quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O Casino de Sintra

Sob projecto de Norte Júnior e iniciativa de Adriano Júlio Coelho e da sua Sociedade de Turismo de Sintra, teve início em 1922 a construção do Casino de Sintra, inaugurado a 30 de Julho de 1924.



Grande e moderno equipamento de lazer, edificado na zona então ainda não consolidada do Bairro da Estefânea, ali ocorreram grandes espectáculos e eventos sociais. Relembre-se em 1926  a actuação do Orpheon de Sintra, dirigido pelo maestro Luís Silveira e Mário Duarte, da cantora lírica Vix, de Auzenda de Oliveira, Fernanda Coimbra, ou Ercília Costa, entre outros, nos catorze anos em que funcionou sob direcção da Sociedade.

Encerrado em 1938, mas não desactivado, ali decorreram depois inúmeros eventos e jogos florais, até que em Fevereiro de 1954, e depois de muitos avanços e recuos, a Câmara o adquiriu por 800 contos (hoje 4000 euros), voltando a registar alguma pujança, com bailes e festas de Carnaval, nalgumas das quais participaram Simone de Oliveira, Maria José Valério e outros populares artistas da época.
Adaptado para repartição de Finanças e Registo Civil, durante alguns anos, tendo aí acolhido igualmente a Escola Preparatória D.Fernando II, a partir de 1996 o edifício registou um novo fôlego e foi recuperado pelo arquitecto João Paciência para alojar o Centro de Arte Moderna, sendo na altura celebrado um protocolo que permitiu albergar parte da colecção do empresário Joe Berardo.

Inaugurado a 17 de Maio de 1997, durou pois enquanto o comendador ali manteve parte do seu espólio, que retirou definitivamente em 2011, tendo as instalações desde então ficado subutilizadas, acolhendo apenas as exposições do World Press Cartoon.
Rebaptizado agora como Casino de Sintra- designação tradicional que os sintrenses nunca deixaram cair- nele se prevêem novos usos, sob a égide da SintraQuorum, prometendo-se a partir de Novembro uma programação regular de eventos culturais, com destaque para exposições. O primeiro evento, a exposição "DIIS MANIBVS-Rituais da Morte durante a Romanidade", do Museu Arqueológico de Odrinhas, apresentará materiais provindos de escavações no território de Sintra, e para o início de 2013 está já prevista uma exposição relativa ao Ano do Brasil em Portugal. Exposições temporárias internacionais de ‘primeira linha’ e congressos de grande dimensão, que até ao momento, não têm qualquer espaço no município que os possa acolher, estão na mira da SintraQuorum, que aponta as vantagens competitivas de Sintra para tal opção. 
Em minha opinião, a revitalização cultural de Sintra passa pela criação de sinergias e parcerias entre os agentes culturais dispersos, apostando num conceito de cidade criativa e aprofundando a conjugação de 3 linhas de força, a que Richard Florida no seu livro The Rise of the Creative Class chamou os 3 T:Talento,Tolerância e Tecnologia. Mas para quem começa por baixo, os passos a dar passam não pela proliferação de eventos culturais importados de fora, mas antes de mais e a fim de promover um espírito grupal, pela partilha e disponibilização de espaços como este para serem utilizados também como centros de criatividade, encontro e troca de informações, como os ingleses fizeram com os Fab Labs, pequenas fábricas, ateliers e estúdios onde se possam instalar associações e pequenas empresas, fomentando assim uma economia criativa, com equipamento digital base, maquinas de impressão, equipamento gráfico, nas mais diversas áreas e onde possa ser promovida a troca de informação. Este conceito catapultou já cidades antes adormecidas para novos paradigmas, como Sheffield, em Inglaterra, ou Helsínquia, com o seu Design Distrit. Em Amesterdão, o envolvimento de 9% da população em actividades e indústrias criativas ajudou ao crescimento do emprego, na Suécia, a instalação de uma escola de artes circenses em Botkyrka, a 20 km de Estocolmo originou um centro de criatividade chamado Subtopia, e estes são exemplos virtuosos que poderiam e deveriam ser seguidos.
Chamar quem trabalha na ciência, arquitectura, design, moda, música, tecnologias e potenciar sinergias é o desafio que um espaço privilegiado como o “novo” Casino de Sintra poderia agarrar. Pegue-se igualmente no Sintra-Cinema, por exemplo, ou em algumas instalações industriais encerradas, e com um mínimo de condições de funcionamento, nada de faraónico ou de fachada, junto com o Casino, promova-se a junção e promoção dos criadores e criativos. A Cultura também contribui para o PNB e com relevo, como um recente estudo de Augusto Mateus o demonstrou. Sintra Criativa, pegando em modelos já estão testados, essa sim, pode ser uma Marca vencedora, apostando numa verdadeira Economia da Cultura e num território onde existem condições naturais, população jovem e factores de localização que podem gerar efeitos multiplicadores. Uma forma também de sair da crise.
Cabe ao sector financeiro igualmente apoiar nesse âmbito empresas startups de índole cultural, a quem as firmas gestoras de fundos de capital podem ajudar com conhecimentos de gestão, acesso a redes de negócios e ajuda à obtenção de competências no posicionamento estratégico para a venda de produtores criativos inovadores e atracção de colaboradores. Tais clusters e tais apoios são essenciais para estancar a fuga de cérebros,  e só um ambiente de empreendedorismo pode reverter.
Deixa-se assim a sugestão de que, saudando a nova vida do Casino de Sintra, este, além de espaço expositivo tout court, possa igualmente interagir com a comunidade criativa, potenciando junto desse nicho as vantagens competitivas locais, para uma cultura viva e actuante, que chame ao exercício e fruição críticas e não opte meramente por uma visão contemplativa dos espaços.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Noite de Halloween em Galamares



