quinta-feira, 28 de abril de 2022

Sintra há 48 anos

Por ocasião de mais um 25 de Abril, recordar Sintra nesses já remotos dias de 1974:

Inaugurado o campo de futebol do Ginásio 1º de Maio, em Agualva Cacém
Entra em funcionamento o Centro Operacional de Satélites em Alfouvar, perto de Negrais 

Janeiro 
5- Abre o restaurante Ad Hoc, de Francisco Catalão
12-Inauguração da sede da Liga dos Amigos da Rinchoa 
13-Festa dos Avós em S. Pedro, onde Marcelo Caetano participa como "avô" 
20- O Ministro do Interior, Moreira Baptista, visita Sintra.


26-Francisco Cordeiro Baptista é administrador do Bairro Administrativo de Queluz


O bacalhau custa por essa época trinta escudos o quilo (15 cêntimos).

Fevereiro
O Grupo Dramático do Mucifal leva à cena nos Bombeiros Voluntários de Colares a peça “Recordar é Viver”.
António Casul Reis é presidente do Sport União Colarense.
IV Encontros de Sintra. 

Março
1- Entrada em funcionamento do Centro de Saúde de Sintra, dirigido por Aires Gouveia
António Nunes é treinador do Sintrense

Abril
2-Visita a Sintra do Lord Mayor de Londres, Sir Hugh Wontner 
Com o 25 de Abril, demite-se a Câmara. No Jornal de Sintra de 27 de Abril, o edital 38 da CMS anuncia estar aberto concurso para "desinfectação e desratização no concelho"... 

Maio
1-Grande manifestação em Sintra assinala o primeiro 1º de Maio e a recente revolução de 25 de Abril. 

24- Vitor Roneberg preside ao grémio, agora Associação de Comerciantes do concelho de Sintra 
25- Reúne-se em Colares a comissão local da CDE, o partido que vinha da oposição democrática, intervindo José Alfredo Azevedo e Maria da Graça Forjaz.

Junho
14-Toma posse a Comissão Administrativa da CMS pós 25 de Abril, composta por José Alfredo Costa Azevedo (presidente) José Joaquim de Jesus Ferreira, Aristides Campos Fragoso, Lino Paulo, Jorge Pinheiro Xavier, Cortêz Pinto, Álvaro de Carvalho, Manuel Monteiro Vasco, Carlos Quintela, António Manuel Carvalheiro, Manuel Maximiano e Mário Barreira Alves. 

domingo, 24 de abril de 2022

Onde eu estava no 25 de Abril



Naquela quinta-feira não houve aulas e o ponto de Física ficou adiado por causa duns militares que ocuparam o Terreiro do Paço, o meu avô telefonou logo de manhã a aconselhar que não saíssemos de casa, chuviscava e o dia estava cinzento. Na televisão, passaram um episódio repetido do Daktari, contente por não haver aulas, aproveitei e fui ao barbeiro, onde corriam boatos desencontrados sobre o sucedido, um dia sem aulas era sempre uma festa.

 

No dia seguinte o D.Pedro V, liceu de Lisboa onde frequentava o 5º ano (hoje 9º) estava agitado, o porteiro fugira, era informador da PIDE-DGS. No sábado, 27, depois duma avalanche de acontecimentos e debaixo de chuva, subi com os meus pais e irmã ao Carmo, onde os soldados com cravos nas armas e pendurados em blindados tiravam fotos com populares. Tudo acontecera em poucas horas. Lisboa, cinzenta e molhada, exultava de alegria, na estátua do Rossio, uns guedelhudos invetivavam alguns transeuntes apelando à sua prisão, informadores da PIDE, denunciavam, levando à sua detenção por populares acirrados. Com um megafone, Saldanha Sanches, do MRPP, (mais tarde soube quem era) clamava contra os fascistas.

 

Em poucos dias, tudo mudou. O “careca megalítico”, professor de História, até ali sorumbático, mostrava-se agora simpático e adepto da nova situação, opositor silenciado durante anos, rejubilava, mais receoso, o professor de Moral, temia a anarquia. Embriagados pelas notícias da liberdade que de todo o lado choviam, animados por canções de protesto nunca antes escutadas, descobriam-se mundos escondidos, os sons de Zeca, Fanhais, Luís Cília e Adriano, na sala de alunos, manifestos policopiados e jornais de parede em profusão apelavam a RGA’s, a nova vida da escola discutida no dia seguinte.

