Projecto de carolas gisado em fins de tarde nos cafés de
Galamares, Alagamares se lhe decidiu chamar, por ser esse o primitivo topónimo
da aldeia onde a maioria dos fundadores morava e, porque tal como o mar alagava
o rio das maçãs quando este era navegável, também assim se desejou, que como a
água purificadora, o conhecimento e o desafio de alargar o espírito alagassem
as mentes dos que connosco abraçaram este projecto.
Fizemos colóquios e passeios, oficinas artísticas e debates,
convívios e conferências. Não esquecemos valores locais, em carne e em pedra.
Zelámos para que um chalé arruinado revisse portentoso a luz de Sintra e o seu
cheiro inebriante. Demos a conhecer e aprendemos. E, apesar do mar revolto e
dos pequenos adamastores, continuamos nessa senda, por vezes quixotesca, mas
que por isso mesmo nos torna cidadãos mais reconciliados connosco próprios,
caminhando na Estrada e não nas bermas, nesta terra com uma serra por
sentinela, milenar guardiã e larvar berço de lendas e histórias, de mouros e
cristãos, visionários e viajantes, aristocratas e feiticeiros, espantados com o
sempre odorífico triunfo do verde e em presépio aninhando casas, palácios,
fontes e miradouros, na pretérita lembrança do Cruges e Calisto Elói, de
Garrett e Zé Alfredo, de Anjos Teixeira e M.S.Lourenço, da feiticeira Llansol e
de Nunes Claro, ou mesmo até do Carvalho da Pena cavalgando na serra, druida da
floresta e dos lagos.
Utópico altar de poetas, lusitano reino dum palpável
Parnasso, invocamos hoje todos os vivos, de Maria Almira a Rui Mário, de Jorge
Menezes a João Mello Alvim, de Miguel Real a Sérgio Luís Carvalho, e todos os
generosos artistas de muitas gerações, rodopiando em danças medievais ou em
bailes das camélias, ovacionando os vitoriosos patins de Raio e Cipriano, na
terra que em queijadas e travesseiros descobriu os prazeres do açúcar e orgias
do paladar à sombra tutelar do Paço.
Em Sintra nos fixámos, e hipnotizados mirámos o castelo de
onde invisíveis ogres lançam caldeirões de azeite e soturnas bruxas invadem a
noite em holográficas vassouras. Aqui escutámos os passos dum rei prisioneiro e
o ecoar das festas joaninas, um amargurado Camões lendo para um rei alucinado,
a condessa d’Edla e D.Fernando, acorrendo à Vila com o repicar do sino em S.
Martinho ao fundo.
Invisíveis faunos e visíveis heróis, incensados e perdidos,
esperançosos e idealistas tomam lugar no camarote do tempo, com escolta dos
pássaros e camélias, anunciando o lauto festim de Sintra à sombra da argêntea
Lua.
A Alagamares está na estrada e não na berma. Sem dinheiro,
mas enriquecida pelo contributo dos que amam Sintra e a querem como vila
criativa e nicho de cultura, onde cada cidadão seja um jardineiro e cada munícipe
um laborioso operário dessa utópica Pólis, voltado para o primado do Nós e
refreando os Egos que todos juntos apenas subtraem e nada somam.
Estaremos no abate injustificado de cada árvore, na
divulgação dos artistas sem luzes da ribalta e dos arredados da fama. Estaremos
na luta pelo restauro do património público e privado que sangra em muitas
vielas da Vila Velha ou nos iníquos depósitos de gente e frustrações que são os
subúrbios a que chamam áreas metropolitanas. Estaremos no desfolhar deste livro
ainda incompleto que é Sintra e as suas gentes.
É tempo de celebrar. E além de celebrar, lembrar. Lembrar que
a esperança se constrói e não é só um estado de alma; que o Futuro sem desafio
em breve será um passado desolador, que é este o momento e a hora da nossa
geração deixar marcas e pegadas que um dia nos possam deixar dizer: valeu a
pena. E ao dar a conhecer a nossa História e tradições, artistas e artesãos,
tendo sempre em mira a necessidade da inscrição, como escreveu José Gil, de ter
espírito crítico e modelador da cidadania na nossa apreensão das expressões
culturais, atentos àquilo que com a cultura se pode alterar, inscrevendo a
verdadeira mudança e não a mera reprodução de modelos e estereótipos, fazer da
cultura e da expressão cultural uma arma para transformar intrinsecamente a
sociedade e não apenas um camarote de vaidades ou manifestações culturais
acríticas e folclóricas, pindericamente estrangeiradas e serôdias.
Somos poucos, mas seremos aquilo que nenhum triunvirato de
usurários da finança conseguirá que deixemos de ser: livres e com opinião,
livres para ouvir e para falar, construtivos no objectivo de destruir atavismos
mentais e abrir portas à suave brisa da mudança.
Pelo ano fora, haveremos de nos ver por aí, em debates e
roteiros, em intervenções e denúncias, e cúmplices, saberemos quem somos e ao
que vimos, e dia a dia, evento a evento, haveremos de escrever com letra grande
a palavra Cidadão.
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