Hanno, o Paquiderme do Império
Já desde
Livorno corria de boca em boca, uma exótica e vistosa comitiva aproximava-se da
Cidade Eterna e estranhas bestas desbravavam a Via Ápia sem que fossem
repelidas. O povo estranhava.
Naquele 9 de
Março fazia a entrada nos Estados do Papa a luxuriante embaixada do rei de
Portugal, o poderoso D. Manuel, alardeando os sucessos da sua navegação e com
fausto indo prestar tributo ao senhor da Cristandade. Tristão da Cunha, o
plenipotenciário, instruíra Garcia de Resende para que distribuísse moedas de
ouro pelos pobres e fosse esmoler com as igrejas, o que o secretário do
embaixador fez, para gáudio dos locais, que à vista de tal davam vivas àqueles
bizarros portoghesi. Avisado da
chegada, Leão X anunciou que receberia a comitiva a 20,dispensando a bula de
entrada nos Estados Pontifícios.
Diogo
Pacheco e João Faria montaram guarda ao tesouro que seria ofertado, e a custo
mantiveram calmos os exóticos animais, tirados de seu sossego em paragens
longínquas e agora na terra dos campanários. Leopardos, uma pantera, papagaios,
perus, cavalos da Índia, o circo real chegava à cidade. Mais que todos,
impressionava um enorme elefante albino de doze palmos, carregando no dorso um
palanque de prata em forma de castelo contendo um cofre com presentes, entre os
quais paramentos bordados com pérolas e pedras preciosas, e moedas cunhadas
para a ocasião. Um rinoceronte indiano estivera previsto, mas morrera num
naufrágio, já perto da costa italiana.
Mais de cem
pessoas escoltavam a parafernália de presentes, para glória do Venturoso,
Senhor do Oriente, do Império e da Conquista, vassalo do Papa, mas seu igual,
temido e invejado dono dos mares tormentosos. A Tristão da Cunha competia obter
bulas e breves, e a bênção papal, a troco das generosas arcas carregadas pelo
paquiderme.
Roma estava
rendida. À ordem de João Faria, trombetas e tambores anunciaram as novas
legiões. Fernão Pires, do Paço de Sintra, era o responsável pelo elefante, e o
guardião do tesouro, de quinhentos mil cruzados. O animal diversas vezes se
mostrou enervado com os ruidosos camponeses que em algazarra seguiam o cortejo
pela estrada, só o mahout, sentado na lombada, o mantinha em sossego,
afugentando os campónios quando, estridente, fazia ecoar a presença,
atarantando os cavalos da embaixada. Garcia de Resende tombou inclusive quando
o seu alazão se desgovernou, assustado, projectando-o numa poça enlameada, para
regalo de Tristão da Cunha, que riu a bom rir, troçando do pobre secretário.
Entre
satisfação geral, com os cardeais abismados e a criadagem receosa, a comitiva
enfim entrou no Castelo de Sant’Angelo, com os lusos ricamente paramentados e
os tesouros expostos em louvor do Santo Padre. Ainda não refeitos do espanto,
provocado pelos leopardos e pelos elegantes cavalos árabes que desfilavam
altivos, perante o assombro geral abriram-se alas para o visitante mais
vistoso: o portentoso elefante, paramentado e guiado pelo mahout, com Fernão Pires escoltando a cavalo, lançando moedas de
ouro e com o estandarte do rei de Portugal desfraldado ao vento. Atónita, toda
a praça estremeceu, e quase dispersou, quando o proboscídeo soltou um guincho
tonitruante, deixando os guardas suíços temerosos e em posição de fogo.
Para espanto
geral, à ordem de Tristão da Cunha, o elefante ajoelhou três vezes, em sinal de
reverência, e depois, obedecendo a um aceno do tratador, aspirou a água de um
barril com a tromba, e espirrou-a sobre a multidão, deixando aterrados os
cardeais.
A medo, o
Senhor dos Altares foi ao encontro do Senhor da Selva, e Tristão da Cunha fez
então a entrega da besta ao romano pontífice:
-Santidade, El-Rei D. Manuel, meu senhor, fez mercê de
vos enviar o mais pujante dos animais, encontrado em nossas e vossas terras das
Índias. Um elefante, Hanno, o nome porque atende. Apesar de ser corpulento,
conta só quatro anos, poucos para a sua espécie. Veio de Cochim até Roma, para
Deus Nosso Senhor servir e reverenciar!
A um sinal
do tratador, o elefante ajoelhou a receber bênção do Papa, que o olhou,
inseguro, não fosse enervar-se.
Garcia de
Resende registou o momento. Séculos depois do grande Aníbal, o poderoso rei de
Portugal, senhor de remotas e desvairadas gentes, e também ele Grande Elefante
dum Império onde o sol nunca se punha, deslumbrava a Sé Apostólica e erguia o
nome luso às portas da Cidade Eterna.
À ordem do
Pontífice, o camerlengo conduziu Hanno para um improvisado picadeiro, à sombra
de igrejas e basílicas. Afeiçoado, mais tarde o Papa mandou erigir-lhe estábulo
no Borgo de Sant’Angelo, e com o tempo participou em procissões e desfiles,
recordação da nação portuguesa, grande e pujante nos mares, como Hanno entre os
romanos.
No Paço de
Sintra, recebida a notícia do deslumbre provocado, o Venturoso regozijou-se,
triunfante, enquanto da varanda lançava ao fosso uma lebre, a alimentar um
tigre do Malabar. Deus punha e o rei de Portugal dispunha, num mundo onde o mar
oceano era ainda um imenso lago português.
Sem comentários:
Enviar um comentário