 

O primeiro plenário do MAEESL- Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa decorreu no ginásio do Liceu D. Pedro V, tendo o reitor, “lacaio” do regime, sido previamente saneado. Apesar de já saber algo de política- o meu avô era opositor de Salazar e antigo apoiante de Norton de Matos e Humberto Delgado, e no 1º de Maio de 1973 foi mesmo agredido no Rossio, por participar numa concentração não autorizada- pela primeira vez ouvi falar de Álvaro Cunhal e Mário Soares, apesar de Spínola ser um nome de quando em quando sussurrado em minha casa ao jantar.

 

No dia do trabalhador, com meus pais subi a Almirante Reis e estive no grande 1º de Maio de 1974. Portugal estava todo ali em festa, marinheiros e anónimos abraçados, o mundo olhando para um esquecido rincão atlântico que desassombrado e agigantando-se fazia a primeira revolução utópica dos tempos modernos.

 

Nas semanas seguintes, o país transfigurou-se, a escola entrou em ebulição, os partidos dividiram as opiniões e os plenários foram ficando organizados, a democracia gatinhou, vendo os jovens tornando-se homens. Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade.

Os anos passaram, e de certo modo, respondemos à chamada do nosso tempo, de sangue na guelra para as causas generosas e razoavelmente exigindo os impossíveis, pois só salvando o mundo nos poderíamos salvar. Salva-se a memória, o orgulho de ter tentado, e a certeza de nunca ter desistido.

Ontem visitei o Quartel do Carmo, onde tudo se passou há 48 anos, e onde estive também depois daquela madrugada seminal, revendo mentalmente os sons da liberdade, a esperança de um povo a quem enfim era permitido sonhar. Atrás de tempo, tempo vem, muitos anos passaram, e valeu a pena, no regresso a casa procurei o Zeca e o Adriano no meu smartphone, e tive a certeza de que haverá sempre a busca de um Abril em quantos, lembrando o Passado, não desistirem de construir o Futuro.



Foto tirada por mim no 1º de Maio de 1974. O senhor de óculos, em baixo, é o meu pai.

sábado, 23 de abril de 2022

Livros



Livros e Autores são realidades por muitos tidas como do mundo da erudição, mas sem eles o nosso mundo seria mais amorfo e mais pobre. Livros são Memória e Futuro, são emoções e desilusões, são descoberta e propaganda também, e em seu torno se moldou o nosso mundo. Foi em livro que se registaram o Corão e a Bíblia, as grandes descobertas científicas, tragédias e comédias, manuais e enciclopédias, promessas de eternidade que a muitos despertam e mobilizam, sendo dinâmicos uns, deixados no silêncio das bibliotecas outros.

Desde muito novo que me habituei ao sortilégio da leitura, essa descoberta de heróis e guerreiros primeiro, de promessas de mundos melhores mais tarde, da crítica e do contraditório de ideias depois. Os livros são parte da nossa história pessoal, também, pois ao recordar a infância e os momentos de alegria ou tristeza, amigos, parentes e lugares, também os livros que desde logo nos marcaram nos vêm à memória, muitos ainda adornando ao longo dos anos como pequenos tesouros as nossas bibliotecas e estantes. 

Recordo como marcante foi muito novo ter lido a Guerra e Paz, nuns intermináveis mas deliciosos  quatro volumes, como me emocionei com o Principezinho, O Meu Pé de Laranja Lima, As Aventuras de Don Camilo ou os versos de Sebastião da Gama e António Nobre, o Nome da Rosa ou os Esteiros, o teatro de Moliére e Shakespeare, bem como com o pensamento de Sartre, Bertrand Russel, Bernard Henri Levi e muitos outros.

