No plateau do Quivuvi, 1988 chegava
ao fim, e velhos amigos reencontravam-se para mais um copo de sábado, as
habituais cuba libre até por volta das seis, quando a manhã raiasse
e providencial, o João Padeiro, em Nafarros, vendesse uns pães quentes, se
possível com chouriço, amenizando a ressaca. Não se iria à missa, mas as
capelas tinham sido corridas. Desta vez, teriam um momento decisivo, na
manhã seguinte.
Margarida
envolvera-se com Bernardo durante o Verão paixão de férias que prosseguiu no Outono, com idas ao Nimas e ao Charlie Brown. Foi ao som de Lover
Why, dos Century que sob a bola
de espelhos do Quivuvi deram o
primeiro beijo, a Filipa e a Guida, amigas das noites, apadrinharam. Bernardo
era empregado de mesa, o gato por
que Margarida sonhara, e todas as miúdas queriam. Cena de uma noite, repetiu-se
nos sábados seguintes. Quando o Verão acabou e voltou para Lisboa, Margarida
inventou entrevistas para um emprego em Sintra para se reencontrarem na Adega das
Caves, perto do local onde Bernardo trabalhava.
Pelo Natal, o corpo deu um
sinal. Suspeição primeiro, certeza depois. Margarida estava grávida. Uma
alegria seguida de medo, apoderou-se dela. O doutor Armando e a
D.Georgina eram de famílias tradicionais, seria um choque a filha grávida,
solteira, e dum empregado de mesa. Apesar de Abril, as mentes não estavam tão
abertas assim, e Bernardo ao saber censurou-a, incauto, também ele não tomara
providências, mas homem é homem, apesar das notícias sobre uma nova doença vinda da América, a
SIDA, o impulso vencera a segurança. Aborto, nem pensar, a D.Georgina era
católica, filha dela não faria um desmancho, severo, o doutor Armando
mandou chamá-los para uma conversa.
Antes, encontraram-se no Quivuvi, com os amigos, o Natal estava
próximo e o espaço a meio gás, debitando música dos Cheap Trick e Whigfield,
a um canto, apreensivos, cogitaram no melhor a fazer. Passada a surpresa,
Bernardo até anuiu a ter o filho, o pior era o doutor Armando e os Vasconcelos
de Alencar, olhando-os inquisitoriais e condenando-os ao desterro social. A barriga
de Margarida começava a ganhar forma, qualquer aborto seria arriscado. Tocada
uma música dos Delfins,
precipitaram-se para a pista, de mão dada. Quando alguém nasce, nasce selvagem,
cantaria Miguel Ângelo mais tarde, selvagem nasceria, se necessário fosse, o
fruto daquela noite na Adraga. Os amigos apoiaram, tudo correria pelo melhor, juntaram-se num brinde solidário. Ter a criança ou fugir, não havia
saída. Despediram-se à porta dela, a Guida, depois de a deixar em casa levaria
Bernardo ao Penedo, um beijo apaixonado coincidia com a última emissão da Rádio
Cidade, suspensa nesse dia por falta de licença.
O doutor Armando era director na
Câmara de Lisboa. Assoberbado em trabalho, desde que ardera o Chiado, em Agosto,
braço direito do presidente Abecassis, seria candidato na eleição seguinte,
escândalos destes não vinham nada a calhar no meio do seu eleitorado do Restelo e
da Lapa.
À hora marcada, Bernardo, de camisa lavada e penteado
irreverente, que tanta miúda levara à certa com aquele toque desafiador,la apareceu. Não
fosse a farda do restaurante e até passaria por um deles, com o seu ar altivo e
olho azul. Sem grandes sorrisos, Armando mandou-o sentar num sofá, a mulher e a
filha no lado oposto, grave, puxou o assunto:
-Rapaz,
lamentavelmente, vejo que apesar da idade, ainda não ganhaste juízo nesse
corpo. Eu, na tua idade, já era pai da Margarida, mas tudo aos olhos de Deus,
só assim se pode ser um chefe de família respeitado e um exemplo para os
filhos. Já mediste bem a gravidade dos teus actos? Se eu quisesse, nunca mais
tinhas emprego em lado nenhum!
-Doutor
Armando, eu….
-Nem
mais uma palavra. A minha filha terá essa criança, nesta família não se
contraria a vontade de Deus, mas tens de assinar um papel a renunciar à
paternidade, e jurar-me que nunca mais te aproximarás da Margarida!
-Pai!
-insurgiu-se Margarida- pai, não
estamos no século XIX!. Eu amo o Bernardo, e não vou deixar de o ver. Nós vamos
casar!
-Vamos?...-
Bernardo perdia o controlo dos acontecimentos, aceitara o filho, gostava de
Margarida, mas sem dinheiro ou casa, aquela novela não tinha verba para ser
produzida. Num ápice, teve uma reacção:
-Doutor
Armando, eu amo a sua filha, e vou arranjar um emprego para poder casar com
ela, creia-me. Também simpatizo com o seu partido, andei a colar cartazes em
Sintra nas últimas legislativas…
Armando Alencar fez uma cara de
espanto: Sim?...
-Sim,
doutor Armando. Portugal tem de ser governado por um governo liberal, e acabar
com o regabofe esquerdista que ia dando cabo do nosso país. Aprecio muito o seu
trabalho!
Margarida e os pais calavam,
surpresos. Após uns segundos, Armando mandou-o embora, e que voltasse três dias
depois, à porta, as mãos dadas a Margarida deixavam em aberto o desfecho
daquele filme.
No dia acordado, mais distendido,
Armando colocou uma solução sobre a mesa: arranjaria a Bernardo um lugar na
Câmara, a começar de imediato, se estivessem de acordo casariam em Colares, no
mês seguinte, enquanto a barriga mantivesse o segredo. Assim, todos ficariam
contentes. No fim da reunião, um abraço correlegionário juntou sogro e genro em
recente amizade, afinal, também Georgina casara de esperanças, haveria de
descobrir Margarida mais tarde.
Dois anos depois, o jovem assessor do
vereador Alencar, seu genro por sinal, jantava no Búzio com a família, a pequena Matilde, já começando a andar, tocava no
aquário das lagostas, divertida. Velhos amigos a caminho do Quivuvi, vendo-os pela vidraça,
convidaram para uma bebida, não mais haviam lá voltado depois de casar. Pais, e com responsabilidades, declinaram, entreolhando-se e dando as
mãos por baixo da mesa, recordando aquele Lover
Why que numa noite de Verão lhes mudara a vida. Oportunamente.
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