O hóspede recém-chegado olhou pela janela do salão e terminou o cherry, já na cozinha Jane Lawrence ultimava o pato assado que Higgins lhe pedira para o jantar. Este,saboreando um Porto com Neville no salão e achando o inglês abúlico, abordou o taciturno forasteiro:
-Algum problema, cavalheiro? Parece preocupado…permita que me apresente: John Higgins, de Durham. Este é o meu amigo, o reverendo Neville. Está em Sintra a negócios?
O recém-chegado virou a cara, rugosa e envelhecida, coberta por longos cabelos ruços e saudou, com um aceno de cabeça:
-Sou William Galagher, de Portsmouth. Prazer.
Bebendo mais um cherry, sentou-se na poltrona em pele do canto, parecia cansado e ao mesmo tempo desejoso de falar, como se um peso o sufocasse e não tivesse com quem aliviar. Após um lapso silencioso, encheu mais um copo e decidiu-se:
-Senhores, vou contar-vos uma história muito triste, talvez das mais tristes que alguma vez escutastes. Há seis meses, em Portsmouth, morreu tísico meu único filho. Desesperado, uma noite, vai para três meses e cansado da vida saltei de uma falésia para meter termo à vida. Pensava descansar já entre os mortos, quando recobrados os sentidos me vi num escaler de marinheiros que remavam em direcção a um barco. Abeirando-se de mim, a boiar e sem sentidos, levaram-me para bordo e trouxeram-me para Portugal, o navio que me salvou vinha para cá em socorro do general Wellesley. O comandante do navio, apiedado do meu caso, recebeu-me como amigo.
Detendo-se um pouco, William olhou o mar que se descortinava ao fundo e continuou:
-Agora, enchei os vossos copos, senhores: o que vos vou contar é negro, como negras são as trevas do Inferno - o ar grave deixou Higgine e Neville intrigados, até Miss Jane assomou ao corredor interessada na narração.Lord Travis, também alojado no Lawrence, chegou entretanto, e juntando-se-lhes no salão, pediu chá e scones que Jane diligentemente providenciou. William continuou, adensava-se o mistério:
-Já perto da costa portuguesa, avistámos um navio de Bonaparte e uma nuvem de balas veio cair sobre nós. Os navios ficaram lado a lado e decidimos dar-lhes caça. Atracados os navios para a luta, deu-se um combate sangrento, o chão do navio escorregava, tanto era o sangue. Alguns minutos depois o barco deles foi pelos ares. Foi uma cena pavorosa, ver as chamas, o estrondo da pólvora, o reverberar do fogo nas águas e os homens caindo ao oceano. Uns, queimados, atiraram-se à água, outros nadaram com dores horríveis e morreram gritando maldições. Enquanto o comandante e os homens se batiam como bravos, mandaram que eu ficasse na camarata. Apesar do sucesso com as armas, horas depois, contudo, o nosso navio encalhou e afundou-se, metendo água por todo o lado.
Travis interrompeu o relato nesta altura, lembrando o naufrágio umas semanas antes do HMS Victória. Não houvera sobreviventes, e lembrava ter a imprensa inglesa feito referência ao assunto antes da sua partida para Lisboa. Era o barco de William.
-Homem, você deve ser o único sobrevivente desse desastre. Segundo se disse, terão morrido todos!
A dona do Lawrence e os outros dois pasmaram, William mostrou surpresa por a notícia ter saído na imprensa, mas não deu sinais de alterar a postura, antes bebeu um pouco mais de cherry:
-Que horror, milord! Jesus, Mary, how did you save yourself? -replicou Jane, levando as mãos à cara, a irlandesa, há dez anos instalada em Sintra, nunca ali tivera um hóspede tão castigado pelo destino.
-Creio que se deveria deixar o cavalheiro explicar melhor a sua história. Go on, mr. Galagher! -Travis colocou um ar irónico, aguardando o resto do folhetim, tão ao gosto dos poetas do Lake District. O inglês continuou:
-Depois, foi horrível. Naufragado o barco, sobrámos cinco numa jangada em alto mar. Cada vaga que varria as tábuas arrastava um homem. Quando a aurora do quarto dia chegou, restavam apenas três: eu, o comandante e um grumete. Durante alguns dias ainda comemos bolachas com sabor a mar, depois tudo o que há de mais horrível se passou: não havia que comer, as entranhas acusaram a fome. Isso tudo, senhores, para falar-vos de algo muito simples: a sobrevivência…
O grupo estava suspenso, Travis mal esperava para ouvir o desenlace, entretendo-se com os scones de Miss Jane.
-Uma semana depois e acabados os alimentos, apenas restava eu e o comandante, macilentos, e enjoados do balançar das ondas. Mandam as leis do mar que a morte de um seja a vida de todos. Tirámos à sorte, a ver quem ficaria e coube ao comandante morrer.
-Que horror, é completamente perturbador! - Higgins nem uma raposa conseguira matar durante a batida na manor de Lord Grasmere, a ideia de canibalismo, ainda para mais de um compatriota, apavorou-o.
-O comandante ajoelhou-se, chorou e gemeu a meus pés.Mas eu tinha as entranhas em fogo. Morrer naquele dia ou depois... tudo me era indiferente, tinha fome. O velho lembrou-me que me acolhera a bordo por piedade, mas era eu ou ele. Transtornados, lutámos corpo a corpo por um mísero dia de vida! Logo eu, a quem o desejo da morte levara até ali e agora perante a iminência dela a não queria aceitar…
A face de William ficou transfigurada, recordando a cena, lobo esfaimado em alcateia flutuante.
-Caiu, pus-lhe o pé na garganta, sufoquei-o e morreu ...aqui, fez-se um silêncio na sala, só quebrado pela algazarra na rua dos burros com visitantes para a serra.
-Não cubrais o rosto com as mãos, faríeis o mesmo... O cadáver do comandante foi o meu alimento durante uns dias. As aves baixaram para reclamar a sua parte, os meus lábios secos e estalados apenas expeliam o sangue de fera a abocanhar a presa, o mar parecia um sorvedouro, pronto para me engolir. Nessa noite, uma sorrateira onda arrebatou-me o resto do corpo, a minha sobrevivência perdia-se nesse momento também.Entrei em delírio, e quando acordei estava a bordo dum navio de pesca português.
Terminado o relato, o grupo manteve silêncio, entre o horror e o espanto, impressionados e já sem fome, recolheram aos quartos. O suculento pato assado de Jane parecia agora herético e escandaloso, apesar do apetitoso cheiro que vinha da cozinha. No dia seguinte, Galagher faltou ao almoço da manhã. Miss Jane tocou à porta e como não respondesse, chamou Silvério, o cocheiro, que ante o silêncio, forçou a porta com um pé de cabra. O hóspede sumira e os poucos pertences estavam em desalinho sobre a cama.Na estrada da Pena, entretanto, um alarido e gritos estridentes denunciavam alvoroço para o lado dos Pisões. Travis e Neville, que já estavam à mesa, largaram a compota de laranja e acorreram curiosos a ver que banzé perturbava o silêncio de Sintra. Pendurado duma corda, na Sobreira dos Fetos, o corpo de William ondulava ao vento, atormentado predador do seu benfeitor. Duas vezes resgatado da morte, era tempo agora de ir ao seu encontro e enfim descansar em paz.
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