Aterrei
em Cuba no verão de 1997, após uma viagem nas Linhas Aéreas de Moçambique, com
a curiosidade de descobrir o socialismo tropical que um grupo de barbudos
impusera em 1959 e de que a minha memória ia recheada de imagens da juventude,
da iconografia do Che às canções revolucionárias e de incentivo à luta. A
primeira imagem foi a de um mergulho no passado: apesar do clima quente e
húmido, o aeroporto era um velho barracão, com televisões a preto e branco,
alguns carros dos anos cinquenta que faziam lembrar alguns filmes americanos,
turistas alguns já. Estávamos no “período especial”, quando Cuba privada do
apoio russo após a perestroika ensaiava abertura no turismo e onde
paradoxalmente todas as trocas eram feitas em dólares do inimigo yankee.
Havana
transpirava de calor no fim de tarde, com os ritmos do danzon invadindo as vielas, velhas de
charuto arengavam e abordavam os turistas
nas calles do Malecón, numa terra onde o Che aparecia como o Cristo Redentor no altar da Revolução e a voz
de Omara Portuondo, Ibrahim Ferrer e Compay Segundo soava em alguns rádios roufenhos como um passado nostálgico
mas vivo.
Não foi
sem emoção que peregrinei nos santos lugares onde a Revolução fora prometida
como terra do leite e do mel, ainda para mais com águas a vinte nove graus e
orgíacos mojitos castigando o corpo na noite do Caribe. Como suspeitava, a
revolução não vingara para lá do discurso inflamado, um povo alegre e culto mas
pobre pululava nas ruas, serpenteando em torno dos turistas e dos dólares. Prateleiras
vazias nas lojas e frágeis balsas para Miami eram os legados do socialismo, à
mercê de tubarões na fuga para a liberdade. Comprei Cohibas e Havana Club,
T-Shirts do Che, músicas do Che, livros do Che, o Che D. Sebastião dos trópicos,
espectro dum socialismo que há-de vir, o
patriarca Fidel vigiava ainda sentinela,
cadáver dum socialismo latino americano. Dengosas mulheres da vida desafiavam turistas
na praça da catedral, corpos escaldantes por cinco euros, sida não incluída, as
trovoadas tropicais açoitavam o mar e despertavam agitados cardumes de peixes
na calmaria da península de Ancón.
Por
essa altura, alguns patos bravos de Sintra, pedreiros de gravata enriquecidos
no boom da construção civil, enchiam os resorts e ostentavam charutos que lhes
conferiam o ar de gringos europeus e novos ricos, chingando Fidel nos lobbys dos hotéis, ante o sorriso complacente mas silencioso dos empregados, muitos
engenheiros e arquitectos, mas a quem o ordenado real de 37 dólares mensais e uma
magra caderneta de senhas para o racionamento pouco ajudavam, encontrando alternativa
nos hóteis de Varadero e Cayo Largo
A noite
do Tropicana pareceu-me demasiado turística, melhor a simpatia dos pequenos
bares na zona velha, onde pontificavam miúdos pedindo lembranças, atraídos
pelo dólar salvífico. Um placard que retive proclamava, seguro.”200
milliones de niños en el mundo duermen hoy en las calles.Ningún es cubano”.
Recordo um povo alegre e musical, o som inebriante de El Bodeguero, de Richard Egues, a minha música cubana favorita, as trovoadas
tropicais no mar do Caribe, as noivas de Cienfuegos, o calor e a canchancha de Trinidad, cidade de
escravos e da cana do açúcar, os supermercados vazios as águas cristalinas e tépidas.
Uma
nota de humor: num bar de colmo na Marina Hemingway, certa noite, com uma tempestade
tropical a aproximar-se, num palco improvisado três cegos com óculos escuros
cantavam os hinos da revolução, anunciando os amanhãs que cantam a três
dólares, solo monedas, compañeros, non
tarjetas. O som familiar das canções que
galvanizado entoara em anos já passados, tornaram-nos nostálgicos. Três
mojitos e seguímos embalados com “tu, querida presencia,
Comandante Che Guevara”.
No fim,
chapéu circulando, e lá caíram três dólares para a revolução, cegos, mas dignos, e
com talento, pensámos, entregando os solidários dólares. No dia seguinte,
após um jantar num paladar, espécie de restaurante em casa de famílias a quem
ao de leve era permitido o que hoje chamaríamos de empreendedorismo, e onde
comemos lagosta grelhada na chapa e apanhada na hora, voltámos a um bar do
Malécon. Sem óculos escuros e com umas camisas estampadas, lá estavam os três cegos da
marina, vendo perfeitamente e cantando, “hasta la victoria, siempre”.Nada
como Cuba e a Revolução para até os cegos voltarem a ver, milagre do
socialismo real a três dólares por cabeça.
Também lá estive em 2001.
ResponderEliminarComo fã incondicional da sua escrita, ninguém poderia fazer uma descrição mais fiel.
Cada vez que vejo algo sobre CUBA, revivo sempre essa minha viagem. Pela sua descrição, teve muitas semelhanças mas, já com algumas melhorias no que diz respeito a condições para os turistas.