domingo, 2 de junho de 2013

Noites do Quivuvi


No plateau do Quivuvi, 1988 chegava ao fim, e velhos amigos reencontravam-se para mais um copo de sábado, as habituais cuba libre até por volta das seis, quando a manhã raiasse e providencial, o João Padeiro, em Nafarros, vendesse uns pães quentes, se possível com chouriço, amenizando a ressaca. Não se iria à missa, mas as capelas tinham sido corridas. Desta vez, teriam um momento decisivo, na manhã seguinte.

Margarida envolvera-se com Bernardo durante o Verão paixão de férias que prosseguiu no Outono, com idas ao Nimas e ao Charlie Brown. Foi ao som de Lover Why, dos Century que sob a bola de espelhos do Quivuvi deram o primeiro beijo, a Filipa e a Guida, amigas das noites, apadrinharam. Bernardo era empregado de mesa, o gato por que Margarida sonhara, e todas as miúdas queriam. Cena de uma noite, repetiu-se nos sábados seguintes. Quando o Verão acabou e voltou para Lisboa, Margarida inventou entrevistas para um emprego em Sintra para se reencontrarem na Adega das Caves, perto do local onde Bernardo trabalhava.

Pelo Natal, o corpo deu um sinal. Suspeição primeiro, certeza depois. Margarida estava grávida. Uma alegria seguida de medo, apoderou-se dela. O doutor Armando e a D.Georgina eram de famílias tradicionais, seria um choque a filha grávida, solteira, e dum empregado de mesa. Apesar de Abril, as mentes não estavam tão abertas assim, e Bernardo ao saber censurou-a, incauto, também ele não tomara providências, mas homem é homem, apesar das notícias sobre uma nova doença vinda da América, a SIDA, o impulso vencera a segurança. Aborto, nem pensar, a D.Georgina era católica, filha dela não faria um desmancho, severo, o doutor Armando mandou chamá-los para uma conversa.

Antes, encontraram-se no Quivuvi, com os amigos, o Natal estava próximo e o espaço a meio gás, debitando música dos Cheap Trick e Whigfield, a um canto, apreensivos, cogitaram no melhor a fazer. Passada a surpresa, Bernardo até anuiu a ter o filho, o pior era o doutor Armando e os Vasconcelos de Alencar, olhando-os inquisitoriais e condenando-os ao desterro social. A barriga de Margarida começava a ganhar forma, qualquer aborto seria arriscado. Tocada uma música dos Delfins, precipitaram-se para a pista, de mão dada. Quando alguém nasce, nasce selvagem, cantaria Miguel Ângelo mais tarde, selvagem nasceria, se necessário fosse, o fruto daquela noite na Adraga. Os amigos apoiaram, tudo correria pelo melhor, juntaram-se num brinde solidário. Ter a criança ou fugir, não havia saída. Despediram-se à porta dela, a Guida, depois de a deixar em casa levaria Bernardo ao Penedo, um beijo apaixonado coincidia com a última emissão da Rádio Cidade, suspensa nesse dia por falta de licença.

O doutor Armando era director na Câmara de Lisboa. Assoberbado em trabalho, desde que ardera o Chiado, em Agosto, braço direito do presidente Abecassis, seria candidato na eleição seguinte, escândalos destes não vinham nada a calhar no meio do seu eleitorado do Restelo e da Lapa. 
À hora marcada, Bernardo, de camisa lavada e penteado irreverente, que tanta miúda levara à certa com aquele toque desafiador,la apareceu. Não fosse a farda do restaurante e até passaria por um deles, com o seu ar altivo e olho azul. Sem grandes sorrisos, Armando mandou-o sentar num sofá, a mulher e a filha no lado oposto, grave, puxou o assunto:

-Rapaz, lamentavelmente, vejo que apesar da idade, ainda não ganhaste juízo nesse corpo. Eu, na tua idade, já era pai da Margarida, mas tudo aos olhos de Deus, só assim se pode ser um chefe de família respeitado e um exemplo para os filhos. Já mediste bem a gravidade dos teus actos? Se eu quisesse, nunca mais tinhas emprego em lado nenhum!

-Doutor Armando, eu….

-Nem mais uma palavra. A minha filha terá essa criança, nesta família não se contraria a vontade de Deus, mas tens de assinar um papel a renunciar à paternidade, e jurar-me que nunca mais te aproximarás da Margarida!

-Pai! -insurgiu-se Margarida- pai, não estamos no século XIX!. Eu amo o Bernardo, e não vou deixar de o ver. Nós vamos casar!

-Vamos?...- Bernardo perdia o controlo dos acontecimentos, aceitara o filho, gostava de Margarida, mas sem dinheiro ou casa, aquela novela não tinha verba para ser produzida. Num ápice, teve uma reacção:

-Doutor Armando, eu amo a sua filha, e vou arranjar um emprego para poder casar com ela, creia-me. Também simpatizo com o seu partido, andei a colar cartazes em Sintra nas últimas legislativas…

Armando Alencar fez uma cara de espanto: Sim?...

-Sim, doutor Armando. Portugal tem de ser governado por um governo liberal, e acabar com o regabofe esquerdista que ia dando cabo do nosso país. Aprecio muito o seu trabalho!

Margarida e os pais calavam, surpresos. Após uns segundos, Armando mandou-o embora, e que voltasse três dias depois, à porta, as mãos dadas a Margarida deixavam em aberto o desfecho daquele filme.

No dia acordado, mais distendido, Armando colocou uma solução sobre a mesa: arranjaria a Bernardo um lugar na Câmara, a começar de imediato, se estivessem de acordo casariam em Colares, no mês seguinte, enquanto a barriga mantivesse o segredo. Assim, todos ficariam contentes. No fim da reunião, um abraço correlegionário juntou sogro e genro em recente amizade, afinal, também Georgina casara de esperanças, haveria de descobrir Margarida mais tarde.

Dois anos depois, o jovem assessor do vereador Alencar, seu genro por sinal, jantava no Búzio com a família, a pequena Matilde, já começando a andar, tocava no aquário das lagostas, divertida. Velhos amigos a caminho do Quivuvi, vendo-os pela vidraça, convidaram para uma bebida, não mais haviam lá voltado depois de casar. Pais, e com responsabilidades, declinaram, entreolhando-se e dando as mãos por baixo da mesa, recordando aquele Lover Why que numa noite de Verão lhes mudara a vida. Oportunamente.

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