sábado, 16 de fevereiro de 2013

Triste bailado em Monserrate



Vetusta e coberta de musgos, a quinta em Sintra fora um achado, a velha precisava do dinheiro, e de repente, o sonho de uma casa de campo tornado realidade. Uma velha cabana, onde andorinhas faziam ninho no beiral, no  anual retorno do sul, pontificava ao fundo. Não longe, Monserrate, altivo e mourisco, e um lago de águas cristalinas, onde graciosos patos agitavam as águas espelhadas. O Florindo de Gigarós, que já fora jardineiro dos antigos donos, mostrava a zona, conhecedor, chegados perto do lago, ficou perturbado e um quanto melancólico. Diogo, o novo dono, que descobria a zona acompanhado de Filomena, percebeu-lhe  um acabrunhamento e tentou descortinar o motivo:

-Algum problema, senhor Florindo?

-Coisa antiga, senhor engenheiro, de mais de quarenta anos, era eu rapaz pequeno ainda.

-E pode-se saber a história? Florindo hesitou, mas lá abriu o livro de memórias;

-A casa que o senhor acaba de comprar, guarda uma história muito triste, sabe. Durante anos foi propriedade do senhor Agnelo Bombarda, um comerciante de Lisboa, os meus pais chegaram a ser caseiros cá. O senhor Agnelo tinha uma filha, a menina Maria do Carmo, sempre bem-disposta e meiga, mas enviuvou cedo, a esposa, a D. Joana, morreu num acidente de automóvel, e ele ficou a viver aqui só com a filha, de sete anos, nunca mais foi o mesmo, sempre calado.

-Deve ter sido muito triste, calculo…-desabafou enternecida Filomena.

-A menina Maria do Carmo guardava uma lembrança da mãe, uma pequena caixa de música, com uma bailarina articulada  lá dentro, a acompanhar a melodia. A minha mãe dizia que ela costumava ter sonhos em que a D. Joana, na forma de um anjo, lhe aparecia, sorria e acariciava o rosto. E a pequena suspirava, a pensar na mãe e triste por não ver o pai sorrir. Chegou a dizer à minha mãe que no sonho a D.Joana lhe dizia que quando estivesse triste abrisse a caixa de música, que ela viria ter com ela. E na verdade, sempre que a garota se sentia perdida, abria a caixa e ficava hipnotizada, vendo a bailarina a dançar. Depois da morte da mulher, o senhor Agnelo nunca mais foi o mesmo, mas gostava muito da filha, várias  vezes os vi juntos ali no lago olhando os patos a nadar, ela até os queria levar para casa… -Florindo gesticulava como se tivesse sido ontem, descrevendo pai e filha com precisão. Diogo emocionou-se com a história, e procurou o conforto do ombro de Filomena, a sua Susana também ia nos nove anos, mas a mãe estava viva e com saúde, felizmente. Florindo continuou:

-A certa altura, o senhor Agnelo começou a meter-se na bebida, não queria saber de nada. A menina, coitada, chamava-o para irem ver os patos, ele desculpava-se, prometendo que iriam depois. Um dia, ela disse-lhe que a mãe prometera que nunca a abandonaria e cumpria, mas ele não. Aí, o senhor Agnelo ficou transtornado e deu uma sova na filha, e que nunca mais pronunciasse o nome da mãe. A coitada ficou em estado de choque e fugiu a chorar, ele, vendo o que tinha feito, fechou-se no quarto o dia inteiro. Nessa noite, ela pegou na caixa de música e veio até ao lago, abriu-a, e chamou pela mãe. Na manhã seguinte, arrependido, foi fazer o pequeno-almoço para lho levar ao quarto, mas ela não estava lá. Correu a casa, o jardim, veio para a estrada, e no meio do lago encontrou-a a boiar, com a caixa de música a tocar, em cima daquela pedra. Foi uma tragédia! -Florindo parou, taciturno, lembrava-se como em Colares, na altura, a história a todos impressionara -Foi o descambar completo do senhor Agnelo, sempre sentado naquela pedra,  a olhar para o lago. Uns dias depois,  foi também ele encontrado a boiar, com a caixa de música de novo em cima da pedra.

Impressionada, Filomena fixou os olhos no lago e pareceu ver os dois, guardados pela floresta, sua trágica sepultura. Anoitecia e voltaram à casa, Susana aguardava junto ao carro brincando com um gato. Instintivamente, o pai abraçou-a, beijando-lhe a testa, a mudança seria duas semanas depois. Arrancando para Sintra, o som duma caixa de música com uma bailarina dentro parecia vir do lago em Monserrate, triste e crepuscular.

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