gelo. Vamos todos para Alabama e acolhamo-nos num whisky bar esperando o nirvana e acordar do pesadelo!
Num solitário quiosque, anoréticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos, os cardíacos relatos deste diário crepúsculo. Aconselho deixar de ler jornais. De tão abusadas, gastaram-se as palavras, analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos, melhor beber uns copos, fanfarrões talvez salvemos o mundo aí pelo quinto gin. Só o álcool-não o do tal gel- é redentor, e concubino. Amigo certo, presentear-me-à por certo com uma poética cirrose, maleita de intelectual, é o mínimo, os verdadeiros intelectuais sempre se trataram com álcool. Não morrerei de pijama, mas de fraque, que não se vai para o outro mundo de pijama, espero que no tal do Céu haja Visa, parece que não deixam levar dinheiro.
Afastando-me do paredão, posso agora pensar em novas madrugadas, com cravos brancos. Sim, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica bem nas fotos, com o som de Chopin em fundo, talvez o meu velho amigo Fernando me dedique uma estória das dele. Campa. Sim, quero uma campa, grunge, salpicada de cruzes entre memoriais de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, que é coisa para frango assado, ou talvez para a Joana d'Arc.
Passou a Ângela no calçadão, trauteio baixinho a Alabama Song, pelo retrovisor vejo o Max sentado no banco de trás, grande Max, já partiu, e de fraque, sete outonos atrás, espera aí Max, vou a caminho!
É cruel, escrever com caneta de aparo. As palavras sangram, e impiedoso o aparo mata, invasiva arma contra as palavras vãs, com caneta de aparo e tinta preta se deviam proclamar revoluções, gritar esperanças, borrar epitáfios e apunhalar palavras errantes em confidenciais cadernos.
Cristo morreu, Marx também, e eu, francamente, não me sinto lá muito bem. São cruéis os dias, mais a merda da máscara, convoca à lassidão do corpo. E ainda hoje é quarta. O homem de Nazaré morreu numa sexta. Aninhado entre pregos de aço, ressuscitou num sábado, hora de Greenwich. Todos os dias ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a um copo no bar. Mas qual?
Esfíngico, o sol põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, o leitor no carro repete o Alabama em looping, talvez o Kurt e o Brecht queiram um bourbon. Aguarda, Max, vou já!…
Assina: um poeta das cirroses, mas das elegantes, sempre aconchegadas em copo alto e, se o Valdez fiar, perfumadas com um puro de Havana. A pandemia é uma monotonia.

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