O dolente e desconcertante
exército deslocava-se entre areias revoltas, Larache ficara para trás, a
pouca distância, alheadas, cabras comiam urtigas. Era 1 de Agosto, há uma
semana haviam largado do Reino e nem sombras de Abd-Al-Malik.
André Gonçalves, segundo alcaide-mor
de Sintra e o cunhado, João de Castro Albuquerque, neto do vice-rei D. João de
Castro, engrossavam voluntários o anacrónico mar de gente arrebanhado para a
aventura de D. Sebastião, qual Lancelot em busca de Avalon. André Gonçalves,
por morte do pai, sucedera não só no juro de cem mil réis que lhe pertencera,
como em toda a Casa e Morgado de Ribafria. Comendador de S. Mamede de Sortes na
Ordem de Cristo, Porteiro-Mor de D. Sebastião, era, tal como o pai, alcaide da
vila e castelo de Sintra. Contava trinta e oito anos, o cunhado dezanove.
Sempre juntos, partilhavam tenda e criados, em Sintra, com o rei muitas vezes
haviam juntos passeado a cavalo. Entusiasmados com a empresa em África, seguiam na
babel de guerreiros onde se juntavam criados, rameiras, camponeses e carros de
bois, o improvável exército de Portugal.
Largados do Reino a 25 de Junho,
passaram a Tânger, onde se juntou o rei aliado, Abu Abdallah Mohammed II Saadi,
daí seguindo por terra para Arzila e Larache. André Gonçalves e João seguiam
com os cavaleiros de Tânger, Adalid, o batedor enviado por Mohammed e mais cem
homens patrulhavam as colinas ocres onde apenas cresciam cardos secos,
enfrentando o suão com animais sedentos. Na tarde de dois de Agosto, chegaram à
margem esquerda do Mekhazen, afluente do Loukkes, que contornaram no dia três,
atravessando um vau transitável, já os homens acusavam exaustão. André
Gonçalves coordenava a distribuição de alimentos, uma vaca e dois alqueires de
biscoito por companhia, cinco mil mouros vigiavam a menos de duas milhas. O rei tudo aceitaria, desde que lhe não tirassem o privilégio de ser o primeiro
a combater.
Amanheceu finalmente o dia 4, dia
de S. Domingo de Gusmão. O exército de Abd Al-Malik, que agonizava numa
liteira, estava já perto dos exércitos de Sebastião e Mohammed. Morabitinos
arrebatados e gritando na colina ao fundo, exibiram os símbolos do crescente,
prometendo o céu aos soldados. Pela alvorada, André Gonçalves rezou, recolhido,
menos arrebatado, observou o terreno, demasiado exposto e com a retirada
dificultada pelo rio. D.Duarte, o alferes-mor, iluminaria o rei sobre decisão a
tomar, pensou. A seu lado, João tinha um ar determinado, ansioso por glória e
honra, para si e para o Reino, fronteiro da Cristandade.
Depois de envergar a armadura,
azulada e debruada a ouro, e de elmo no braço, o rei dirigiu-se aos homens,
alinhados. Após o discurso de incitamento, o padre Alexandre, da companhia de
Jesus, levantou um crucifixo ao alto e todos ajoelharam. Era chegada a hora.
Nesse mesmo instante, longe dali, em Velilla, Aragão, os sinos tocavam a rebate, anunciando
a derrota do exército português. Fatídica premonição…
A batalha estava em marcha, os
atabales deram o sinal para a batalha: no campo português todos gritaram pelo
nome do rei, inspirados para a vitória. André Gonçalves integrou o terço de
Vasco da Silveira, do lado dos de Abd Al-Malik, formados em meia-lua, Mulei
Ahmed, irmão do rei moribundo comandava. Quinze mil cavaleiros, sob comando de
Abraham Suffin, alcaide de Alcácer-Quibir, formaram num semicírculo, qual lâmina
de foice, pronta a envolver o temerário exército, chefiado por um garoto
intrometido em disputas de família. Ao tocarem as trombetas, um arrepio na
espinha atravessou André Gonçalves. Eram oito da manhã. Duas horas depois, os
mouros tomaram a iniciativa, com tiros de artilharia. Os portugueses vacilaram,
ignoravam que os mouros tivessem armas pesadas. Logo dois cavaleiros caíram
mortos e os soldados, mais familiarizados com arados e enxadas, entraram em
pânico. Depois de hesitação, os aventureiros, cabeça do exército, avançaram,
mesmo sem ordem de combate. João de Castro juntou-se-lhes, com maça e espada. Era hora de fazer tremer os africanos, porém, logo tombaram, varados por setas
assassinas. André Gonçalves não mais o voltou a ver, espezinhado e sumido na
poeira.
Sem que ninguém se apercebesse,
Abd El-Malik morreu entretanto, na liteira, o que os seus ocultaram, na frente
a sorte balançava. D. Sebastião trocou de cavalo e continuou bramindo a espada,
desfigurado e temerário. Mohammed, o aliado, pouco se expôs, o exército
parecia um barco à deriva e sem comandante. Preocupado, D. Luís de Meneses
pediu ao rei que se cuidasse, a sua salvação era precisa para segurança do
Reino, mas ele repeliu-o, cerrando os dentes. Pouco passava do meio-dia, André
Gonçalves foi atingido com uma flecha no rosto, tão funda que só deixou de fora
as penas. Vendo o fim próximo, resistiu com as forças que lhe sobraram, até
cair também, junto ao rio. Os terços adiantados do exército rendiam-se,
impotentes, varados por setas e arcabuzes, sendo de seguida massacrados e
despojados, num verdadeiro açougue exterminador dos jovens de Portugal. Pelas
duas da tarde, já só D. Sebastião resistia, frenético, quando cinco mouros lhe
cercaram o cavalo. Muhamad fugiu, atravessando o Mekhazen e morreu afogado.
Pouco depois, também o vulto alvo do rei sumiu também, na voragem dos corpos e
artilharia. Eram três da tarde do último dia de Portugal.
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