Amarela e castanha, finalmente a natureza retomava as rotinas e cheiros de finais de Outubro. Para a Gracinda, velha médium de Galamares, por muitos levada a sério em conselhos e mezinhas, os espíritos dos mortos voltariam nessa altura, predadores dos vivos para neles viver no ano seguinte, dissera-o à Virgínia, durante uma sessão espírita, onde, por mil euros, a pusera a “falar” com o defunto Inácio. Zombando, ainda assim cautelosos, os homens temiam sempre esses dias de Outubro, refugiando-se na água-pé e castanhas, bem mais espirituosos que os propalados espíritos agoirados pela velha, perita em pragas, em tempos providencial parteira da aldeia. Chegava o Dia de Todos os Santos e dos fiéis defuntos, os velhos rumariam aos cemitérios, os mais novos, continuando a tradição, pediriam pão por Deus, em renovado e ruidoso ritual.
Na noite de 31 de Outubro, agora também do recente e celebrado Halloween, Hugo e Jaime montaram-se na scooter a caminho duma festa em Cabriz, na casa da Vera, combinada com colegas do liceu. Vestidos a preceito, de bruxas e vampiros, uma abóbora retalhada com velas no interior adornava o muro da casa, antevia-se uma noite de copos, fria, mas aquecida pelo álcool, e algum “bruxedo” mais noite dentro, depois de algumas providenciais dentadinhas no pescoço. A noite estava fria e sem vivalma, animados, tomaram o caminho do Torrado pelo atalho, silencioso e perturbador, e apenas alguns rotweilers ladravam, à passagem, sentado na scooter atrás de Hugo, Jaime com uma capa preta, acossava ainda mais os cães inquietos, segurando as garrafas de vodka com que a festa animaria. Junto ao moinho em ruínas, a scooter em segunda mão acusou o peso, e qual burro velho, “pifou”, a meio do caminho.
-Bolas, é preciso azar, meu, esta treta não quer andar mais!- rosnou Hugo, os olhos pintados de negro, mais parecia um Zorro de segunda classe, montado numa pileca cansada - acho que por hoje esta cena não vai dar mais! -conformou-se, dando um pontapé na roda da motorizada.
-Fogo, meu, ganda cena! Vamos a pé, daqui lá é pouco mais de meia hora! Amanhã a ver se o Leonel vê o que se passa! Bora!
Encetado o caminho a pé, ainda mandaram um SMS a avisar do sucedido, nenhum dos amigos, porém, estava de carro, que os pudesse ir buscar. À passagem pela casa abandonada, onde em tempos morara o velho Vicente, um cão preto, rafeiro, saiu-lhes ao caminho. Manso, escanzelado, ali ficara desde a morte do velho amolador três meses antes, vadiando e ladrando aos passantes, conhecidos de longa data:
-Tejo, anda cá!- gritou o Jaime- vai para dentro, meu, andas às cadelas? Vai, vai!
O cachorro, sem dono agora, ainda os acompanhou uns metros. Em noite sem estrelas e falhado o candeeiro, já perto da Várzea, um repentino breu envolveu-os, entre a folhagem densa e as árvores frondosas que antecediam a povoação. Ao longe, uma luz, em casa da Gracinda, subitamente apagou-se, a velha recolhia por certo, no meio das suas velas e mesas pé de galo.
Um pouco mais à frente, uma voz roufenha cantava um velho fado de Marceneiro. Era o Seca-Adegas, bêbedo como sempre, a pé para casa. Um vulto indistinto seguia-o, a poucos metros, cambaleante mas em silêncio, à primeira não viram quem fosse, algum parceiro de copos, o Seca, borracho como sempre, voltaria aos copos no tasco do Sérgio na manhã seguinte. Ruborizado, cantava, com voz de cana rachada, à vista dos dois jovens mascarados, ensaiou um ar de surpresa e empunhou a garrafa de tinto como se fosse uma espada em riste:
-Quem são vocês os quatro, homens de Deus? Se é para roubar vêm enganados, daqui não levam nada!
-Pôe-te lá manso, ó Seca, somos nós não nos reconheces?
O velho ébrio cerrou os olhos, e agarrou-os pelo ombro, mudando de atitude, o bafo a aguardente quase contagiante:
 -Oi, rapaziada! Então onde é o Carnaval? Não pagam um copo aqui ao vosso amigo? Estou com uma sede danada, quase não bebi nada hoje…- balbuciou, totalmente borracho.
-Vai-te mas é deitar, meu!- afastando-lhe o braço do ombro, Jaime procurou livrar-se do bafo e do cheiro a bosta, não devia tomar banho há muitassemanas- então e esse aí quem é?
-Esse quem?- questionou, meio zonzo- não está aqui ninguém, só vocês!...- arengou.
-Aquele ali, com um casaco pre…
Antes que terminasse a conversa, um objecto contundente caiu brutalmente sobre a cabeça de Jaime, decepando-a, e deixando o resto do corpo desgovernado a cair, o fato de vampiro jorrando sangue estrada abaixo. Hugo ficou gélido. Sem que o Seca-Adegas reagisse, o vulto chegou-se à frente, para zona iluminada, onde, boquiaberto, Hugo reconheceu o rosto desfigurado do Vicente, lívido, coberto de terra, segurando um machado de cortar lenha. Atónito, esfregou os olhos. O Vicente morrera três meses antes, como podia estar ali?.
Olhando o Vicente e o alheado Seca-Adegas, viu chegar o Tejo, ladrando de contente, e a roçar-se no dono. Sem dizer nada, desatou a fugir, com a capa de vampiro ondulando, embrenhando-se no mato e abandonando o corpo do amigo na viela escura.
Ao passar pela casa da Gracinda, esta estava à porta, segurando um candeeiro a petróleo, como se já esperasse por ele. Com um esgar sórdido, apontou-o com a mão enrugada e carcumida e sentenciou:
-Acreditas agora no regresso dos mortos? O Vicente veio buscar a sua presa. Para o ano, será o Jaime quem virá buscar a sua! E rematou, ameaçadora:
-Assim é, na Noite das Bruxas. Hoje e na noite dos tempos!- e voltando para dentro apagou a luz, desaparecendo na escuridão da isolada casa do Torrado.
Em Cabriz, os amigos, já eufóricos com a vodka preta e à luz de velas, iam fazendo a festa, divertidos. Vera estranhou a demora, e comentou com Pedro, disfarçado de Scream:
-Onde estarão aqueles dois? Já tinham tempo de cá estar, meu!
-Não te preocupes, já devem estar com uma de caixão à cova…
Lá fora, a serra vigiava perturbadora, e a noite silenciosa escondia mais um crime de 31 de Outubro. Alheio e brincalhão, o Tejo ladrava às cadelas no caminho do Torrado, como sempre, desde então, lá estará logo à noite...