Ler é para muitos hoje trabalho de arqueólogo ou de "rato" de biblioteca, substituído frequentemente  pela consulta de resumos ligeiros  da Wikipédia, por pequenos vídeos e fotos no Instagram ou Tik Tok, e nunca mais de 30 descartáveis segundos que mais que isso cansa. Mas, como escreveu o Padre António Vieira "O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, e um morto que vive". 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

No Dia Internacional dos Monumentos e Sítios

 


Criado em 1982 pelo ICOMOS, celebra-se hoje, 18 de abril o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios.

Sintra é um dos locais onde a profusão de monumentos e seu valor histórico e patrimonial mais se coadunam com o espírito de preservação e promoção que a esse conceito está associado, e que levou à classificação em 1995 como Património da Humanidade, na categoria de Paisagem Cultural. Recorde-se que aqui foi aprovada a Declaração de Sintra, que procurou unir esforços para a mitigação e adaptação às alterações climáticas. Sintra integra igualmente desde há anos a Aliança das Paisagens Culturais, uma rede internacional criada para preservar espaços declarados Património da Humanidade pela UNESCO, e que são hoje várias dezenas.

Em 2008 produziu-se a Declaração de Aranjuez, onde os sítios classificados expuseram as suas inquietações e analisaram a necessidade de compatibilizar a preservação dos lugares com um adequado desenvolvimento económico e social dos aglomerados e das gentes em seu torno. Um dos pontos desta declaração faz referência às políticas de difusão do património cultural entre a população, assinalando que a melhor forma de gerar cultura entre os cidadãos passa por estes valorizarem o seu próprio património, e exigindo “implicação, cumplicidade e compromisso” do mundo científico na melhoria desses lugares e na garantia da sua sustentabilidade, apelando à participação cívica das comunidades locais enquanto elemento fundamental para um desenvolvimento sustentável das área classificadas e chamando os parceiros da sociedade civil, pondo fim a uma certa “ditadura tecnocrática” na gestão dos espaços que todos devem fruir num sentimento de pertença que a Declaração de Aranjuez visou reforçar. Já o ano passado, o Sítio Arqueológico do Alto da Vigia (foto acima) foi classificado pelo Ministério da Cultura, através da Portaria n.º 198/2021, como Sítio de Interesse Público, assim aumentando o acervo patrimonial de Sintra.

Na promoção e defesa do património, dos monumentos e sítios classificados, há pois que juntar cidadãos, associações cívicas, técnicos e moradores. Só se pode acarinhar uma ideia como a de Paisagem Cultural se ela for originada em consensos e como instrumento de desenvolvimento para quem habita no seu seio, e não se funcionar como o eucalipto que a tudo o que o rodeia seca e põe a comunidade contra si. Não há paisagem cultural sem pessoas e não há gestão bem-sucedida sem consensos.

É imperioso, pois, e inadiável a criação de mais Parques Periféricos, fora do perímetro do Centro Histórico, dado o crescente e promissor afluxo turístico que tornou obsoletas as redes viárias existentes. Nesse sentido, urge instalar novos passeios e alargar os atuais, adaptando a estes a circulação viária, restringir o trânsito de veículos particulares e substituí-lo, progressivamente, pelo transporte público a partir de interfaces, além de acrescentar e melhorar os percursos pedonais existentes, dotando-os de sinalização adequada e explícita. Do mesmo modo, é inegável o interesse do restabelecimento da linha do elétrico da Praia das Maçãs até à Estação da CP de Sintra, e com ligação à Vila Velha, tal como a desejada revitalização da Av. Heliodoro Salgado, na Estefânia, e a retificação paisagística da Rotunda na Av. Nunes Carvalho.

A Serra de Sintra, decorrente da ação de D. Fernando II, em finais do Séc. XIX, caracteriza-se por exuberante arvoredo que lhe confere aquela fisionomia objeto de classificação pela UNESCO. Assim, impõe-se que quaisquer abates passem sempre pelo crivo de criterioso estudo e amplo debate entre as várias entidades envolvidas e os cidadãos. Porém, lamentavelmente, estão na ordem do dia e ainda frescas na memória quer a intenção do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) de cortar centenas de árvores entre a Lagoa Azul e a Malveira da Serra, quer a desflorestação no Mato do Gola, uma vasta propriedade privada que confronta com o emblemático Ramalhão imortalizado por Eça de Queirós, e portal da Serra de Sintra para quem chega de Lisboa ou Cascais.

