-Joana…- Foram as ultimas palavras de Delfim Mourão no leito de morte, os familiares do velho advogado entreolharam-se. No momento em que partira do seio dos vivos, fixara o tecto do quarto e balbuciara esse nome, nenhuma parente ou amiga conhecida tinha tal nome próprio. Quem seria Joana?
Delfim Mourão, oitenta anos, com a emergência da urbanização em massa, já no outono da vida, fizera fortuna no imobiliário. Lido e viajado, nunca fora um pato bravo, dinamizando mesmo uma fundação que anualmente atribuía um prémio com o seu nome, um antigo Presidente da República fizera-o comendador no 10 de Junho. Deixava Matilde, devotada esposa de cinquenta anos e três filhos, nenhum seguira o negócio de família. Flávio era jornalista, David agente de seguros, António vivia na Holanda, onde abrira um atelier de design.
Os últimos dias aceleraram um cancro do cólon devastador. Delfim sabia, conformado, fizera testamento, e enquanto as forças deixaram, promoveu um roteiro sentimental pelo seu passado: a vinha de chão de areia em Fontanelas, onde o avô Manita cultivara o guloso ramisco; a Sociedade União Sintrense, onde muitos escudos deixara ajudando a velha colectividade; com os filhos e netos realizara um almoço, que todos adivinharam ser o último, no restaurante do Saraiva. Filantropo, vagamente mulherengo na juventude, Sintra perdia um empresário e uma referência.
Joana.Flávio, o mais velho, estranhou as últimas palavras do pai. Depois do enterro, muito chorado e participado pelas autoridades, feitos os discursos pesarosos pela perda irreparável, Flávio recolheu-se na casa de Nafarros, capturando com o olhar cada pormenor e cada objecto, como se todo um passado desaparecesse uma vez vendida a casa. A mãe não queria continuar lá, as memórias esmagavam, mais de cinquenta anos pendiam daqueles retratos e trepadeiras: o baptizado de António, a formatura de David, a morte da avó Ermelinda. Numa gaveta da secretária, onde pontificava um busto da República oferta de Salgado Zenha, velho vizinho e amigo, jaziam cartas amarelecidas trocadas com José Alfredo, o velho escriba de Sintra, um poema de Francisco Costa, uma caricatura sua feita pela Maria Almira, com uma carinhosa dedicatória em verso. A casa cheirava a cera, forte, transportando para passados de canjas de galinha, gemadas de açúcar, cânfora e naftalina para expulsar as traças. Cheiros datados, como os musgos da parede, certificação de vetustez, ou os ninhos de andorinhas no beirado, anualmente arribando em Março, sinal de vida e de renovação.
Delfim Alves Mourão tivera uma vida austera. Liberal na política mas conservador nos costumes, poucas vezes se lhe vira uma lágrima, ou uma palavra desalentada. Era uma força da natureza, e um asceta também. Não bebia, fazia curas nas termas, deleitava-se escutando Brahms na velha grafonola, ficando largos minutos inspeccionando a serra com o olhar, sobretudo em dias cinzentos, com a neblina a enevoar os cumes e escondendo os palácios na dimensão irreal onde pertenciam. Vendo o filho absorto e lendo os papéis do pai, Matilde Mourão, ainda combalida, juntou-se-lhe no escritório. Instintivamente, mãe e filho acariciaram-se, uma foto de família na parede testemunhava para a eternidade três gerações de Mourões, com os patriarcas ao centro, foto do velho Granja, devidamente assinada. Flávio manteve-se por instantes em silêncio, para logo puxar o mistério que o atormentava:
-Mãe, que Joana era aquela de que o pai falou antes de fechar os olhos?
-Não sei, Flávio, não sei. O teu pai conhecia muita gente, e naquela altura, a bem dizer, estava já delirando. Alguém do passado, uma cliente…- Matilde já se preparara para a perda, há meses que o Dr. Botelho a desenganara, os tratamentos tinham parado, não adiantavam. Flávio manteve-se nostálgico alguns segundos, e voltou à carga:
-Mãe, diga-me. Acha que o pai foi feliz?
Matilde fez um sorriso esfíngico e saiu para o quarto, deixando uma frase enigmática no ar: Nada de precioso é transmissível. Uma vida feliz é um segredo perdido. Flávio fechou a gaveta, olhou uma última vez para o retrato da família na parede do escritório, e saiu a tomar ar, breve teria de voltar para o jornal e o quotidiano de mundos efémeros e voláteis. Numa prateleira, recheada de clássicos de Camilo, uma foto a sépia intercalava como separador num velho livro. Sorridente prisioneira num passado distante, ciosamente guardada entre as letras de um romancista francês, a foto risonha e despreocupada de Joana Travassos, a primeira paixão de Delfim, ali se escondia, arqueológico testemunho de um dos vários passados de Delfim Alves Mourão, ilustre empresário de Sintra.
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