domingo, 5 de maio de 2013

O Reino de Baphomet



Como todos os sábados, Tiago e Alexandre juntavam-se para o passeio pela serra a carregar baterias. O ponto de encontro era no Café Paris, roupa fresca, botas apropriadas, as costumadas duas horas até à Azóia. Alunos de História na Clássica, os sábados eram momentos de evasão duma semana de cidade e de linha de Sintra.  Naquele dia, já perto da Penha Verde, desviando-se dum carro fora de mão, Alexandre tropeçou, rebolando alguns metros pela ravina, só parando num tojo de heras, meio escondido.

-Tudo bem contigo Alexandre? – Tiago, que seguia à frente, mal se apercebeu da queda do amigo, tal a rapidez, e correu a ajudá-lo.

-Grande safardana! Viste a matrícula do tipo? –levantando-se, irritado e dorido, e sacudindo as folhas que se lhe agarravam às calças.

-Não, foi muito em cima da curva. Algum paspalhão que tirou a carta na farinha Amparo…

Acto contínuo, Alexandre tropeçou num ferro disfarçado entre as ervas, uma  espécie de pega encrostada numa pedra grossa que ameaçava tombar. Afastou as folhas, e revolvendo a terra, descortinou o que parecia uma entrada. Aberta a tampa, um enorme sardão verde emergiu do buraco, escapando-se assustado entre as pernas de Tiago e deixando a descoberto o que parecia um túnel escuro, estreito e intrigante.

-Que é isto? Parece uma gruta... - aquele sábado prometia ser o dia de todos os insólitos.

-Deixa-me espreitar…-Tiago, atraído pela curiosidade, explorava o seu lado Indiana Jones-  tens aí um isqueiro?

Guiados pela chama, entraram, o túnel parecia comprido, exalando um cheiro forte a enxofre. Vinte metros à frente, uma pintura escurecida, disfarçada entre o musgo, retratava o que parecia ser uma cabra com asas num corpo humano, meio homem meio mulher.

-Que coisa  mais estranha! Que será isto aqui?

-Tem umas letras  aqui em baixo, mas é incompreensível. Esta  imagem não me é estranha, já vi algo parecido num lado qualquer…-comentou Alexandre, intrigado. A um estalar de dedos logo a memória se lhe avivou:

-Já sei! Vi uma imagem parecida com esta num livro de História. É uma representação do Diabo, tal como era visto na Idade Média. Já ouviste falar no Baphomet? É assim que os livros o representam, pelo menos Eliphas Levi, não leste o livro do José Mattoso? Alexandre passou a explicar, lembrava agora nitidamente as aulas de Medieval:

-A história do Baphomet está relacionada com a Ordem dos Templários. Uma das razões para Filipe o Belo extinguir a Ordem, em 1307, foi por supostamente estes adorarem o diabo, representado por uma figura com chifres a que chamavam Baphomet, bem como por cuspirem na cruz e terem práticas homossexuais, diziam. Aliás é por causa dessa figura que ainda hoje se fala em bode expiatório, quando se quer desculpar algo que se vai fazer sem razão de ser.

-Mas qual será a razão desta imagem estar aqui, neste local? -questionou Tiago. -Queres andar mais para a frente?

Ofegante, Alexandre, caminhando na escuridão, ia narrando o que sabia da perturbante figura:

-O símbolo do Baphomet é fálico, possui seios de mulher e o pénis é  representado por um caduceu, como este aqui. É  um tipo de simbologia que aparece frequentemente na alquimia.

O túnel parecia infinito, e o isqueiro fraquejava. Já decidiam voltar para trás quando uma figura de barba grisalha  e capa branca, com uma cruz obnubilada ao centro, vinda não se sabe de onde, se lhes deparou, travando a retirada.

-Quem é você? -gaguejou incrédulo Alexandre, pensando estar a viver um inverosímil filme de aventuras.

-Quem ousa penetrar no Reino de Nosso Senhor Baphomet?- trovejou o intruso, parecia um cavaleiro, irritado e com os olhos faiscando, erguendo a espada na sua direção. Ficaram estarrecidos. Reino de Baphomet?

Fazendo um sinal, o cavaleiro mandou-os seguir à frente dele e sem reação e atónitos conduzidos a uma cripta onde duas imponentes colunas em pedra sobressaíam ao centro, cobertas por um tojo de heras. Um archote iluminava tenuemente, o aspeto era de há muito estar abandonado.

-Nosso amo Baphomet erguerá o seu chicote para vos castigar, intrusos! -continuou a figura, ameaçadora.

Vinda de cima, uma imagem holográfica e igual à da pintura falou aos  incautos passeantes de sábado:

-Estrangeiros, como ousaram entrar nos meus domínios? -trovejou a aparição. Por esta impertinência, acabam de provocar a fúria de Baphomet! -e sem os deixar falar, lançou-lhes uma maldição:

Por esta blasfémia sereis castigados, e sobre a vossa terra espalharei as trevas e a morte! Virão dez anos de cataclismos e penúria, posto o que sairei desta  caverna e dominarei triunfante!  E esfumou-se, tal como aparecera.

Já o cavaleiro se apressava a pôr termo aos dois, com um golpe de lâmina, quando outro vulto alto e esguio surgiu dum corredor lateral, com umas vestes medievais, uma barba escura e espada desembainhada.

-Em sentido,  infame! -gritou, dirigindo-se ao títere de Baphomet, e manobrando a espada, sem que o outro, surpreendido, pudesse reagir, cortou-lhe a cabeça hirsuta de um golpe só. Os dois amigos não acreditavam no que estavam a assistir, ignorando quando terminaria o pesadelo.

Com a espada ensanguentada virou-se então na direção dos dois amigos. Já eles pensavam ter chegado o fim dos seus dias, quando lhes fez um sinal para que ficassem tranquilos.

-Não temam, jovens. Eu sou D. João de Castro, vice-rei da Índia e  senhor da  Quinta da Penha Verde! -anunciou, com ar teatral, deixando-os ainda mais atónitos. Quando regressei do Oriente, onde servi nosso rei  D. Manuel, trouxe comigo valiosos artefactos oferecidos pelo rei de Bisnaga. Só anos depois descobri entre eles o pentagrama de Baphomet, que, em contacto com o Sol, acordou o chifrudo do sono em que repousava. Foi assim que o descobri em tempos, adormecido nos meus domínios -explicou, conformado.

-D. João de Castro? M..ma..mas o senhor está morto há quatrocentos anos! -gaguejou Tiago, cada vez mais baralhado.

-Que não haja perguntas onde não pode haver respostas…- atalhou enigmático, guardando a espada e sumindo no breu do túnel, na cripta, desaparecido o corpo do cavaleiro, apenas o cheiro a enxofre lembrava aos amigos o que acabavam de presenciar.

Pálidos das emoções, correram para o exterior, quase cegando ao contacto com a claridade da serra. Galgando a estrada, sem olhar para trás, correram até poder, deixando na neblina silenciosa a quinta do vice-rei, que ali penava  lutando contra o Mal. Já na Adega das Caves, pediram um whisky duplo, que emborcaram dum  trago. Nos túneis da Penha Verde, o Reino do Baphomet voltava a ficar adormecido. Até quando?

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