Quinze
anos, levava Bento Rodrigues no Ministério da Agricultura. Simples terceiro
oficial, nos anos sessenta, subira a pulso na repartição, numa cinzenta sala
interior, sem vista para o Terreiro do Paço, submetendo despachos aos
"concordos" dos sete directores gerais com quem trabalhara, todos
eles, veneradamente, “ a bem da nação”.
O
senhor doutor Marcelo Caetano já lhe havia garantido reforma na velhice, que
Deus o guardasse, e a mãe, lá na aldeia, obtivera uma pensão da Casa do Povo. O
António, estava a concluir o Ateneu, e com orgulho da família, iria entrar em
Económicas.
Não
tinha vícios repreensíveis. Não fumava ou bebia, apenas torcia pelo Belenenses.
Uma vez por ano, toda a família ia passar o Agosto na casa duns primos, na Foz
do Arelho, e ajudar na apanha das batatas, que depois recheariam o carro e a
dispensa no Inverno.
Era um
homem satisfeito, bom cristão, sempre pontual, casaco e gravata usados, mas
apresentáveis, o funcionário público que o País precisava, não percebendo como
é que turras instigados pela corja bolchevista atacavam o nosso glorioso
trabalho no Ultramar.
Durante
alguns anos, a pedido do senhor director geral, discretamente lhe elaborou
relatórios sobre as conversas que ia ouvindo a alguns técnicos mais ingratos
com o que a Nação lhes dava, e que, sussurrando pelos cantos, iam instigando
sobre a necessidade de reformar a lavoura, sobretudo no Alentejo, criticando as
avisadas opções do terceiro plano de fomento.
-Esta
gente precisa de rédea curta, há sempre bicho até na melhor maçã, Rodrigues!-
alertava o doutor Madureira, chefe de divisão da confiança de quatro ministros,
”todos grandes portugueses”, como costumava repetir.
E
Rodrigues lá cumpria religiosamente o patriótico trabalho de expedir ofícios, e
diligentemente vigiar os prevaricadores da lei e da ordem, na discrição do seu
canto no Ministério. Por vezes puxava conversa com alguns dos engenheiros, a
pretexto do tempo ou da prestação do Benfica na Taça das Cidades com Feira,
assim obtendo preciosas informações para o leal dr. Madureira,
Uma
quinta-feira chuvosa, já em 1974, cenário anormal e surpreendente se lhe
deparou à chegada ao Ministério, às cinco para as nove, sagrada hora da
entrada, durante mais de quinze anos. Veículos militares ocupavam o Terreiro do
Paço, e militares armados gesticulavam e rodeavam os vetustos ministérios.
Tentou entrar, mas mandaram-no para casa, que ficasse atento às rádios.
O mundo
de Bento Rodrigues mudou muito desde então. Aos poucos, do espanto pelo
sucedido com a “tal Abrilada”, passou à revolta, e da revolta á resignação.
No
Ministério passaram ministros militares, alentejanos gritando por reforma
agrária, o doutor Madureira, injustamente, foi saneado.
Com o tempo, foi-se adaptando. Afinal, a bem
ver, o país estivera estagnado, a guerra fora injusta, os malandros dos
latifundiários não passavam de ociosos proprietários de campos escandalosamente
abandonados. Revolução à cubana nunca, que a NATO não deixaria, mas liberdade
com responsabilidade, a Europa do Mercado Comum, isso sim, anuía.
Certo
dia, com surpresa, foi convidado por um partido de esquerda para candidato
à Junta de Freguesia. Agradado, lá
aceitou. Foi eleito.
Dois
mandatos,várias placas em ruas, e três parques infantis depois, o partido
estava rendido. Estava na calha para a vereação nas eleições seguintes.
Bento
Rodrigues reformou-se há alguns anos. Na hora da despedida, foi agraciado com a
medalha de ouro do município, agradecimento sincero ao contributo
insubstituível que dera para as causas da democracia e da liberdade.
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