sexta-feira, 25 de abril de 2014

A recruta de Artur Baleizão



Reprovado em Direito e com o segundo ano em atraso, em Março de 1974 Artur Baleizão foi incorporado em Santarém, Cavalaria, o ramo onde andava uma besta por cima e outra por baixo, como dizia o avô, veterano da I Guerra. A viagem desde o Alentejo até nem era longa, mas a perspectiva de ir parar a África mais tarde não o deixava tranquilo. O pai já falara com o capitão Maia, conterrâneo de Castelo de Vide, mas a hipótese de ir para o Ultramar finda a recruta era incerta ainda, as coisas estavam acesas na Guiné desde que o general Spínola saíra e editara um livro que deixara muita gente nervosa. Na véspera da incorporação tinham ocorrido incidentes nas Caldas, nunca percebera porquê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores sabia atar, com espinha bifida e óculos graduados, estava como um papagaio em capoeira, suportando estoicamente a solha frita à quinta-feira e o Fernandes a ressonar e a fazer as camas à espanhola.

Nessa quarta-feira a ordem de recolher foi às nove, antes ainda, telefonou à Mariana para que se encontrassem  em Lisboa no fim-de-semana, para um copo no Jamaica. Na quinta de manhã haveria instrução de sapadores e ainda lhe doíam as pernas do cross da véspera, vida estúpida para quem não queria fazer carreira, a farda feijão verde alvo de troça em Santa Apolónia. Não conseguiu dormir logo, havia barulho na messe dos oficiais, copos pela certa, o Paiva, do pelotão dele, estava de serviço, esperaria por ele para um bate papo, só a luz de presença estava ligada na caserna. Aí pelas onze e meia, o segundo-comandante, furibundo, atravessou a parada aos gritos, Cavalaria não era mole e Santarém era a elite. Parte dos milicianos seguiria para o contingente NATO, Tancos ou Santa Margarida, outros para África, Nambuangongo parecera ter sido coisa séria.

Já perto da uma, o Paiva não aparecera ainda, mas uma algazarra soou, vinda da parada, aparecendo o tenente Barbeitos aos gritos à  porta da caserna e a mandar formar em dez minutos. Mais uma praxe, pensou, enfadado. Todos formados, foram então informados que sairiam para uma missão em Lisboa. Ordem de equipar o M-64 e G-3 municiada, duas rações de combate por homem, até parecia ter rebentado a guerra, pensou, lembrando a guerra do Solnado, aquele folclore sempre lhe parecera obsoleto e teatral, mas havia que ser resiliente, antes Lisboa que Bissau ou os Dembos.

No meio do reboliço, descortinou o capitão Maia, seu patrício, usando um camuflado e falando em murmúrio com uns graduados. Ordenando sentido, dirigiu-se aos recrutas na formatura:

-Homens! Se bem que ainda não tenham completado a vossa recruta, a vossa destreza vai ser hoje testada! Há uma missão a cumprir: marchar para Lisboa, e controlar o acesso a vários locais, ao Banco de Portugal, à Rádio Marconi e ao Terreiro do Paço. A vossa missão visa devolver a dignidade ao povo português e demitir o governo que tarda em arranjar soluções para os problemas inadiáveis do nosso país! Quem estiver contra, que dê um passo atrás!

O que parecia uma praxe, era afinal coisa séria, parecia um pronunciamento militar, que fazer? Por um lado, a política pastosa que o atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas e se falhassem, mal tinha feito instrução de tiro, o Forte de Elvas poderia bem ser o fim para a inesperada aventura nocturna. Ninguém deu passos atrás. Um oficial correu entretanto a falar ao capitão Maia:

-Está tudo em marcha. A senha foi confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo, meu capitão!

-Óptimo! -saltando para o Chaimite, Salgueiro Maia mandou avançar para a porta de armas, nessa noite não haveriam camas à espanhola.

Um esquadrão de reconhecimento com dez viaturas blindadas e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas ambulâncias e mais um jipe saía amotinado para Lisboa. Tudo era confuso, mas excitante, Artur e o Paiva, no chaimite, estavam intrigados, com sorte talvez ainda essa noite bebessem um copo no Cacau da Ribeira.

A entrada em Lisboa ocorreu pelas cinco e meia. No Campo Grande, um polícia sonolento olhou desconfiado para a coluna mas não interferiu, manobras com certeza, não houvera nenhum alerta. O Paiva e o esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão Maia tomaram posição no Terreiro do Paço, já carrinhas com legumes da Malveira se dirigiam para o Cais de Sodré. Sem encontrar grande oposição, Salgueiro Maia contactou pelo AVP1 com um misterioso Posto de Comando, dando conta da situação:

-"Informo que ocupámos Toledo (T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!

-Afirmativo! -respondeu uma voz algo metalizada do outro lado. -Papa Charlie no controlo!

As coisas pareciam correr bem e sem oposição, até o comandante distrital da PSP veio oferecer colaboração, descongestionando o trânsito. Com o amanhecer, o primeiro 28 para a Graça cruzara já a praça, surpreso com o aparato. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão Maia:

-Meu capitão, vamos dar cabo do Marcelo, não vamos?

-Podes escrever, Artur, temos de pensar nos nossos filhos, e em Portugal! Esta é a nossa hora! -respondeu, pondo-lhe a mão no ombro. Apesar de sereno, tinha um ar cansado, aparentemente nenhuma coluna mais viria juntar-se-lhes, eram doze blindados com recrutas  contra o poderoso  Império, que aparentemente parecia não ir a jogo.

Chegando gente aos ministérios, alguns oficiais afectos ao governo apareceram a desafiar os amotinados, chegando o ambiente a aquecer com as provocações de  Ferrand de Almeida, a recusa dos seus homens em atacar o esquadrão de Maia fez passar os Panhard para o lado dos homens de Santarém. Artur regozijava, a farda verde  da chacota tornava-se agora símbolo de tenacidade e de verde-esperança.

À medida que as notícias dos acontecimentos se iam espalhando, e apesar dos apelos para ficar em casa, as pessoas começaram a invadir as ruas. Com um frémito na espinha, Artur viu a Mariana a acenar-lhe de lágrimas nos olhos perto da Rua do Arsenal, o copo no Jamaica chegaria mais cedo. Um beijo, soprado de longe, foi o sinal de sucesso do movimento.

Alucinantes, os acontecimentos sucederam-se durante a manhã: pessoas saindo à rua, saudando e oferecendo cigarros, a deslocação apoteótica para o  Largo do Carmo, o abraço emocionado ao Paiva e aos camaradas do esquadrão. Uma florista do Rossio ofereceu-lhe um cravo vermelho, logo guardado para Mariana.

Passaram muitos anos, o orgasmo colectivo daquela extraordinária quinta-feira em que não houve instrução de sapadores, mudou o país de forma definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de Vide, não passa um dia sem que Artur deixe uma flor na soleira da casa onde nasceu o capitão Maia, vertendo uma melancólica lágrima ao lembrar aquela madrugada chuvosa em que um punhado de recrutas saltou à pressa do beliche para um encontro marcado com a História.

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