sábado, 5 de janeiro de 2013

As confissões de frei Honório



Na singela gruta açoitada pelo vento, Frei Honório esperava o fim, seco de carnes, noventa anos penados. Solitário vinte deles, ia guardando as reflexões que um dia, quando a carne já tivesse sumido comida pelos vermes deixaria como testemunho da sua santidade e sacrifício. Sentado na pedra, ornada de musgo e heras, servo entre os servos e curvado pelos anos, dirigia-se a Deus e aos homens:  

“Pequei, Senhor. Pequei muito. Em actos e palavras. Vai para dez anos que expio nesta gruta, singelo cárcere de minha alma e merecida prisão deste fraco corpo. Quando a Vós me entreguei, humilde anacoreta, bafejado fui pela graça de entender que era chegado o momento de mudar a minha vida neste mundo, que era  hora de a tudo renunciar, e que não haveria retorno nessa jornada. Para Vos receber, forçoso é pagar um soldo, e o meu foi este: não mais ter nome, nada possuir ou desejar, senão servir-Vos, esvaziando o coração para nele apenas a Vós dar lugar. Se é duro renunciar ao corpo e suas vontades, mais difícil é para um pecador suportar o suplício dos dias que a um santo suportar o martírio, ou a própria morte, pois tal se dá em espaço curto e fugaz. O martírio diário trás a tortura da mente, infortúnio que homem que o enfrente sem perder a pureza, longe não andará das portas do Céu.

E mais o é  quando há que atravessar a porta negra da alma, que é a das tentações da carne e do demónio. Senhor, que por nosso bem mandas as tentações, faz cair sobre mim o sofrimento do mundo para poder sentir a compaixão dos atormentados. Várias vezes senti o demo perto dos Capuchos, na forma de lavadeiras de alvas carnes e  ruborescidas colarejas. Flagelando a carne, reprimi a carne, quando não só em corpo, igualmente me assaltando a tentação em sonhos, enlouquecendo-me, e  em desespero conduzindo ao cadafalso da alma. Ninguém pode enfrentar as insidias do chifrudo, nem extinguir o fogo incandescente da natureza, se a graça de Deus não proteger a fraqueza humana. Com o escudo da oração, aceito, Senhor, o flagelo que me enviastes, porque se propicia sofrimento, também almeja a salvação. Se humilha, também exalta. Se salva, também pode levar aos infernos.

Compreendo hoje que antes de desdenhar dos outros, ou com soberba condená-los, é mister com humildade calçar-lhes as sandálias, e com elas trilhar os escolhos, para um dia, merecedor, calçar as do Pescador, protector de almas num mar encapelado. Desde que  me enviastes o Diabo, e fraco de carne pequei, não mais abandonei este negrume, expiando, orando, só dos animais e das plantas fazendo irmãos. Capuchos misericordiosos me alcançam água e pão, em jejum expiarei meus pecados.

Aqui findarei meus dias. Esta singela e nua gruta, açoitada pelo vento norte, será o altar da minha redenção, nela meu corpo à terra tornará, pacificada a alma e proclamada a alforria, desapegada de riquezas e honrarias vãs. Maior honra é ser nobre de alma que tenente de almas perdidas, em tempos de usura pelo metal e por cobiça de mandar.

Já muitas vezes por aí vi El-Rei, caçando, e calcorreando a serra. Uma raposa aflita aqui se abrigou um dia destes, acossada, pedindo clemência com o olhar. Acolhi-a, minha irmã da serra, desatentos, os batedores do rei perderam-lhe o rasto. Várias vezes me visita agora, e aqui descansa à noite, segura e cúmplice. A cobiça do rei e dos grandes do Reino apartou-os de Deus, trilhando a estrada do vão mando e da luxúria. Por mais de uma vez me ofereceu agasalho e alimento. Como desconhece o quanto agasalhado estou pelo calor da fé, e plenamente alimentada a alma!

Em dia que marcaste já, Senhor, meu frágil corpo virás colher, aqui repousará até que pó torne a ser e raiz de vida nesta floresta do silêncio. Meu desejo, outro não é senão esse. Nestas serranias de Sintra fui tentado, nelas findarei meus dias, buscando a salvação. A grandeza do Destino é feita daquilo de que se abdica, não daquilo que se obtém. Quem viver contente com pouco, tudo terá. Infeliz o que julga estar farto, pois um dia terá fome!

Uma coisa aprendi, no eterno renovar dos dias e solitário silêncio das noites: julgamos nascer com duas mãos feitas para agarrar, contudo nunca paramos para meditar quão bom seria se servissem sobretudo para abraçar.”

Aos cem anos, partiu. Nas noites de inverno, uma pequena raposa  se abriga às vezes na gruta, seguro refúgio na voracidade dos séculos. 

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