Impõe-se também intervir, canalizando para o efeito verbas do PRR, Fundo Jessica, Plano Nacional de Ação para as Energias Renováveis, Fundo Português do Carbono, recuperar as várias casas em ruínas no Centro Histórico, Escadinhas do Hospital e Rio do Porto, repor a cúpula do Café Paris, intervir na Peninha, na Quinta de Dom Diniz, reinstalar a Fonte das Rãs na Praça D. Fernando II, limpar o  Centro Histórico e a serra de grafittis e tags,  recuperar o edifício do antigo Hospital e a Quinta do Relógio, harmonizar o mobiliário urbano e dar um fim adequado à Gandarinha e ao Hotel Netto.

Por fim, homenagear figuras que a Sintra e à defesa do Património têm dedicado ou dedicaram o seu esforço, aqui destacando Cardim Ribeiro, Francisco Caldeira Cabral, Diogo Lino Pimentel ou António Lamas, figuras incontornáveis da Paisagem Cultural de Sintra, através da atribuição do seu nome a uma artéria relevante em Sintra ou, eventualmente, a um projeto académico dedicado à Sustentabilidade do Património.

 

sábado, 16 de abril de 2022

Sagração da Primavera

 



Está a chegar, despertas, as Criaturas da Mata anunciaram já a sua presença, sinos do submundo tocam, arautos da cor e clorofila, despertando a fragrância das flores. Tonitruante, toda a nação dos pássaros toca a rebate, comandada por zelosas andorinhas, voltadas já do Grande Sul. Depois do Silvante Inverno partir para o sono de várias luas na gruta-ventre, exércitos de borboletas invadem os ares em  sagração, poisando libertinas em pétalas redentoras, bafejadas por raios generosos. Poetas estremunhados abandonam os invernosos esconsos, bebendo Luz e respirando jasmim, na senda da Iniciação Multicolor. É o Começo.
Ostara chama a reunir, gamos e colibris, crisântemos e girinos, libelinhas e lagartos, todo o mundo do silêncio convocado pelas forças da Criação, em noite de Equinócio. No bosque da Cynthia Imortal, lá onde entre oceano e as fortalezas os homens ergueram templos à Floresta -Mãe, reune a Assembleia de elfos e centauros, como sempre, desde a noite dos tempos, a desenhar o anel da Luz e em prece às chuvas, sémen da vida e seiva de renovação. No silêncio cúmplice da noite, a sagrada chama crepita no altar, ao lado, a revigorante poção dum druídico caldeirão sacia ressequidos lábios, bafejados por novo renascimento. Toda a Floresta comparece, absorvendo o anel dourado na altura do ano em que  os dias escuros já partem, a terra alberga sementes e o mundo renova a Luz.
No altar sagrado, pejado de grinaldas e ovos, grãos e raízes, o Coelho Pontífice guarda, de sentinela, atento às entranhas de Cynthia, perturbada e perturbante. De mãos dadas, os convocados, em adoração à deusa, liberta da longa noite de  Inverno, entregam-se ao ritual das fragrâncias, viajando por entre ramos e folhas, captando o orvalho vitamínico e puro. Toda a Floresta desvairadamente celebra, num festim de castanhas, pinheiros, verduras e verdes límpidos.
Terráqueos da montanha colocarão flores no altar e pelo chão, no caldeirão, água pura e flores esperam o momento da oferta, enquanto na clareira, iluminada pela argêntea Lua, incenso e velas se acenderão em aliança com os elementos. Rasteiros e vindos de Cynthia,  assustados terráqueos  tocarão nas plantas, em busca do milagre da vida, prometendo amizade e cumprindo o círculo, para depois partirem por algumas luas, ao encontro de Beltane,  mais tarde Litha celebrará o apogeu de Ostara e o seu declínio, para os entes da floresta e desde a noite dos tempos, sinal sabido da chegada de Samhein e Yule, e com eles das trevas da gruta em novo apagar de fogueiras, fugidas do eólico norte e da escuridão da tundra uivante.
Nas aldeias de Cynthia, as terras pedem sementes, e as árvores folhagens, chilreios em beirados prometem fertilidade, e logo partirão sulcando céus e mares, noites e dias, até que o grande astro de novo os traga. Como sempre, Ostara protegerá Cynthia rude e pedregosa, em apoteose agora do verde natal.
Toda a noite o fogo redentor aquecerá os terráqueos, com Pã no carvalho chilreando a flauta enfeitiçada, logo em melódico coro acompanhado pelos rouxinóis e toutinegras. Ao fim da manhã, cristalina e espelhada em frescos lagos, a Primavera reinará esplendorosa, com o seu cetro de azevinho e coelhos felizes saltitando. Os avaros dias do longo Inverno crescerão, generosos, frutos e plantas brotarão, suculentos, cardumes cruzarão os rios, serpenteantes patos se banharão nos rios atrás de irrequietas rãs.
No ano seguinte e em todos a seguir, assim será até ao fim dos tempos, e até que Odin na Valhalha junte os guerreiros,  esperando o advento do Ragnarok. Cynthia verá choros, risos, lutos, borrascas, milagres no sagrado e eterno templo da floresta, e sempre no tempo em que o dia for igual à noite, verá Ostara voltar, segura pitonisa a espalhar a  redentora Luz.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Defender o Património é...

