quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Elegia para uma Cirrose



Chove na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra velha dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão sem gente. Como desolada está a praia, cinzenta como o espírito, náufragos vivos circulam, aflitos por uma miragem. Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de tranquilizantes melodias.
Outubro. É Outono no país das flores, de vez foram os cravos nas armas, agora apontadas a subjugados prisioneiros num país que foi de Zeca. Volta Zeca, volta de teu túmulo, adormecida guitarra talhada no ventre dum povo culpado por ousar sonhar. O mar provoca, desafia a vencer, qual Gama, da nau catrineta, cavalgar a onda, temerário, e logo um atávico apelo a desistir. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, e estão longe, num chamuscado purgatório entre o pesadelo e a ilusão. No leitor do carro, passo Kurt Weil, rápido, por onde o caminho para o próximo whisky bar?…
Escrevo. Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma? Recomeçar, com  cravos em canos agora a nós apontados? Brancos,  desta vez quero cravos brancos, alvos e puros. A Primavera fugiu… Volta, és nossa, és Sul, és Sal, e tão longe de Portugal…
Pedro Toscano, és um idiota. Ululantes hordas  conformadas patrulham a Cidade, raptada pelo medo e pelo spleen. Assustam-te, confessa. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas, e agora ameaçadoras, prometendo castigos, cruéis e castradores, outonais armagedeões e vinganças soezes. Que fazer, para não mais despertar, para voltar ao filme onde fomos felizes? Ah, como é puro o cheiro límpido do iodo na praia húmida e odorizada!.
Caneta, papel, umas linhas para a imortalidade, esculpidas no areal, ao lado, trilhos na areia molhada. Empolga, a canção, no CD do carro, a Alabama Song, seja a dos Doors ou de Bowie, e Portugal amarelo-scotch passando em fundo, albergue de errantes, trôpego de futuro, e sem pedras de gelo. Vamos para Alabama, entricheirar-nos no whisky bar! Cheers! Lá vai a Sílvia com o caniche, a caminho do Angra, e eu sóbrio ainda.
O Chico emigrou, cansado de desesperar, globalizou-se, como se diz agora, o Zé Luís morre aos poucos, licenciado em currículos e catedrático de bares. Ao Manel, surpreendi ouvindo o Zeca, cinco aguardentes durou, no esconso da casa do Fred e já madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.
No quiosque, anorécticos jornais vendem medo, intranquilos, invasores, cardíaco relato dum diário crepúsculo. Aconselha-se deixar de os ler. Aliás, deixar de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as palavras, analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos, talvez salvemos o mundo aí ao quinto gin. Limão. É o limão que tira a piada à vida.
Deixou-me, a Mafalda, cansou-se. Também eu a havia deixado já, amancebado com o álcool, redentor e concubino. Amigo certo, presenteou-me com uma poética cirrose, maleita de intelectual, é o mínimo, reconheço. Não morrerei de pijama, mas de fraque, que não se ressuscita de pijama. Espero que no tal Céu haja Visa, parece que não deixam levar dinheiro.
De partida agora, posso pensar em madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos sobre a laje fria, fica bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Fernando escreva um poema. Campa, sim, quero uma campa, grunge, alistado no exército de cruzes, entre memoriais de defuntos imortais, nada de irrespirável e tórrido crematório, coisa para leitão, frango ou Joana d'Arc.
No carro registo silenciosos gritos, cúmplices cirroses visitadas com caneta de aparo. Passou a Ângela no calçadão, sem que oiça, trauteio baixinho a Alabama Song, pelo retrovisor vejo o Max, pálido, no banco de trás. Grande Max, já partiu, e de fraque, sete outonos atrás. Espera, Max, vou a caminho!
É cruel, a caneta, e o aparo. As palavras sangram, e impiedoso, o aparo mata, invasiva arma contra palavras vãs. Com tinta preta e a grosso se deviam proclamar revoluções, gritar esperanças, borrar epitáfios, apunhalar palavras em confidenciais cadernos.
É quinta-feira. Cristo morreu, Marx também, e não me sinto lá muito bem. São cruéis as quintas, convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu na sexta. Todos os dias ressuscito, para tornar a morrer. Melhor outro copo no bar. O sol, esfíngico, põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, o CD repete Alabama, em looping insistente, talvez o Kurt e o Brecht queiram um bourbon. Aguarda, Max, vou já!
Pedro Toscano, poeta de cirroses, sempre em copo alto, na véspera da Libertação.
PS-Ninguém paga um scotch? 

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