Indeciso
entre Filosofia e História, militando na senda de amanhãs libertadores, Jaime
acabou ingressando em Direito, naquele final de setenta. À rotineira repetição dos feitos pátrios que o
curso de História propiciava, atraiu-o a visão
do advogado à Perry Mason, onde a
meio do processo entraria a prova que arrasaria a acusação e salvaria o
inocente da prisão. Ingénuo, mas puro, nos finais de setenta lá ingressou na
Clássica, mausoléu frio e sem alma, ainda arrefecendo de acaloradas disputas
entre fascistas e maoístas, com as pinturas de Ribeiro dos Santos e Maximino de
Sousa, à moda de Mao e Lenine, saudando os heróis da casa, bastião do antigo regime
e balão de ensaio para futuros mestres em leis.
Direito era
uma escolha anódina, de classe, pouco aberta ao mundo, cheia de “de cujus”, e “quid juris”, e manuais gongóricos teorizando um mundo virtual onde,
por vezes, até pessoas cabiam. Pensou desistir, impregnado de Marx e Gramsci, de
Che e Neruda, as miúdas mais giras estavam em Letras, só a Manuela, olhos
verdes, res nullius doce e sem
namorado, o fez ir ficando, estudando juntos na biblioteca, aos poucos trocando
olhares por entre a sebenta de Direito Civil. Nunca como nesses dias acharam
tão acertados os direitos reais de gozo, amigos pela usucapião do tempo,
amantes por vontade expressa, em contrato-promessa primeiro, e execução
específica depois. Ao segundo ano assumiram a relação, as mãos entrelaçadas nas
aulas do professor Marcelo seguiam nem sempre atentas o estudo dos sistemas
políticos, Jaime e Manuela concordavam, democratas nas ideias e ditadores no
amor. O professor Marcelo, atrás da barba mefistofélica, ria, divertido, no dia
da oral de Constitucional sendo Jaime o último do dia, convidou-o no final para
jantar. Um bife na Trindade a coroar o 14, já depois das dez da noite,
premiou o promissor constitucionalista.
Ao terceiro
ano, desistir estava afastado, as coisas com Manuela estavam firmes, casariam
no fim do curso, ela com ideias no CEJ e na carreira de juíza, ele entre a diplomacia e
a barra, dois anos pela frente, ainda. As paredes antes frias, eram agora
familiares, muitos envolviam-se em política, à esquerda e à direita, os mais
velhos, na fase da gravata, iam ostentando antecipado o epíteto de doutor que
com o tempo viraria nome próprio. O caderno na mão e a sacola do primeiro ano,
virava pasta de pele, camisas com botões de punho e óculos sem aros, às barbas
hirsutas e revoltas sucedia o penteado tratado e o jurista em construção.
Artigo a artigo, diploma a diploma, cumpria o caminho iniciático de um cavaleiro do
Direito. No quarto ano, integrou uma lista para a associação académica, a morte
de Sá Carneiro e a crença cada vez mais ténue em soluções de ruptura, levaram-no
ao PPD. Pedro Santana Lopes, veterano e da extrema-direita, aderiu também, por esses dias, aos poucos, o atribulado PREC ia esfriando.
Extinto o Conselho da Revolução, no arco
de partidos do centro se desenharia o tempo novo. Filiou-se, foi a um congresso, Manuela,
equidistante, encafuou-se nos códigos e refinou o aspecto, a teenager inconsciente ia-se esfumando à
medida que chegava o dia do canudo dourado e a caricatura do Zambujal no
livro de curso, premiando os novos doutores, qualificados quadros e esperançosas
reservas para grandes voos, no foro e na política. No quinto ano, pela primeira
vez Jaime envergou traje académico, excrescência fascista banida e com o tempo recuperada, e de chicote em riste, veterano, praxou os
acabrunhados caloiros, obrigados a cinquenta flexões no anfiteatro 1.
Quase
doutor, deixou os bares do Cais de Sodré, substituídos pelo Stones e o Ad Lib, frequentou palestras na Ordem, passou a ir de carro para as
aulas, abandonando o 31 para Moscavide com cheiro a suor dos primeiros anos.
Aos mais novos, falava dos mestres como de tias velhas mas estimáveis, feras
por vezes, mas “crânios” brilhantes, todos com características distintas:
os perdigotos voadores de Jorge Miranda, a orelha defeituosa de Sousa Franco, os duzentos
quilos da Magalhães Colaço, o velho Soares Martinez, lenda viva de quem se
contavam histórias de alunos que aos seus exames haviam sobrevivido.
Finalmente, já com casamento marcado numa quinta em Azeitão, num dia quente
de Julho, ele e Manuela acabaram o curso, ela primeiro, com melhor média, ele
depois, escritório em perspectiva, avença num banco na calha, com outros
duzentos, engrossariam esse ano o restrito clube dos senhores doutores. Longe
ia o dia em que Jaime atravessara aquele átrio, ladeado de vitrinas com pautas e
notas avaras, e angustiado hesitara sobre o passo a dar.
Com o tempo, percebera
que Perry Mason jazia poeirento em
velhos filmes sem cor, que mais que a Justiça interessava o Direito, e mais que
o Direito estar com quem o aplica e o escreve. Loquaz, a sociedade abriria portas
aos moldados e tolerante suportaria os críticos, mantendo assim no ar um ténue
perfume de democracia e pluralismo.
Passaram
trinta anos. Manuela é hoje uma respeitada desembargadora da Relação. Com Jaime
teve três filhos, um deles, acampado do Rossio, talvez siga Direito, para
já, de mochila, vai com a namorada ao Sudoeste. Jaime, uns quilitos a mais, é um discreto Secretário de Estado, depois de dez tranquilos anos em S.Bento como deputado por Faro. Há dias, acompanhando o ministro a um colóquio, voltou
pela primeira vez em anos ao átrio de Direito, e sorriu. Lá estavam ainda as
vitrinas, os baixos-relevos do Almada, o cheiro familiar e austero. Anos antes,
ali entrara querendo salvar o mundo. Felizmente e a tempo, conseguira salvar-se
a si próprio.
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