 


Defender o Património, nos tempos que correm, é mais que nunca um dever cívico, porquanto, ainda que o PRR anuncie amanhãs que brilham, avaras, as verbas continuam incertas, e a eficiência também. Para os militantes dessa causa, este deve, porém, ser um momento de vigília, e de não deixar que a frágil árvore desapareça na floresta densa de dificuldades, cortes e silêncios motivados pela ditadura da dívida, ou abocanhada por um qualquer orçamento.

Defender o Património, é cada vez mais, estimular a cidadania, e as boas práticas; é pugnar pela educação escolar como plataforma para o seu conhecimento e propagação; é descolonizar a memória de imaginários estafados, acolhendo visões de património, que incluam o imaterial e o das vivências, amanhã seguramente tradições; é resgatar a autoestima e o “sentimento de nós”, num tempo de cerrar fileiras, e estimular a identidade que constrói a nossa idiossincrasia e peculiar forma de estar no mundo; é lançar pontes e massa crítica, mediar entre o poder público e as comunidades, num trajeto virtuoso que acentue o pathos de ser português, e sê-lo de modo universalista.

Defender o Património é zelar por restauros regulares, repor a estatuária nos Capuchos, continuar a repensar o estacionamento e a sinalética nos lugares notáveis, pensar global para agir local, devolver vida e criatividade a todos os lugares notáveis.

Defender o Património é estar atento, ser parceiro com a lealdade de criticar, acompanhar as obras e não depois das obras, chamar a agir e interagir, atuar virtuosamente e não como agente de bloqueio ou de egoístas vaidades, atrás de protagonismos ou da negação pela negação.

Defender o Património é revitalizar a Quinta do Relógio e o Hotel Netto, a Quinta D. Diniz e o Rio do Porto, não deixar aboborar a Gandarinhar, repor a desaparecida cúpula do Café Paris, intervir na Peninha, e rever o preço dos bilhetes, instalar indústrias criativas e empresas startup, residências artísticas e artistas sem ser a recibos verdes.

Defender o Património é ser ouvido antes das podas e das plantações, levar os utentes para a gestão das zonas verdes, implementar um Plano Verde proactivo, obviar arborícidios e deixar crescer as espécies endémicas, monitorizar a pegada ecológica e os ecossistemas milenares, ouvir o som da água dos riachos e o coaxar das rãs, o voo dos morcegos e a seiva das araucárias, a frágil beleza das camélias e a portentosa guarda de honra dos plátanos.

Defender o Património é defender o direito ao silêncio dos caminhantes, o cheiro da terra húmida, o pôr do sol na Roca ou o palatal degustar dum travesseiro, dum ramisco ou duma noz dourada de Galamares.

Defender o Património é divulgar e proteger os vestígios arqueológicos, identificar os tholos, proteger as antas, recuperar as fontes de água, classificar, promover classificações novas, e divulgar as mais antigas.

