Como todos os sábados, Tiago e
Alexandre juntavam-se para o passeio pela serra a carregar baterias. O ponto
de encontro era no Café Paris, roupa fresca, botas apropriadas, as
costumadas duas horas até à Azóia. Alunos de História na Clássica, os sábados
eram momentos de evasão duma semana de cidade e de linha de Sintra.
Naquele dia, já perto da Penha Verde, desviando-se dum carro fora de mão,
Alexandre tropeçou, rebolando alguns metros pela ravina, só parando num tojo de
heras, meio escondido.
-Tudo bem contigo Alexandre? – Tiago,
que seguia à frente, mal se apercebeu da queda do amigo, tal a rapidez, e
correu a ajudá-lo.
-Grande safardana! Viste a matrícula
do tipo? –levantando-se,
irritado e dorido, e sacudindo as folhas que se lhe agarravam às calças.
-Não, foi muito em cima da curva. Algum paspalhão que tirou a
carta na farinha Amparo…
Acto contínuo, Alexandre tropeçou num
ferro disfarçado entre as ervas, uma espécie de pega encrostada numa
pedra grossa que ameaçava tombar. Afastou as folhas, e revolvendo a terra,
descortinou o que parecia uma entrada. Aberta a tampa, um enorme sardão verde
emergiu do buraco, escapando-se assustado entre as pernas de Tiago e deixando a
descoberto o que parecia um túnel escuro, estreito e intrigante.
-Que é isto? Parece uma gruta... - aquele sábado prometia ser o dia de
todos os insólitos.
-Deixa-me espreitar…-Tiago, atraído pela curiosidade,
explorava o seu lado Indiana Jones- tens aí um isqueiro?
Guiados pela chama, entraram, o túnel
parecia comprido, exalando um cheiro forte a enxofre. Vinte metros à frente,
uma pintura escurecida, disfarçada entre o musgo, retratava o que parecia ser
uma cabra com asas num corpo humano, meio homem meio mulher.
-Que coisa mais estranha!
Que será isto aqui?
-Tem umas letras aqui em baixo,
mas é incompreensível. Esta imagem não me é estranha, já vi algo parecido
num lado qualquer…-comentou
Alexandre, intrigado. A um estalar de dedos logo a memória se lhe avivou:
-Já sei! Vi uma imagem parecida com
esta num livro de História. É uma representação do Diabo, tal como era visto na
Idade Média. Já
ouviste falar no Baphomet? É assim que os livros o representam, pelo menos
Eliphas Levi, não leste o livro do José Mattoso? Alexandre passou a
explicar, lembrava agora nitidamente as aulas de Medieval:
-A história do Baphomet está
relacionada com a Ordem dos Templários. Uma das razões para Filipe o Belo
extinguir a Ordem, em 1307, foi por supostamente estes adorarem o diabo,
representado por uma figura com chifres a que chamavam Baphomet, bem como por
cuspirem na cruz e terem práticas homossexuais, diziam. Aliás é por causa dessa
figura que ainda hoje se fala em bode expiatório, quando se quer desculpar algo
que se vai fazer sem razão de ser.
-Mas qual será a razão desta imagem
estar aqui, neste local? -questionou Tiago. -Queres andar mais para a frente?
Ofegante, Alexandre, caminhando na
escuridão, ia narrando o que sabia da perturbante figura:
-O símbolo do Baphomet é fálico,
possui seios de mulher e o pénis é representado por um caduceu, como este
aqui. É um tipo de simbologia que aparece frequentemente na alquimia.
O túnel parecia infinito, e o
isqueiro fraquejava. Já decidiam voltar para trás quando uma figura de barba
grisalha e capa branca, com uma cruz obnubilada ao centro, vinda não se
sabe de onde, se lhes deparou, travando a retirada.
-Quem é você? -gaguejou incrédulo Alexandre,
pensando estar a viver um inverosímil filme de aventuras.
-Quem ousa penetrar no Reino de
Nosso Senhor Baphomet?- trovejou o intruso, parecia um cavaleiro, irritado
e com os olhos faiscando, erguendo a espada na sua direção. Ficaram
estarrecidos. Reino de Baphomet?
Fazendo um sinal, o cavaleiro
mandou-os seguir à frente dele e sem reação e atónitos conduzidos a uma cripta
onde duas imponentes colunas em pedra sobressaíam ao centro, cobertas por um
tojo de heras. Um archote iluminava tenuemente, o aspeto era de há muito estar
abandonado.
-Nosso amo Baphomet erguerá o seu
chicote para vos castigar, intrusos! -continuou a figura, ameaçadora.
Vinda de cima, uma imagem holográfica
e igual à da pintura falou aos incautos passeantes de sábado:
-Estrangeiros, como ousaram entrar
nos meus domínios? -trovejou
a aparição. Por esta impertinência, acabam de provocar a fúria de Baphomet!
-e sem os deixar falar, lançou-lhes uma maldição:
Por esta blasfémia sereis castigados,
e sobre a vossa terra espalharei as trevas e a morte! Virão dez anos de
cataclismos e penúria, posto o que sairei desta caverna e dominarei
triunfante! E
esfumou-se, tal como aparecera.
Já o cavaleiro se apressava a pôr
termo aos dois, com um golpe de lâmina, quando outro vulto alto e esguio surgiu
dum corredor lateral, com umas vestes medievais, uma barba escura e espada
desembainhada.
-Em sentido, infame! -gritou, dirigindo-se ao títere de
Baphomet, e manobrando a espada, sem que o outro, surpreendido, pudesse reagir,
cortou-lhe a cabeça hirsuta de um golpe só. Os dois amigos não acreditavam no
que estavam a assistir, ignorando quando terminaria o pesadelo.
Com a espada ensanguentada virou-se
então na direção dos dois amigos. Já eles pensavam ter chegado o fim dos seus
dias, quando lhes fez um sinal para que ficassem tranquilos.
-Não temam, jovens. Eu sou D. João de
Castro, vice-rei da Índia e senhor da Quinta da Penha Verde! -anunciou, com ar teatral, deixando-os
ainda mais atónitos. Quando regressei do Oriente, onde servi nosso rei
D. Manuel, trouxe comigo valiosos artefactos oferecidos pelo rei de
Bisnaga. Só anos depois descobri entre eles o pentagrama de Baphomet, que, em
contacto com o Sol, acordou o chifrudo do sono em que repousava. Foi assim que
o descobri em tempos, adormecido nos meus domínios -explicou, conformado.
-D. João de Castro? M..ma..mas o
senhor está morto há quatrocentos anos! -gaguejou Tiago, cada vez mais baralhado.
-Que não haja perguntas onde não pode
haver respostas…- atalhou
enigmático, guardando a espada e sumindo no breu do túnel, na cripta,
desaparecido o corpo do cavaleiro, apenas o cheiro a enxofre lembrava aos
amigos o que acabavam de presenciar.
Pálidos das emoções, correram para o
exterior, quase cegando ao contacto com a claridade da serra. Galgando a
estrada, sem olhar para trás, correram até poder, deixando na neblina silenciosa
a quinta do vice-rei, que ali penava lutando contra o Mal. Já na Adega
das Caves, pediram um whisky duplo,
que emborcaram dum trago. Nos túneis da Penha Verde, o Reino do Baphomet
voltava a ficar adormecido. Até quando?
Sem comentários:
Enviar um comentário