sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Bom Povo Português



Quando entrares na violência vai até o fim; se não aguentas, não entres."
Agostinho da Silva

Assinalam-se hoje 91 anos dos trágicos eventos da “Camioneta Fantasma”, designação pela qual ficou conhecida a sangrenta revolta de marinheiros e arsenalistas no decurso da qual foram assassinados, entre outros, António Granjo, então presidente do Ministério, Machado Santos e José Carlos da Maia, dois dos históricos da Proclamação da República Portuguesa, o comandante Freitas da Silva, secretário do Ministro da Marinha, e o coronel Botelho de Vasconcelos, antigo apoiante de Sidónio Pais. Na origem da revolta, esteve a saída do governo de Liberato Damião Ribeiro Pinto, e a sua condenação a um ano de detenção dele e de um conjunto de militares do Exército e da Armada.
Segundo Carlos Ferrão, nessa altura o país vivia uma agonia colectiva e declínio nacional. António José de Almeida era o presidente da República e António Granjo o chefe do Governo, republicano, que fora deputado, director do jornal República, ministro da Justiça e da Agricultura, e quatro vezes presidente do Ministério. Quer o presidente da República, quer Granjo, líder do Partido Liberal, tinham derrotado nas urnas o Partido Democrático.
Foram os militares apoiantes deste partido que se revoltaram, naquele dia 19 de Outubro de 1921. Lisboa acordou com os tiros de mais uma revolução. Eram sete e dez, e desde as cinco e quarenta e cinco que tropas da GNR ocupavam pontos estratégicos da capital. Só na Rotunda, a GNR concentrou 7000 homens. Granjo foi com alguns dos seus ministros para o campo de aviação da Amadora, apresentando antes a demissão do seu cargo a António José de Almeida, que a aceitou. Cerca das cinco da tarde regressou a Lisboa. A cidade estava em poder dos revoltosos e Granjo refugiou-se em casa de Cunha Leal, amigo e vizinho, e seu ministro das Finanças. A casa do ministro estava vigiada, porém, e os revoltosos depressa souberam que Granjo ali estava. Manuel Maria Coelho, o lendário tenente Coelho da revolução de 31 de Janeiro de 1891, agora coronel, comandava os revoltosos, mas os acontecimentos trágicos dessa noite escaparam ao seu controlo.
A «camioneta fantasma»(foto acima) começou a sua sinistra tarefa transportando António Granjo e Cunha Leal para o Arsenal, junto ao Terreiro do Paço. Aí, o chefe do Governo, vencido, saltou três degraus e lançou as suas últimas palavras: – “Já sei o que vocês querem! Matem-me, que matam um bom republicano!”
Soou uma descarga; debaixo, corresponderam. António Granjo caiu ao comprido, vertendo sangue por todos os lados. Estava ainda nas últimas convulsões quando um dos assassinos sacou da espada e a cravou no estômago com violência tal que, atravessando o corpo, ficou presa no sobrado. Depois, friamente, pondo o pé sobre o peito de António Granjo, sacou a arma e gritou triunfalmente, mostrando-a aos companheiros: – Venham ver de que cor é o sangue do porco!.
Nessa noite, as casas de outros republicanos receberam a visita dos misteriosos facínoras, entre eles o famoso Dente d’Ouro, tendo por meios violentos e cruéis posto termo à vida de uns quantos mais, como se de uma batida se tratasse.
Vem isto a propósito dos celebrados brandos costumes do povo português. A começar em D. Afonso Henriques, que pôs a mãe a ferros, passando pelo punhal vingativo de D. João II, a acção da Inquisição, a defenestração de Miguel de Vasconcelos, o suplício dos Távoras ou o enforcamento de Gomes Freire, é preciso não esquecer que, tendo Portugal sido dos primeiros países a abolir a escravatura e a pena de morte, foi este mesmo Portugal quem já no século XX matou o rei D. Carlos e o presidente Sidónio Pais, abriu campos de concentração em Angra do Heroísmo e no Tarrafal, e, em nome duma guerra justa promoveu massacres em Wiriamu ou Nambuangongo.
Os tempos são outros, é certo, mas para se ver o quão violentos somos, é levar ao limite a capacidade de perseverança e de paciência dos povos. A revolta paira no ar, e os que detêm o mando esticam a corda, fiados na brandura dos costumes do “melhor povo do mundo”. Mahatma Gandhi, o pacifista, disse um dia: “Quando não se possa escolher senão entre a cobardia e a violência, aconselharei a violência." . Sublimando a cobardia, a água ferve na panela de pressão.

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