Defender o Património é tocar a rebate no campanário, sangrar a pena revoltada, cavalgar a comunicação com a serenidade das emergências para tranquilidade das consciências, visitar, escrever, protestar, ajudar, ouvir e ser ouvido, passar palavra, dar o murro certeiro e alertar o adversário, que por vezes é a inércia, outras a ignorância, as mais das vezes a incúria ou a miopia.

Defender o Património é vivê-lo, e com ele conviver, como se cada peça, cada cheiro, cada sabor ou recanto, fossem a mais preciosa relíquia deixada pelos nossos avós e que os nossos netos hão-de um dia receber, estranhando primeiro, orgulhando-se depois.

Defender o Património é pugnar pelo valioso presente que resultará da aliança da memória com a autoestima, da singularidade com o talento, da polis com os seus moradores, dos conventos, palácios e moinhos, com a serra, as tapadas ou os lapiás.

Defender o Património é aguarelar os chalés de Raul Lino e o traço de Norte Júnior e Adães Bermudes, a pedra esculpida de José da Fonseca ou a esculpida palavra de Eça, Francisco Costa, M.S.Lourenço ou Gabriela Llansol.

Defender o Património é recordar os que trilharam o caminho, erguendo a tocha dos seres maiores, dos eremitas jerónimos ao senhor da Penha Verde, dos novecentistas bretões aos cavaleiros da finança e aos poetas proscritos, de Fernando, o rei artista, ao Carvalho da Pena, jardineiros de Deus na fértil horta de Klingsor.

Defender o Património é chamar à formatura e honrar o legado de Cardim Ribeiro, Vítor Serrão, João Cachado, Adriana Jones, Francisco Caldeira Cabral, Diogo Lino Pimentel, Gerald Luckurst, Maria Almira Medina, Emma Gilbert, Hermínio Santos, Eugénio Montoito, Pedro Macieira, Emília Reis, Cortêz Fernandes, Fernando Castelo, Teresa Caetano, João Rodil, Inês Ferro, Cruz Alves, Ruy Oliveira, Martins Carneiro, Pedro Flor, Jorge Trigo ou Carlos Manique, entre os muitos que em boa hora renderam Viana da Mota, Mário de Azevedo Gomes, José Alfredo, Joaquim Fontes, Silva Marques, António Medina Júnior, Félix Alves Pereira, Octávio Veiga Ferreira, Dorita Castel-Branco, Milly Possoz, Carlos Viseu, ou Anjos Teixeira, numa lista sempre incompleta e várias vezes anónima.

Defender o Património é poder ver o teatro de Pedro Alves, Rui Mário ou Zé Sabugo, Susana Gaspar e Paulo Cintrão, Gil Matias e Paulo Taful; escutar grupos corais com Miguel Anastácio ou Pedro d’Orey, o Conservatório e os Bombos, ler Miguel Real, Luís Filipe Sarmento ou Raquel Ochoa, apreciar a pintura de Edmundo Cruz, as fotos de Nuno Antunes, ouvir novas sonoridades, reinventando a arte em narrativas dum presente capturado e desbravando patrimónios de afetos.

Defender o Património é fazer prova de vida. Contra alguns, algumas vezes, por todos quase sempre. Por Nós. Fundamentalmente.


quarta-feira, 13 de abril de 2022

A importância de um nome



Um nome deveria ser apenas um nome, contudo é em si por vezes mais um significante que simples significado. Um António a solo é sempre um António, português, magro, de bigode, carpinteiro (todos os carpinteiros eram Antónios, como as dactilógrafas eram Suzettes ou os empregados de restaurante Zé (se for daqueles onde se serve bitoque em prato de barro e tem um toalhete de papel onde se escreve ou desenha, ao sabor do assunto.)

Os nomes têm classes sociais e servem para distinguir: os ricos chamam-se Diogo, Tiago, Salvador, Santiago, Manuel Maria (se for Manuel ou Maria é por certo algum suburbano casal da Brandoa ou Moscavide) os pobres são João, José, trinta qualidades de Maria duma santa qualquer, ou mais recentes, produto de muitas horas de novelas, a era dos Fábios, Reinaldos, Tatianas, Déboras ou Vanessas.