Os dinossauros agitam-se

A lei que regula a limitação dos mandatos autárquicos (Lei 46/2005 de 29 de Agosto) estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais, e introduz um limite temporal ao exercício de determinadas funções, pelos seus presidentes e de forma clara: “1. O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos (…)”; ou seja, as funções destes autarcas só poderão ser exercidas pelo período máximo consecutivo de 12 anos.
E o nº 2 é mais claro ainda:. “O presidente de câmara municipal e de junta de freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido” — de presidente de câmara ou de presidente de junta, não de presidente daquela câmara ou daquela junta.
Assim, os alvos desta Lei não poderão candidatar-se às funções que vêm exercendo, caso concluam o terceiro mandato consecutivo. Nem nas autarquias onde estão, nem em qualquer outra, porque o que se verteu em lei, foi a restrição temporal das funções, independentemente, do local onde as mesmas sejam exercidas.
Ora se a lei for cumprida, mais de metade dos actuais presidentes de câmara não poderá manter-se em funções, abrindo a possibilidade de mudanças significativas no mapa autárquico, devendo os actuais respeitar um período de nojo de quatro anos.
Muitos dos actuais autarcas, querem, contudo, ir pregar para outras freguesias, dedicando-se agora a esotéricas leituras da lei, algumas das quais passam por considerarem tal norma uma iníqua restrição do seu direito à presidência perpétua, atravessando partidos das mais variadas extracções, como se 12 anos (alguns 36…) não fossem suficientes, e a ética republicana da alternância não impusesse a necessidade de regularmente refrescar os lugares, não só para permitir novas ideias e novos protagonistas, como para obviar à aquisição de vícios e resvales perigosos que o exercício do poder sempre atrai.
Depois do flop da alteração da lei eleitoral autárquica, tudo aponta, dadas algumas pré-candidaturas no terreno, que essa regra vai ser contornada. “Era o que mais faltava!”, disse recentemente o primeiro-ministro, considerando que isso diminuiria os direitos que a qualquer cidadão estão cometidos para intervir na vida cívica. Está pois aberta, à semelhança do futebol, a época das transferências, onde ao amor por um concelho sucederá uma súbita e assolapada paixão por outro logo ali ao lado, sempre com espírito de missão e com prejuízo da carreira ou vida familiar, claro, mas o espírito de servir e a abnegação a tal obrigam... Vamos pois com toda a probabilidade assistir nos próximos tempos a um ruidoso festival aéreo no qual  pára-quedistas de todas as cores vão saltar por todo o país, levando a sua competência, dedicação e amor a circunspectos munícipes que, como de costume, estranharão primeiro e entranharão depois.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Defender o património de Sintra é...



