Era dia de círio em S.João das
Lampas. Zé da Adega, Domingas e os rapazes pequenos preparavam-se para
envergado o fato domingueiro irem na Zorra
de Alfaquiques a S. João, ao círio da Senhora do Cabo. Era a segunda vez que
assistiam a um círio, o primeiro fora em 1830, vinte e seis anos mais haveriam
de viver para ver um terceiro. Domingas estava outra vez prenha, o quinto
cachopo a caminho, andava irritadiça, pois gulosa como era aborrecia-a ter de
comer pão alvo e galinha durante os quarenta dias do regimento, evitando o
toucinho guardado da última matança do ti Januário. Em casa, para que o rapaz
pequeno viesse em boa hora, usava o chapéu do marido, e aos ombros os calções do
mesmo, e em tais preparos andava na monda. Nesse dia, porém, era dia de festa e
Zé da Adega lá pôde vestir os calções para que não fosse apanhado desprevenido.
O círio era o momento em que cada
um da aldeia mostrava o valor da sua bolsa. Zé da Adega comprara barretina nova
à Domingas, para si mandara fazer casaca nova, tinha obrigação de durar vinte e
seis anos, pelo menos. O filho do ti Ambrósio que Deus tenha, o Justino,
amanuense na capital, também viera à terra para os festejos mas tendo um
temporal arrasado o telhado da casa na véspera da procissão, aceitou de bom
grado a oferta do ti Zé de ficar a dormir em casa dele.
-É pobre, mas malga de vinho, e lume de chão não lhe há-de faltar, amigo
Justino! -reforçou o ti Zé, orgulhoso por albergar o filho do Ambrósio -Boa gente era o senhor seu pai! Todas as
semanas íamos á Malveira, bons tempos!
O Justino vivia em Lisboa há mais
de seis anos. Alojara-se num quarto na Praça da Alegria, com serventia de águas
quentes e frias e era já um homem da cidade, enfiado em letras de câmbio e
cobiçando coristas no Teatro Avenida.
Na manhã do dia grande, leite
direto da vaca e presunto encheram a mesa de madeira, posta em honra do
visitante, prestável, a Domingas passou a noite a fazer filhoses. Manhã cedo, o
Januário pediu um bacio e um pano e foi para o quarto, arranjar-se para a
festa. Estranhando o interesse pela água, o mais velho da Domingas, maroto, foi
espreitá-lo, deparando pasmado com o Januário a lavar a cara e os sovacos.
-Oh mãe, oh mãe, vem ver o que ele está a fazer! -correu o pequeno
Serafim, assustado com o que vira. Domingas acorreu ofegante a espreitar, e
benzeu-se, ante a visão invulgar:
-Nossa Senhora! Parece que lá na cidade lavam-se com água! Água só para
os batizados, benza-os Deus!
Saíram para o círio. A procissão
estava deslumbrante, Serafim ia de anjo pela primeira vez. Toda a aldeia
vestira o melhor fato, as ruas estavam vistosamente decoradas e até para os
burros houve reforço de pasto. Na quermesse, Zé da Adega e Justino, já de nariz
avermelhado, provavam a pipa do Teodoro, malvasia da boa, que o Verão fora
farto.
-Pois é como lhe digo, compadre Teodoro.Com a venda das vacas e do vinho
das minhas fazendas na Assafora, consegui um bom cabedal. Este ano, se Deus
quiser, vou arrematar o boi cobridor que o Estevão de Cheleiros tem para venda
na Malveira! E, copo erguido, já cambaleando, falava das colheitas, enfiado
na fatiota apertada que a Domingas arranjara para levar ao círio.
-Os seus filhos lá ficam arranjados, ti Zé- concordou o Justino,
eufórico com o terceiro copo, beber em Lisboa era raro.
-E já comprei um bocado de chão para mim e para a mulher no cemitério
de S. João! Posso morrer que já fica pago e tudo! Antes para ali que para o
boticário!
-Eu, boticário, é logo meia canada de vinho com uma folha de alecrim
dentro, que quando morrer vou deitado! –sentenciou o Teodoro, emborcando mais
uma malga de tinto.
Assim se celebrava mais uma
Senhora do Cabo em S. João. O comendador Nogueira, juiz da festa, mandou
distribuir um bodo, coisa farta e apreciada e todas as noites as mulheres
rezaram a novena, ocasião para as casadas recolherem mais tarde à alcova.
Passadas duas semanas, a Domingas
teve a sua hora pequenina. Mais um rapaz. Correram a dizer ao Zé da Adega que
andava na vinha.
-Haverá de criar-se! -disse entre dentes, continuando a cavar, rude
de modos, mas no fundo coração mole.
Domingas lembrando-se do Januário,
decidiu experimentar dar banho ao rebento.
-Se os da cidade se lavam com água e não morrem, mal não lhe há-de
fazer!....-pensou.
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