Existe hoje no mundo um contingente de cerca de 160
milhões de refugiados, pessoas forçadas a fugir por recearem pela sua vida e
liberdade, e que na maioria dos casos, abandonaram tudo – casa, bens, família e
país – rumo a um futuro incerto em terras estrangeiras, vindos da Síria, Líbia,
Eritreia, Sudão, Afeganistão ou Iraque, países mergulhados em conflitos étnicos,
religiosos, palco de senhores da guerra e do cinismo geopolítico das grandes
potências.
Cada vez em maior número, vistos numa óptica securitária
e com receio, os refugiados são em larga escala pessoas indefesas ante a
violação cabal dos seus direitos humanos, não obstante os piedosos e retóricos tratados,
acordos e protocolos internacionais visando protegê-los, mas que no terreno
esbarram com a rejeição e o desdém do Outro, vizinho ou conterrâneo, por vezes
com uma mera fronteira física ou um lago a separá-los.
A separação dicotómica neste mundo pós-moderno entre
ricos e pobres, cristãos e muçulmanos, ocidentais e orientais, sunitas e
xiitas, com que se tem rotulado comunidades inteiras, criou uma nova categoria
de cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, os desejados de um lado e os
indesejados do outro. Hoje, deparamo-nos com novos escravos e estes têm um nome:
refugiados, os novos indesejados, ameaçando a estabilidade económica e social e
fazendo florescer sentimentos xenófobos e de afastamento, apesar das piedosas
mas distantes e súperfluas campanhas nas redes sociais ou em protestos
coloridos mas que não tiram ninguém da sua zona de conforto, como o não tiraram
os Charlies ou os protestos anti-globalização dum passado recente,
mobilizadores de jovens burgueses para happenings vistosos e pouco mais.
São precisas políticas humanitárias de inclusão social e
acolhimento. O refugiado é alguém que perdeu quase tudo, e para quem apenas
subsistiu a esperança, a raiar o desespero. Forçado a deixar o seu país, deambula
hoje como zombie esmolando uma cidadania e implorando por liberdade, estima, emprego
ou educação.
Segundo um relatório de 2002 do Alto Comissariado da ONU para
os Refugiados, o ACNUR, em cada dez refugiados no mundo, sete foram acolhidos
por países pobres, e entre 1992 e 2001, do total de refugiados, 86% provinham
de países pobres. Quando virão os países desenvolvidos a assumir um papel
proeminente na protecção dessas massas humanas em constante movimento, em
diáspora permanente das suas pátrias, buscando nada mais que o sagrado direito
à vida?. É urgente um Pacto de Humanidade visando a superação deste estado de
insegurança colectiva em que o mundo vive, em colapso ético e moral, e que destaque
a urgência do respeito pelo ser humano na sua diversidade bem como as
diferentes culturas e crenças religiosas e políticas.
Se na frente diplomática é preciso por fim aos conflitos,
sem sofismas ou tacticismos, é preciso igualmente tudo fazer para acabar com o tráfico
de seres humanos, que acrescenta sofrimento e insegurança a populações já
causticadas pelos conflitos que não criaram. E rejeitar os discursos etnocêntricos, pois a humanidade
constitui um só povo.
Aos refugiados é preciso reconhecer o direito de ser
aceite, conferir-lhe direitos de cidadania que lhes devolva uma identidade e o
direito de constituir e manter uma unidade familiar, o reconhecimento do
casamento e os direitos para os seus filhos, sem cuja superação teremos o
crescimento de um contingente de párias sociais. Mas também o direito a manter as
suas crenças religiosas, a manter e praticar a sua língua materna e o seu
património e herança cultural, o direito à educação e reconhecimento das suas
qualificações, o direito a um emprego e remuneração dignos e em igualdade com
os naturais dos países de acolhimento, e, sobretudo, o direito à segurança que
os fez sair das suas pátrias, comunidades e famílias, para um mundo que
julgavam deles e muitos teimam em considerar coutada privada com admissão
reservada, e o direito de poder transitar livremente dentro do país que os
acolheu e deste para o exterior, sem serem tratados como presos em liberdade
condicional.
A Terra é um só país, e os seres humanos os seus cidadãos.
Se esta visão pudesse ser rapidamente transformada em realidade pelos governos
nacionais, muito em breve, e quem sabe ainda na primeira metade deste século
XXI, teríamos um mundo onde o conceito de refugiado seria considerado algo
ultrapassado. Até lá, continuaremos a ver chegar às praias do Mediterrâneo
vidas que se perderam pela indiferença e rejeição. Uma vez mais, os sinos
dobram. E dobram por nós, analfabetos da Humanidade e náufragos da
solidariedade, alcateia ao invés de rebanho e seita em vez de comunidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário