O seráfico
ministro das Finanças terminava mais uma sonolenta e aviltante fatwa contra o bolso dos contribuintes,
Francisco, acabando o jantar já indisposto, apressou-se a mudar o canal para
algo menos aterrador, um filme sobre tubarões brancos, no Discovery. De má em má notícia, apressou-se a abafar mais uma com
um brandy que trouxera de Cantanhede,
da casa do pai. O toque da campainha anunciou a chegada do Edgar, colega do
liceu e docente de História, para um serão já combinado. Oferecido um brandy velho, não negou, sentando-se na
poltrona frente à televisão onde tubarões perseguiam peixinhos no Pacífico, os
cortes dos subsídios ainda tema de conversa:
-Pois é Chico, ouviste o primeiro-ministro?
“Democratizar a economia“, “devolver a confiança”...Já não há pachorra para
estes tipos! Ainda por cima, com aquele ar de aluno da catequese, saiu pior que
o outro!
-Os dias que Portugal vive, a mim, fazem lembrar-me o
Sermão do Bom Ladrão, do Padre António Vieira. Acho mesmo que vou falar disso
aos meus alunos, no regresso das férias
-Padre António Vieira não é a minha praia,
Chico, qual é esse sermão? - Edgar, interessado, ia saboreando o brandy como quem colhia sabedoria para a
conversa:
-Hoje está muito esquecido, os brasileiros
chamaram-lhe Paiaçu, o Grande Padre, mas se releres muito do que escreveu,
encontrarás muita actualidade nos seus escritos. Premonitórios, até! -levantando-se,
Francisco sacou um livro da estante enquanto na televisão um tubarão branco
fazia mossa numa praia da Florida- Foi o
homem que disse: “não me temo de Castela, temo-me desta canalha”. Erguendo
o livro como uma preciosidade, apontou-o na direcção de Edgar: Este homem não foi um génio, foi oxigénio! –rematou,
voltando para a cadeira e um segundo brandy:
-A história é mais ou menos esta: pediu um
ladrão a Cristo que se lembrasse dele no seu reino, e a lembrança que este teve
foi que ambos se vissem no Paraíso. Nem os reis podem ir para o paraíso sem
levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir para o inferno sem levar
consigo os reis. A restituição do alheio não só deve obrigar os súbditos como
aos seus senhores. E leu um pouco:
"Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes que, assim como são superiores a
todos, assim são senhores de tudo, e é engano. A lei da restituição é lei
natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza
fez iguais a todos; e enquanto lei divina também os obriga, porque Deus, que os
fez maiores que os outros, é maior que eles. Esta verdade só tem contra si a
prática e o uso". Percebeste? Encriptada, aqui está uma grande verdade, e
foi um português que viu mais à frente que o seu tempo que a disse, Edgar!
O amigo,
saboreando a bebida, meneou a cabeça em tom de assentimento, continuando a
conversa:
-Quer dizer: roubar é tomar o alheio
violentamente contra a vontade do dono; os que mandam tomam muitas coisas aos
que governam, violentamente, e contra a sua vontade: logo, o roubo é lícito
nalguns casos, porque, se se dissesse que quem manda, assim fazendo, age
errado, todos eles, ou quase todos se condenariam a si próprios. Aliás, já S. Tomás
de Aquino dizia que se os príncipes tiram aos súbditos o que por justiça lhes é
devido para conservação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é
rapina ou roubo. Porém, se tomarem por violência o que se lhes não deve, é
rapina e latrocínio. Donde que os que mandam, estão obrigados à restituição,
como os ladrões, e pecam mais gravemente que os ladrões, quanto mais perigoso e
mais comum é o dano com que ofendem a justiça de que são supostos defensores.
-Nem mais, meu caro. Vês a actualidade desse
texto? O mundo não mudou assim tanto, nestes anos….. Olha, gosto
particularmente deste trecho: “os reinos são latrocínios, ou ladroeiras
grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos”. Neste Sermão do
Bom Ladrão, o Vieira conta um diálogo ocorrido entre um pirata e Alexandre
Magno, rei da Macedónia que foi educado por Aristóteles. Navegava Alexandre
pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e, como trouxessem à sua presença um
pirata que andava roubando os pescadores, repreendeu-o Alexandre por andar em
tão má vida; porém, ele, respondeu assim:" Basta, senhor, que eu, porque
roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?
- Assim é. "O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar
com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres”-empolgado,
Francisco lia em voz alta o livro com frases sublinhadas, seria uma matéria
interessante para dar aos alunos no segundo período. E continuou:
-Moral da história, Edgar? O ladrão que rouba
para comer não vai para o inferno; os que vão, são outros ladrões, de maior
calibre e mais alta esfera. Os ladrões que mais propriamente merecem este
título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, o governo
ou a administração das cidades, os quais com manha e força, roubam e despojam
os povos. Os outros ladrões roubam os homens. Estes roubam cidades e países; os
outros furtam com risco: estes sem temer, nem desplante; os outros se furtam,
são presos: estes prendem e perseguem.
-No fundo, o mundo é um mundo de ladrões.
Adão e Eva não foram os primeiros, ao roubar a maçã? E Cristo ao morrer não o
foi ao lado de dois ladrões, a quem disse, “hoje mesmo estareis comigo no
Paraíso”? -Edgar surpreendia-se consigo mesmo, da cozinha Mena, a mulher do
Chico, chegava com café e bolinhos.
-O mal é que hoje os ladrões são mais ainda,
e estão bastante dissimulados. A maior parte até diz roubar para nosso bem! -rematou
o Francisco. Cansado dos tubarões, mudou o canal com o comando, sem novidade,
apareceu o primeiro ministro a anunciar novos cortes, para cumprir o memorando
da troika.
-Estes canais hoje só dão programas com
predadores...- atirou a Mena, com ironia, e servindo mais um café.
Sem comentários:
Enviar um comentário