Mais que a crise económica que assola o país, assistimos hoje à degenerescência da vida pública e cívica, com atentados às leis fundamentais, assalto à comunicação social por grupos obscuros, prisões irregulares na sequência de manifestações e um clima de inimputabilidade em que a revelação de qualquer novo escândalo deixou de surpreender, por nos termos habituado a que a falta de decência tenha tomado de vez conta do país.
Pairando sobre tudo isto, está um senhor que abomina a política e os políticos, e, paradoxalmente, é um dos protagonistas da nossa vida pública com maior longevidade, tornado insuportável pela insustentável leveza da postura com que encara o cargo em momento de crise.
Funcionário público a quem Sá Carneiro foi buscar para ministro das Finanças em 1980, qual Salazar em 1928, depois duma breve experiência governativa, irrompeu como reserva moral do PSD no congresso da Figueira da Foz, em 1985, aonde foi rodar o carro e de lá saiu líder. Convocadas eleições após a experiência do bloco central e com os milhões da integração europeia, uma nova vaga fontista e betonizadora varreu o país, com o ministro Ferreira do Amaral a prometer manter o mapa do ACP permanentemente desactualizado. Rotundas e viadutos cresceram como cogumelos, bem como polidesportivos, cineteatros, museus e outras obras com que se exauriram milhões e proclamou o “progresso”. Presidindo à pandemia de vacas gordas, o professor algarvio engordou o Estado, a que hoje chama “monstro”, mandou arrancar vinhas, desperdiçar o leite e abater os barcos, em nome da PAC e outros ditames da Europa, com o CCB, a Ponte Vasco da Gama ou a Expo 98 como cerejas no topo no bolo.
Os anos passaram, e depois dum exílio na Rua do Possôlo, saudoso do Midas de Boliqueime, o povo foi buscá-lo de novo, para funções mais ornamentais, mas, que atenta a legitimidade eleitoral, produto de disfunções da nossa Constituição depois de revisões feitas a martelo, o colocou num papel de magistratura de influência, onde o silêncio passou a ser um novo poder, e o recato exagerado a postura assumida de Cavaco, O Discreto. Falando quando não devia e calando quando se impunha falar, Aníbal António Cavaco Silva virou um erro de casting num momento em que o país exigia firmeza no respeito pelos direitos, atenção à chaga do desemprego e da fome e solidariedade com os novos pobres, a quem em tempos ele fez novos ricos. Retirado em Belém, a ele ninguém vê a visitar bairros problemáticos, na sopa dos pobres ou junto dos deserdados, antes cioso da sua pensãozinha de funcionário público reformado. Não lhe está nos genes, dirão alguns. Dele, porém, guardará a História a imagem de Ali Babá, que, abrindo a gruta com palavras mágicas e delas sacando o ouro aos ladrões, acabou aprisionado na gruta, sem ouro, sem palavras mágicas e convivendo com os ladrões. Pois é: já não há histórias das mil e uma noites.
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