Os políticos, por exemplo, adotam nomes que são por si marcas. Se na tropa somos apenas o apelido, nivelador e massificador, na política houve o Presidente Cavaco não o Presidente Silva, o PM António Costa e nunca o PM Costa, Marcelo Rebelo de Sousa nunca seria o mesmo se fosse apenas o prof. Sousa ou o prof. Marcelo Sousa, como muita gente não sobreviveria sem o pergaminho dum “de”, seguido de apelidos com vários “l” e vetustos “z” no lugar do ridículo “s”.

São pessoas com nome, e se estiveram na política, pessoas a quem chamamos nomes. Por vezes refilam por atentado ao seu bom nome. Mas terá bom nome alguém que se chama Jardim, pedaço de relva com flores e terra, ou Portas, essa coisa por onde se entra e sai, sendo entrada ou saída consoante o ponto de vista, ou Rosas (pode um canastrão de suspensórios ter alguma coisa a ver com tão simpática flor amiga de pães e milagres?).

Um nome pode ser tudo e pode não ser nada. Há números que fazem nomes, sobretudo os de contas bancárias e há nomes para fazer número, especialmente se for um dos 230 convivas duma tertúlia que reúne para os lados de S. Bento. Nenhum jovem da Zona J se chamará Adolfo ou Epaminondas, como nenhuma tia de Cascais se chamará Josefa ou Aldegundes. E se por acaso tiver ocorrido um cataclismo social onde por loucura ou imprevidência um desses nomes tenha sido escolhido, logo a segurança dum apelido resguardará o seu usuário da vil tristeza ou do cheiro a pobre que tal nome possa acarretar.

Digam qual o vosso nome e talvez muitos vos chamem nomes….

 

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Essa Utopia chamada Amizade




Chamamos amigos a todos os conhecidos com quem de forma amistosa nos relacionamos, no trabalho, no café, no ginásio, no clube de futebol, ou no ativismo, e as relações desenvolvem-se na partilha por vezes esporádica e gratuita de beber juntos um copo, dizer uma piada, praguejar contra um árbitro ou contra o governo. A forma continuada no tempo como fazemos isso faz-nos chamar amigos aos parceiros desses momentos, muitas vezes empolgados pela projeção dum ego grupal ou, se calhar, pelo álcool que a todos liberta e adormece. Gregários que somos, precisamos dessa inclusão, do abraço fácil, ontem feitos de idas ao cinema ou à discoteca, das futeboladas na rua, ou dos namoriscos de liceu, hoje filtrado pelas redes sociais e pelo preço barato de um “gosto”  que a todos faz “amigo”.


Amigos, porém, são os que, porventura tendo começado por ser conhecidos nesse contexto, souberam (soubemos) atravessar a cortina invisível das nossas personas, e olhar para eles, e eles para nós, fora das máscaras sociais com que nos projetamos, inclusive para eles (e muitas vezes, para eles, sobretudo). 

A amizade tem rituais iniciáticos, mas só quem souber ver para lá da caverna das ilusões e sentir o Ser, e não o Parecer, pode, após assentar a poeira dizer: este é um Amigo!. É um processo longo, doloroso por vezes, feito de desilusões e artifícios. Porém, quando uma centelha de Luz nascida de atos, e não só de palavras ou gestos mecânicos e previsíveis aproximar e afirmar essa cumplicidade, grandes momentos, e estradas patrulhados pelo Sol, surgirão, e os verdadeiros amigos se revelarão. A esses é consentida a frase que magoa, mas faz acordar, as lágrimas de desespero que logo um abraço limpará, ou o conselho desinteressado que pode dar força para dar um passo em frente. Eis a Grande Utopia.


sexta-feira, 8 de abril de 2022

Sítios de um deus menor



Cada dia é mais impressiva a falta de civismo e de zelo com que os cidadãos tratam das nossas cidades, vilas e bairros.

O vandalismo é dominante, com tags e grafittis sem traço algum de arte a emporcalharam tudo o que é parede, muro, candeeiro, carruagem de comboio ou paragem de autocarro. Os jardins e canteiros estão frequentemente maltratados e entregues a ratos e lagartixas. Locais há onde os rabiscos ininteligíveis e marcadores de território chegam ao terceiro piso, caixotes do lixo frequentemente têm mais resíduos fora que dentro, e os excrementos dos animais são armadilha para os incautos.

