Novembro de 1307, já noite, um
barco proveniente de Calais ancorava em Lisboa. Nele viajara um velho
sorumbático, de barba esbranquiçada, porte altivo e desafiador. Bertrand de
Clairvaux, de seu nome, mantinha o rosto fechado e trazia um baú de carvalho de
que não deixava ninguém aproximar. Em Lisboa aguardavam-no Lopo Guterres e
Ramiro de Sintra, irmãos templários daquela vila, avisados da chegada dum
importante enviado a quem deveriam alojar.
-Bem vindo, Bertrand de
Clairvaux! -saudaram, ambos já na casa dos quarenta, antes combatentes em
Gaza.
-Obrigado, irmãos. Já devem
saber o que sucedeu a nosso mestre, Jacques de Molay? Vivemos tempos perigosos,
o rei de França está rodeado de intriguistas que conjuram para nos perder...
-Sim, nobre Bertrand, romeiros
vindos de França trouxeram até nós as más novas. O Papa Clemente não pode
permitir essa prisão infame! -respondeu Ramiro, as novas da prisão do
Grão-Mestre eram difusas, inventaram-se adorações satânicas e naquela aziaga
sexta-feira Lúcifer abatera-se sobre o Templo. No mês anterior, o rei Filipe,
com a aquiescência do papa Clemente, de surpresa mandara prender os templários
de França e o Grão-Mestre, Jacques De Molay. Godofredo de Chorney, temendo a
sua eminente prisão, chamou Bertrand, cavaleiro de muitas batalhas, e
encarregou-o de uma missão secreta, em Portugal.
Um cavalo estava aparelhado para o
levar a Sintra, duas mulas para os baús, ficaria alojado perto do antigo paço
árabe, na propriedade aforada ao antigo Grão-Mestre Gualdim Pais. Horas depois
chegaram, sem que Bertrand deixasse de estar atento às mulas com os baús, sobretudo um mais pequeno. Alojaram-no numa cela esconsa, com vista para a serra, e no
dia seguinte, depois do terço, reuniu com todos os cavaleiros da vila, levando
o baú mais pequeno:
-Irmãos de Portugal, venho até
vós com uma missão sigilosa, pelo que tudo o que virem ou ouvirem não pode
transpor estas portas. Os cavaleiros, intrigados, juntaram-se em torno de
Bertrand, tochas alumiavam a sala subterrânea, uma cripta onde só eles
entravam. -O provincial da Normandia, Godofredo de Chorney interpretou na
profecia da cátara Esclarimunda ser Sintra o local onde deve ficar o que vem
neste baú.
-Pedi o que precisares,
Bertrand, se necessário nosso sangue será derramado! -afirmou Lopo
Guterres, veterano de Antioquia e o mais ancião do grupo.
-É precisamente o sangue
derramado que me trás até vós - adiantou, intrigante. Dirigindo-se ao baú,
de lá retirou um volume envolto em burel, que religiosamente colocou sobre a
mesa. Abrindo-o, era um cálice enferrujado, deixando todos com ar intrigado.
-Eis o que me trouxe a terras
portucalenses!
Os cavaleiros entreolharam-se, que
importância poderia ter aquele cálice para a viagem até Sintra. Bertrand fez
uma pausa, olhou-os um a um, grave e solene, e ergueu o cálice ao nível dos
olhos, como se de uma eucaristia se tratasse:
-Cavaleiros do Templo, eis o
cálice onde José de Arimateia recolheu o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo na
hora em que partiu ao encontro do Pai!
Os cavaleiros sentiram um calafrio
de espanto e ajoelharam, impelidos por um instinto irracional e fazendo o sinal
da cruz. Ali estava perante eles o Santo Graal! Não era loa de bardos
provençais afinal, a perseguição à Ordem obrigava a salvar de mãos heréticas o
tesouro há séculos ocultado.
-O santo cálice repousava há
doze centúrias em Montsegur, onde a mártir Esclarimunda o guardou, depois de
lhe ser entregue por José de Arimateia- continuou. Poucos sabem da sua
existência. Agora, ficará em segurança nesta terra, de acordo com a vontade de
Esclarimunda: “quando o sangue real for turbado, a força da vida repousará onde
o Ocidente acaba e a montanha vigia”. Aqui! -e bateu com a mão no peito,
olhando o infinito. A missão estava a chegar ao termo.
Um a um contemplaram a relíquia,
como se Cristo em pessoa tivesse descido à cripta, benzeram-se e beijaram-no
com emoção. Depois, velaram toda a noite, rezando e observando jejum.
Antes de nascer o sol, colocado o
cálice numa bandeja de prata e formados em procissão, desceram por uma galeria
na direção do paço árabe, e numa sala em abóbada de berço, suportada por
colunas sugerindo um hipogeu, debaixo duma laje o guardaram. Bertrand virou-se
para os cavaleiros e enfatizou:
-Um Cavaleiro Templário
é um cavaleiro destemido e seguro, com a alma protegida pela armadura da
fé, assim como o corpo está protegido pela armadura de aço! Non nobis Domine, non nobis, sed
nomine Tuo ad gloriam! (*)
Em 1314, Jacques de Molay foi
supliciado, após sete anos de terríveis provações, e Clemente V extinguiu a
Ordem do Templo, expropriando-lhe os bens. Por cá, mais complacente, D. Diniz, ao fim
de uns anos, criou a Ordem de Cristo, e como tal puderam os cavaleiros
sobreviver, sob a sua cruz velas portuguesas sulcariam os mares anos mais
tarde. Silencioso, o Graal continua pela noite dos tempos uns metros abaixo do Paço
de Sintra…
(*) Não a nós, Senhor, não a
nós, mas ao Vosso nome dai a glória
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