Reprovado em Direito e com o segundo
ano em atraso, em Março de 1974 Artur Baleizão foi incorporado em Santarém,
Cavalaria, o ramo onde andava uma besta por cima e outra por baixo, como dizia o avô,
veterano da I Guerra. A viagem desde o Alentejo até nem era longa, mas a
perspectiva de ir parar a África mais tarde não o deixava tranquilo. O pai já falara com o
capitão Maia, conterrâneo de Castelo de Vide, mas a hipótese de ir para o
Ultramar finda a recruta era incerta ainda, as coisas estavam acesas na Guiné
desde que o general Spínola saíra e editara um livro que deixara muita gente
nervosa. Na véspera da incorporação tinham ocorrido incidentes nas Caldas,
nunca percebera porquê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores sabia atar, com espinha bifida e óculos graduados, estava como um papagaio
em capoeira, suportando estoicamente a solha frita à quinta-feira e o Fernandes
a ressonar e a fazer as camas à espanhola.
Nessa quarta-feira a ordem de
recolher foi às nove, antes ainda, telefonou à Mariana para que se encontrassem em
Lisboa no fim-de-semana, para um copo no Jamaica.
Na quinta de manhã haveria instrução de sapadores e ainda lhe doíam as pernas
do cross da véspera, vida estúpida
para quem não queria fazer carreira, a farda feijão verde alvo de troça em
Santa Apolónia. Não conseguiu dormir logo, havia barulho na messe dos oficiais,
copos pela certa, o Paiva, do pelotão dele, estava de serviço, esperaria por
ele para um bate papo, só a luz de presença estava ligada na caserna. Aí pelas
onze e meia, o segundo-comandante, furibundo, atravessou a parada aos gritos, Cavalaria não era mole e Santarém era a elite. Parte dos
milicianos seguiria para o contingente NATO, Tancos ou Santa Margarida, outros
para África, Nambuangongo parecera ter sido coisa séria.
Já perto da uma, o Paiva não aparecera ainda, mas
uma algazarra soou, vinda da parada, aparecendo o tenente Barbeitos aos gritos
à porta da caserna e a mandar formar em dez minutos. Mais uma praxe,
pensou, enfadado. Todos formados, foram então informados que sairiam para uma
missão em Lisboa. Ordem de equipar o M-64 e G-3 municiada, duas rações de
combate por homem, até parecia ter rebentado a guerra, pensou, lembrando a
guerra do Solnado, aquele folclore sempre lhe parecera obsoleto e teatral, mas
havia que ser resiliente, antes Lisboa que Bissau ou os Dembos.
No meio do reboliço, descortinou o
capitão Maia, seu patrício, usando um camuflado e falando em murmúrio com uns
graduados. Ordenando sentido, dirigiu-se aos recrutas na formatura:
-Homens! Se bem que ainda não tenham
completado a vossa recruta, a vossa destreza vai ser hoje testada! Há uma missão a
cumprir: marchar para Lisboa, e controlar o acesso a vários locais, ao Banco de Portugal, à
Rádio Marconi e ao Terreiro do Paço. A vossa missão visa devolver a dignidade
ao povo português e demitir o governo que tarda em arranjar soluções para os
problemas inadiáveis do nosso país! Quem estiver contra, que dê um passo atrás!
O que parecia uma praxe, era afinal
coisa séria, parecia um pronunciamento militar, que fazer? Por um lado, a política pastosa que o
atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas e se falhassem, mal tinha feito
instrução de tiro, o Forte de Elvas poderia bem ser o fim para a inesperada aventura nocturna.
Ninguém deu passos atrás. Um oficial correu entretanto a falar ao capitão Maia:
-Está tudo em marcha. A senha foi
confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo, meu capitão!
-Óptimo! -saltando para o Chaimite,
Salgueiro Maia mandou avançar para a porta de armas,
nessa noite não haveriam camas à espanhola.
Um esquadrão de reconhecimento com
dez viaturas blindadas e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas
ambulâncias e mais um jipe saía amotinado para Lisboa. Tudo era confuso, mas excitante,
Artur e o Paiva, no chaimite, estavam intrigados, com sorte talvez ainda essa
noite bebessem um copo no Cacau da Ribeira.
A entrada em Lisboa ocorreu pelas
cinco e meia. No Campo Grande, um polícia sonolento olhou desconfiado para a coluna mas não
interferiu, manobras com certeza, não houvera nenhum alerta. O Paiva e o
esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão
Maia tomaram posição no Terreiro do Paço, já carrinhas com legumes da Malveira se dirigiam
para o Cais de Sodré. Sem encontrar grande oposição, Salgueiro Maia contactou
pelo AVP1 com um misterioso Posto de Comando, dando conta da situação:
-"Informo que ocupámos Toledo
(T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!
-Afirmativo! -respondeu uma voz algo metalizada do outro
lado. -Papa Charlie no controlo!
As coisas pareciam correr bem e sem
oposição, até o comandante distrital da PSP veio oferecer colaboração,
descongestionando o trânsito. Com o amanhecer, o primeiro 28 para a Graça cruzara já a
praça, surpreso com o aparato. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão
Maia:
-Meu capitão, vamos dar cabo do
Marcelo, não vamos?
-Podes escrever, Artur, temos de
pensar nos nossos filhos, e em Portugal! Esta é a nossa hora! -respondeu, pondo-lhe a mão no ombro.
Apesar de sereno, tinha um ar cansado, aparentemente nenhuma coluna mais viria
juntar-se-lhes, eram doze blindados com recrutas contra o poderoso Império, que
aparentemente parecia não ir a jogo.
Chegando gente aos ministérios,
alguns oficiais afectos ao governo apareceram a
desafiar os amotinados, chegando o ambiente a aquecer com as
provocações de Ferrand de Almeida, a recusa dos seus homens em atacar o esquadrão de Maia fez
passar os Panhard para o lado dos homens de Santarém. Artur regozijava, a
farda verde da chacota tornava-se agora símbolo de tenacidade e de verde-esperança.
À medida que as notícias dos acontecimentos se iam
espalhando, e apesar dos apelos para ficar em casa, as pessoas começaram a invadir as ruas. Com um frémito na
espinha, Artur viu a Mariana a acenar-lhe de lágrimas nos olhos perto da Rua do Arsenal,
o copo no Jamaica chegaria
mais cedo. Um beijo, soprado de longe, foi
o sinal de sucesso do movimento.
Alucinantes, os acontecimentos
sucederam-se durante a manhã: pessoas saindo à rua, saudando e oferecendo cigarros, a
deslocação apoteótica para o Largo do Carmo, o abraço emocionado ao
Paiva e aos camaradas do esquadrão. Uma florista do Rossio ofereceu-lhe um
cravo vermelho, logo guardado para Mariana.
Passaram muitos anos, o orgasmo
colectivo daquela extraordinária quinta-feira em que não houve instrução de
sapadores, mudou o país de forma definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de
Vide, não passa um dia sem que Artur deixe uma flor na soleira da casa onde
nasceu o capitão Maia, vertendo uma melancólica lágrima ao lembrar aquela
madrugada chuvosa em que um punhado de recrutas saltou à pressa do beliche para
um encontro marcado com a História.
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