A chegada ao aeroporto de
Maiquetia fora acidentada, com uma turbulência irritante, tombara trovoada
sobre o mar das Caraíbas. Malas desaparecidas, humidade asfixiante, bovinos
polícias mirando os passaportes. Era a Venezuela.
Pela primeira vez Jorge
Antunes, dono duma empresa na Abrunheira, viajava até Caracas, movido pelo sucesso do
Magalhães, ali batizado de Canaima, e bandeira de propaganda na campanha da
educação para todos. Tinha um contacto, o irmão dum amigo de Porto Santo, que
para lá emigrara nos anos sessenta, Vasco Jardim, que o esperava na zona das
chegadas.
-Viva! Você é o Vasco, o irmão do Silvino, não é? -cumprimentou,
largando a mala de rodas, o “bobby”, como lhe chamava.
-Sou ele mesmo! Bem- vindo à Venezuela! -respondeu o português, com
um sotaque castelhano, sessenta anos e bigode farto. Um general Tapioca lusitano,
pareceu-lhe à primeira impressão.
A viagem para a cidade, a cerca de
trinta quilómetros, pareceu-lhe tirada de um filme de narcotraficantes. Casas
abarracadas, de zinco e tijolo, crianças seminuas jogando à bola, muita humidade,
e carros antiquados. E cartazes, muitos cartazes, Hugo Chavéz omnipresente, o
caudilho da esquerda e pai dos pobres, fiel protetor contra os yankies imperialistas.
-Então como vai isto por aqui? O povo gosta do Chávez?
-Estão todos iludidos, sr.Antunes. Enquanto o petróleo render, o Chavéz
aguenta-se, mas não acredite em nada do que vê na televisão. Os portugueses, aqui,
então, vão de mal a pior, raptos, assaltos… -desabafou o madeirense, entre
a angústia e o orgulho, dono de uma cadeia de talhos e quarenta postos de
trabalho, uma vida de sacrifício. Já
tratei da sua reunião, amanhã às quatro levo-o lá!
Jorge alojou-se no Hotel Altamira.
Jardim insistira para que ficasse em sua casa, mas não quis abusar.
No dia seguinte, reunião no Ministério del Desarollo Nacional. Edifício kitsch, com bandeiras venezuelanas omnipresentes, funcionários com feições ameríndias, grandes orelhas e narizes achatados, serpenteavam por salas obscuras, refrescadas por velhas ventoinhas. A reunião era com um tal Montalbán, numa sala dominada por duas grandes fotos, Símon Bolívar e Chavéz lado a lado, um telefone antigo e máquinas de escrever. Jardim, anti-chavista, preferiu esperar num café próximo.
No dia seguinte, reunião no Ministério del Desarollo Nacional. Edifício kitsch, com bandeiras venezuelanas omnipresentes, funcionários com feições ameríndias, grandes orelhas e narizes achatados, serpenteavam por salas obscuras, refrescadas por velhas ventoinhas. A reunião era com um tal Montalbán, numa sala dominada por duas grandes fotos, Símon Bolívar e Chavéz lado a lado, um telefone antigo e máquinas de escrever. Jardim, anti-chavista, preferiu esperar num café próximo.
-Pois, caro senhor, a Venezuela quer estreitar cooperação com Portugal,
e como sabe, os nossos governos vêm colaborando já. Que novos projectos
poderemos lançar? –começou o interlocutor, de camisa vermelha, funcionário
do partido por certo.
Antunes sacou de dois dossiês e de
um portátil, e foi desfiando um powerpoint
com as virtudes do software português,
mais barato, exportável, ibero-americano. Angola já tinha adoptado, seria um
progresso qualitativo na gestão documental, enfatizou, ensaiando o
“politiquês” que se habituara a ouvir nos telejornais.
Montalbán chamou um assessor e
mostrou-lhe os dossiês, enquanto Antunes, ansioso, bebia um café mirando pelo
canto do olho o retrato de Bolívar. Parecia D.João VI, nesse tempo os tipos
eram todos iguais, interiorizou. Retomando a conversa, Montalbán foi mais
assertivo:
-E falamos de que valores, siñor Antunes?
-Temos software, assistência, patentes e seguros, pode assegurar-se um
contrato inicial, de… vejamos… dois anos, com opção de mais dois. Será bom para
ambas as partes, veja bem, até tendo em conta os nossos patrícios que cá vivem.
Um contrato simbólico para começar, aí uns quinhentos mil euros, não sei quanto
é em bolívares, mas asseguro-lhe que a concorrência não fará melhor, só se for
chinesa e escrava.
Montalban, com a mão aberta,
fez-lhe sinal para parar:
-Siñor Antunes, creio que não me entendeu. Falo de amizade, de
generosidade, para que o povo venezuelano possa acolher esta proposta como
sinal de amizade. Os amigos não podem ser esquecidos, está a ver…
Antunes estranhou o discurso,
hiperbólico. Estava tudo na proposta, o AICEP apadrinharia e o Banif também.
-Precisa de estudos de mercado? Posso ligar para Lisboa e mandar vir
por mail, não há problema…
-A Venezuela espera é que os verdadeiros amigos se comportem como…
amigos….E sacando duma folha, garatujou uns números e uma morada, entregando-a
a Antunes dobrada em quatro. Dando a reunião por encerrada, despediu-se,
deixando-o à toa com o papel dobrado na mão. Chegado à rua, percebeu
finalmente. Afinal havia que expressar com provas a amizade entre
os povos...
Dois meses depois, durante a
visita do Ministro do Desarollo Nacional a Lisboa, numa
pomposa cerimónia no CCB, ufano, Antunes selava a entrada da empresa em mais um
mercado amigo, realçando os méritos da tecnologia nacional e os preços
competitivos da sua firma. A Guiné Equatorial estava na calha, Marrocos também.
Como era bela Caracas, de clima ameno e ruas largas, agora rumo ao futuro com um
sofisticado software made in Abrunheira…
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