Tudo ante um desprezo generalizado dos utentes, das autoridades e das polícias.

Terras mais pobres que a nossa, talvez pela dificuldade em conquistar muitas coisas, tratam dos seus modestos jardins com denodo, estimam as casas e a Memória, mostram o que é saber viver em sociedade.

Nestes subúrbios de Lisboa, a que eufemisticamente chamamos áreas metropolitanas, é frustrante o estado das ruas e avenidas, tudo procurando destruir, num caldo imparável de violência, desenraizamento e revolta. Poucos edifícios têm uma parede limpa, poucos transportes andam a horas, poucos caixotes têm o lixo depositado corretamente, poucos jardins têm plantas bem tratadas. Das árvores mais vetustas, poucas em breve resistirão, o património não é mais que fonte de mais-valias, numa cacofonia de ruídos, poluição visual e ausência de valores.

É tenebroso viver neste Quarto Mundo, remando contra marés e hordas que arrastam existências sem outro sentido que não seja o fanatismo clubístico, o voyeurismo das redes sociais e a rebelião gratuita, frequentemente capturada por arautos capciosos prometendo novas ordens criadas no ódio, na dependência e no despeito.

Cidadania, semântica palavra, cada vez mais sem sentido.

terça-feira, 5 de abril de 2022

"Um morto é uma tragédia, um milhão é uma estatística"

Esta frase é atribuída a Estaline, e encerra o cinismo de quem olha para a destruição da vida humana como um jogo de tabuleiro.

O que acontece por estes dias em solo europeu parece saído dum filme sobre Gengis Khan, dum pogrom do início do século XX, ou dos violentos combates na Bósnia, no Ruanda ou no Camboja. A banalização do Mal enquanto realidade e hoje objeto do voyeurismo das redes sociais, convoca-nos para uma reflexão sobre o que séculos de dita Civilização fizeram a um quadrúpede que virou bípede, mas que descobriu também que a mão que abraça e constrói, também dispara e mata, talvez de forma mais rápida e salivante.

Como escreveu Hobbes, o Homem é o lobo do outro Homem, e por muito que queiramos deitar séculos de iluminismo e racionalidade por cima deste Animal Aflito, a pulsão destruidora prevalece muitas vezes sobre as conquistas da dita fraternidade, ou do Governo de Todos e para Todos, reforçando que a ilha de Paz e da Harmonia chamada Utopia é o que sempre foi. Utopia.

Bem podemos reagir com indignação, expressar solidariedade, esboçar que no fundo de cada um de nós ainda há motivos para acreditar na natureza humana, quando logo a ficção se nos revela como crua realidade, como se a Paz fosse um karma para os mansos e a guerra a afirmação para os fortes.

Por estes dias de adiada Primavera, a tribo terráquea diverte-se no seu Zoo, donde exala o fumo das armas tonitruantes, o cheiro a gás e a petróleo, por entre a reserva mental dos próceres e a estupefação dos incrédulos, acompanhando a guerra qual série de streaming no conforto e anestesia dum smartphone, da informação sem contraditório, ou maquiavelicamente imbuída do pior que o ser humano transporta- ódios, invejas, a vã cobiça.

Como na Caverna de Platão, os inocentes de Bucha e Mariupol desfilam acorrentados ou mortos, muitos, no chão gélido da terra cobiçada, olhando o destino como o fundo da caverna, sem se poderem ver uns aos outros, num teatro de sombras onde se debatem como prisioneiros da realidade, desesperando pela Luz salvadora, que os não cegue, mas salve.

Distantes, somos impotentes, por mais cobertores que mandemos, crianças que acolhamos, ou vigílias a que nos juntemos, enquanto os adultos na sala tergiversarem sobre os negócios que hoje ou no futuro farão ou deixarão de fazer, os artigos quintos de semânticos tratados tornados papel de embrulho, ou sobre o armamento em stock que há para escoar, logo produzindo novo, e assim alimentando e premiando a besta que deveria estar castigada.

Ainda não chegou a madrugada para os lados do vento Leste.