domingo, 21 de outubro de 2012

Hanno, o Paquiderme do Império




Já desde Livorno corria de boca em boca, uma exótica e vistosa comitiva aproximava-se da Cidade Eterna, estranhas e monstruosas bestas desbravavam a Via Ápia sem que fossem repelidas. O povo estranhava.
Naquele dia 9 de Março, fazia a entrada nos Estados do Papa a luxuriante embaixada do rei de Portugal, o poderoso D.Manuel, alardeando os sucessos da sua navegação e com fausto vindo fazer tributo ao senhor da cristandade. Tristão da Cunha, o plenipotenciário, instruíra Garcia de Resende para que distribuísse moedas de ouro pelos pobres, e fosse esmoler com as igrejas, o que o secretário do embaixador fez, para gáudio dos locais, que assim davam vivas àqueles bizarros mas opulentos portoghesi. Avisado da chegada, Leão X receberia a comitiva a 20,dispensando a bula de entrada nos Estados Pontifícios.
Diogo Pacheco e João Faria montavam guarda ao tesouro que seria ofertado, e a custo mantinham calmos os exóticos animais, tirados do seu sossego em paragens longínquas, agora na terra dos campanários. Leopardos, uma pantera, papagaios, perus e cavalos da Índia, o circo real chegava à cidade. Mais que todos, impressionava o enorme elefante albino de doze palmos, carregando no dorso um palanque de prata em forma de castelo, contendo um cofre com presentes, entre os quais paramentos bordados com pérolas e pedras preciosas, e moedas de ouro cunhadas para a ocasião. Um rinoceronte indiano estivera previsto, o primeiro na Europa desde o tempo dos romanos, mas morrera num naufrágio, já perto da costa italiana.
Mais de cem pessoas emolduravam a parafernália de presentes, para glória do Venturoso, Senhor do Oriente, do Império e da Conquista, vassalo do Papa, mas seu igual, temido e invejado dono dos mares tormentosos. A Tristão da Cunha competia obter  bulas e breves, e a bênção do representante de Deus, a troco das generosas arcas carregadas pelo paquiderme.
Roma estava rendida. À ordem de João Faria, trombetas e tambores  anunciaram  os novos centuriões. Fernão Pires, do Paço de Sintra, era responsável pelo elefante, e guardador do tesouro de mais de quinhentos mil cruzados. O animal diversas vezes se mostrou enervado com os camponeses, que em algazarra seguiam o cortejo ao longo da estrada, só o mahout, sentado na lombada o mantinha em sossego, afugentando os campónios quando, estridente, fazia ecoar a presença, atarantando  os cavalos da comitiva. Garcia de Resende tombou uma vez, inclusive, quando o seu alazão se desgovernou assustado, projectando-o numa poça enlameada, para regalo de Tristão da Cunha que riu a bom rir, troçando do desafortunado secretário.
Entre satisfação geral, com os cardeais abismados e a criadagem receosa, a comitiva finalmente entrou no Castelo de Sant’ Angelo, com todos os lusos ricamente paramentados, e os tesouros expostos em louvor do Santo Padre. Ainda não refeitos do espanto, provocado pelos leopardos e pelos elegantes cavalos árabes que desfilavam altivos junto ao Tibre, perante assombro geral, abriu-se caminho para o visitante mais vistoso: o  portentoso elefante, paramentado e guiado pelo mahout, com Fernão Pires escoltando a cavalo, lançando moedas de ouro e ostentando o pavilhão do rei de Portugal desfraldado ao vento. Atónita,toda a praça estremeceu, e quase dispersou, quando o portentoso proboscídeo soltou um guincho tonitruante, deixando os guardas suíços temerosos e colocando-se em posição de fogo.
Para espanto geral, e à ordem de Tristão da Cunha, o elefante ajoelhou três vezes, dócil, em sinal de reverência, e depois, obedecendo a um aceno do tratador, aspirou a água de um barril com a tromba, e espirrou-a sobre a multidão, deixando os aterrados cardeais benzendo-se, temerosos daquele gigante e recente converso.
O Papa aproximou-se, e a medo o Senhor dos Altares foi ao encontro do Senhor da Selva. Tristão da Cunha fez então a entrega do presente ao romano pontífice:
-Santidade, El-Rei D.Manuel, meu senhor, fez mercê de vos enviar o mais pujante dos animais encontrado em nossas e vossas terras das Índias. Um elefante, Hanno, o nome porque atende. Apesar de corpulento, conta apenas quatro anos, poucos para a sua espécie. Veio de Cochim até Roma, para Deus Nosso Senhor servir e reverenciar! 
A um sinal do tratador, o elefante ajoelhou, a receber bênção do Papa, ainda inseguro, não fosse o presente enervar-se.
Garcia de Resende registou o momento. Séculos depois do grande Aníbal, o poderoso rei de Portugal, senhor de remotas e desvairadas gentes, e também ele Grande Elefante dum Império onde o sol nunca se punha, deslumbrava a Sé Apostólica e erguia o nome luso às portas da Cidade Eterna.
À ordem do Pontífice, o camerlengo conduziu Hanno para um improvisado picadeiro, e sua nova morada, à sombra de sinos e basílicas. Afeiçoado, Leão X mais tarde mandou erigir-lhe um estábulo no Borgo de Sant’Angelo e com o tempo, participou mesmo em procissões e desfiles, recordação da leal nação portuguesa, grande e pujante nos mares, como Hanno entre os romanos.
No Paço de Sintra, recebida a notícia do deslumbre provocado, o Venturoso regozijou-se, triunfante, enquanto duma varanda lançava a um fosso uma lebre, alimentando um altivo tigre do Malabar. Deus punha, e o rei de Portugal dispunha, num mundo onde o mar oceano era um imenso lago português.

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