Vetusta e coberta de
musgos, a quinta em Sintra fora um achado, a velha precisava do dinheiro, e de repente, o sonho de
uma casa de campo tornado realidade. Uma velha cabana, onde andorinhas faziam
ninho no beiral, no anual retorno do sul, pontificava ao fundo. Não longe,
Monserrate, altivo e mourisco, e um lago de águas cristalinas, onde graciosos
patos agitavam as águas espelhadas. O Florindo de Gigarós, que já fora jardineiro dos antigos donos, mostrava a zona, conhecedor, chegados perto do lago, ficou perturbado e um quanto melancólico. Diogo, o novo dono, que descobria a zona acompanhado de Filomena, percebeu-lhe um acabrunhamento e tentou descortinar o motivo:
-Algum problema, senhor
Florindo?
-Coisa antiga, senhor
engenheiro, de mais de quarenta anos, era eu rapaz pequeno ainda.
-E pode-se saber a história? Florindo
hesitou, mas lá abriu o livro de memórias;
-A casa que o senhor acaba de comprar,
guarda uma história muito triste, sabe. Durante anos foi propriedade do senhor
Agnelo Bombarda, um comerciante de Lisboa, os meus pais chegaram a ser caseiros
cá. O senhor Agnelo tinha uma filha, a menina Maria do Carmo, sempre
bem-disposta e meiga, mas enviuvou cedo, a esposa, a D. Joana, morreu num
acidente de automóvel, e ele ficou a viver aqui só com a filha, de sete anos, nunca
mais foi o mesmo, sempre calado.
-Deve ter sido muito triste,
calculo…-desabafou enternecida Filomena.
-A menina Maria do Carmo
guardava uma lembrança da mãe, uma pequena caixa de música, com uma bailarina
articulada lá dentro, a acompanhar a melodia. A minha mãe dizia que ela
costumava ter sonhos em que a D. Joana, na forma de um anjo, lhe aparecia,
sorria e acariciava o rosto. E a pequena suspirava, a pensar na mãe e triste por
não ver o pai sorrir. Chegou a dizer à minha mãe que no sonho a D.Joana lhe
dizia que quando estivesse triste abrisse a caixa de música, que ela viria ter
com ela. E na verdade, sempre que a garota se sentia perdida, abria a caixa e ficava
hipnotizada, vendo a bailarina a dançar. Depois da morte da mulher, o senhor
Agnelo nunca mais foi o mesmo, mas gostava muito da filha, várias vezes
os vi juntos ali no lago olhando os patos a nadar, ela até os queria levar para
casa… -Florindo gesticulava como se tivesse sido ontem, descrevendo pai e
filha com precisão. Diogo emocionou-se com a história, e procurou o conforto do
ombro de Filomena, a sua Susana também ia nos nove anos, mas a mãe estava viva
e com saúde, felizmente. Florindo continuou:
-A certa altura, o senhor
Agnelo começou a meter-se na bebida, não queria saber de nada. A menina,
coitada, chamava-o para irem ver os patos, ele desculpava-se, prometendo que
iriam depois. Um dia, ela disse-lhe que a mãe prometera que nunca a abandonaria
e cumpria, mas ele não. Aí, o senhor Agnelo ficou transtornado e deu uma sova
na filha, e que nunca mais pronunciasse o nome da mãe. A coitada ficou em
estado de choque e fugiu a chorar, ele, vendo o que tinha feito, fechou-se no
quarto o dia inteiro. Nessa noite, ela pegou na caixa de música e veio até ao
lago, abriu-a, e chamou pela mãe. Na manhã seguinte, arrependido, foi fazer o
pequeno-almoço para lho levar ao quarto, mas ela não estava lá. Correu a casa, o
jardim, veio para a estrada, e no meio do lago encontrou-a a boiar, com a caixa
de música a tocar, em cima daquela pedra. Foi uma tragédia! -Florindo
parou, taciturno, lembrava-se como em Colares, na altura, a história a todos
impressionara -Foi o descambar completo do senhor Agnelo, sempre sentado
naquela pedra, a olhar para o lago. Uns dias depois, foi também ele encontrado a
boiar, com a caixa de música de novo em cima da pedra.
Impressionada, Filomena fixou os
olhos no lago e pareceu ver os dois, guardados pela floresta, sua trágica
sepultura. Anoitecia e voltaram à casa, Susana aguardava junto ao carro
brincando com um gato. Instintivamente, o pai abraçou-a, beijando-lhe a
testa, a mudança seria duas semanas depois. Arrancando para Sintra, o som duma
caixa de música com uma bailarina dentro parecia vir do lago em Monserrate,
triste e crepuscular.
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