Entusiasmada, Elisa Valadares desembarcava em Nova Iorque decidida a procurar resposta para o enigma do velho diário. Em 1620, Antão Valadares, um seu antepassado com raízes em Colares, acusado de heresia, teve de fugir para Inglaterra, onde embarcou no Mayflower com destino a Cape Cod. Aí viveu cinco anos, até se mudar para Nova Amesterdão, onde montou negócio como ourives. Ao morrer, em 1651, deixou um diário onde escreveu: "tudo o que deixo jaz na imaginação”. Depois da independência americana os descendentes de Antão voltaram a Portugal, o negócio na Baixa de Lisboa prosperou e devolveu respeito e poder aos Valadares, bem como a casa de Colares.
Elisa, professora universitária, desde jovem se interessara pelo diário, tirando um mês de licença, meteu-se a caminho da Big Apple, em busca das respostas possíveis. Não sabia o que procurar, nem onde, mas o desafio pareceu-lhe estimulante.
Instalada no New Yorker, perto da Times Square, dedicou os primeiros dias a absorver o melting pot na cidade que nunca dorme, como certeiro cantara Sinatra. Deambulou por Greenwich Village e pelo Soho, adorou ver Les Miserables, e escutou jazz no Blue Note. Pior era a comida, deslavada, com surpresa descobriu um restaurante na rua 46, onde comeu a melhor posta barrosã de Manhattan, o dono, o Joe Monteiro, com quarenta anos de América, caprichou na confecção.
O diário apontava para que a casa de Antão ficasse a norte da cidade actual. Nova Iorque mudara muito, era agulha em palheiro. Documentos da Biblioteca de Utrech, consultados no Google, ajudaram, os indícios apontavam para a casa ser longe do rio Hudson, pois no diário Antão relatava ser uma hora até ao porto, hoje Battery Park, junto ao cais para Ellis Island. Na Biblioteca do Congresso, em Washington DC, contou com a ajuda de miss Cummings, zelosa bibliotecária conhecedora de Pessoa, e três dias de hambúrgueres e alguns microfilmes depois, lá descobriu uma planta de Nova Amesterdão. A cidade primitiva era dispersa, misturando residências e lojas, uma inscrição a tinta-da-china descoberta quando se aprestava a desistir, marcava o nome “valdares” na zona norte, entre o Central Park e Harlem. Munida de cópias, voltou à cidade e tentou situar a quadrícula, era a meio da cidade, para lá do Lincoln Center.
Sentada no Central Park olhando um esquilo a comer bolotas, deu consigo a pensar no absurdo daquilo tudo, centenas de anos depois.
Nessa noite, no Virgil’s, comeu umas baby ribs, um branco de Martha’s Vineyard distendeu-lhe o espírito, afinal estava em Nova Iorque e pateticamente focada num antepassado desconhecido. Já terminava o jantar, quando um jovem a abordou, o ar perdido da portuguesa despertara-lhe curiosidade. Todd Galagher, era o seu nome, professor de História em Columbia, o relato de Elisa levou-o a oferecer-se para ajudar. Morava em Queens, logo combinando encontro no lobby do New Yorker para o dia seguinte.
Munidos da planta da Biblioteca do Congresso, subiram o Central Park e detiveram-se junto ao Dakota, o prédio habitado por Yoko Ono, a planta mandava virar para a direita, na direcção do jardim. Como crianças numa caça ao tesouro, detiveram-se junto a uns arbustos, onde Todd marcou o chão com o pé. Pela planta, era ali o local da casa. Elisa comoveu-se, e disparou fotos para todo o lado, enfim via decifrado o diário de Antão, o judeu de Colares que um dia partira no Mayflower.
Ameaçando chover, Todd convidou-a para cear no Walinski’s, os melhores tacos da cidade, asseverou. Elisa aceitou, uma mão cúmplice no ombro selou o convite. A cinquenta metros, em pleno Central Park, um desenho circular na calçada assinalava o local onde fora assassinado John Lennon. Em letras grandes, e ao centro, a inscrição “Imagine”. A “imaginação” do diário de Valadares. Elisa emocionou-se, e abraçou Todd com força.
Era tempo de voltar a Lisboa, o ano lectivo começaria em breve, e os últimos dias de relaxe com Todd, o prémio da viagem, afinal. No dia da partida, combinaram um encontro nas Torres Gémeas, para a despedida da Big Apple. Já a caminho do World Trade Center, onde Todd a aguardava desde as oito e meia, um saco esquecido fê-la voltar atrás, faltava a prenda do Jaime, a T-Shirt do Hard Rock Café. Ao voltar a sair, um fumo espesso e intenso cobria toda a cidade, no lobby do New Yorker a televisão anunciava um espectacular acidente com aviões que teriam chocado contra as torres gémeas. Também para Todd, esperando no topo com um bouquet de gladíolos, a manhã seria de despedida.
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