Defender o património, nos tempos que correm, é mais que nunca  um dever cívico,  porque, avaras, as verbas encolhem, e o interesse público também. Para os militantes dessa causa, este deve porém ser um momento de vigília, e de não deixar que a frágil árvore desapareça na floresta densa de dificuldades, cortes e silêncios motivados pela ditadura da dívida, ou abocanhada por um qualquer Leviathan.
Defender o património, nestes dias cinzentos (dias de Sintra, a nostálgica) é estimular a cidadania e as boas práticas; é pugnar pela educação escolar como plataforma para o seu conhecimento e propagação; é descolonizar a memória de imaginários estafados, acolhendo visões de património, que incluam o imaterial e o das vivências, amanhã seguramente tradições; é resgatar a auto-estima e o “sentimento de nós”, num tempo de cerrar fileiras, e estimular a identidade que constrói a nossa idiossincrasia e peculiar forma de estar no mundo; é lançar pontes e massa crítica, mediar entre o poder público e as comunidades, num trajecto virtuoso que acentue o pathos de ser português, e sê-lo de modo universalista.
Defender o património é zelar por restauros no Palácio de Queluz, repor a estatuária nos Capuchos, repensar o estacionamento e a sinalética nos lugares notáveis, pensar global para agir local, devolver vida e criatividade ao Centro Histórico, à Estefânea, às pegadas de Carenque ou à casa da Gandarinha.
Defender o património é estar atento, ser parceiro com a lealdade de criticar, acompanhar as obras e não depois das obras, chamar a agir e interagir, actuar virtuosamente e não como agente de bloqueio ou de egoístas vaidades, atrás do protagonismo ou da negação pela negação.
Defender o património é revitalizar a Quinta do Relógio e o Hotel Netto, a Quinta D.Diniz e o Rio do Porto, repor o fontário manuelino e a cúpula do Café Paris, intervir na Peninha e rever o preço dos bilhetes, instalar industrias criativas e empresas startup, residências artísticas e artistas sem ser a recibos verdes.
Defender o património é ser ouvido antes das podas e das plantações, levar os utentes para a gestão das zonas verdes, implementar um Plano Verde pró-activo, obviar arborícidios e deixar crescer as espécies endémicas, monitorizar a pegada ecológica e os ecossistemas milenares, ouvir o som da água dos riachos e o coaxar das rãs, o voo dos morcegos e a seiva das araucárias, a frágil beleza das camélias e a portentosa guarda de honra dos plátanos.
Defender o património é defender o direito ao silêncio dos caminhantes, o cheiro da terra húmida, o pôr do sol na Roca ou o palatal degustar dum travesseiro, dum ramiscal néctar ou duma noz de Galamares.
Defender o património é divulgar e proteger os vestígios arqueológicos, identificar os tholos, proteger as antas, recuperar as fontes de água, classificar, promover classificações novas e divulgar as mais antigas.
Defender o património é tocar a rebate no campanário, sangrar a pena revoltada, cavalgar a comunicação com a serenidade das emergências para  tranquilidade das consciências, visitar, escrever, protestar, ajudar, ouvir e ser ouvido, passar palavra, dar o murro certeiro e saudar o adversário, por vezes  a inércia, outras a ignorância, as mais das vezes a incúria ou miopia.
Defender o património é vivê-lo e com ele conviver, como se cada peça, cada cheiro, cada sabor ou recanto fossem a mais preciosa relíquia deixada pelos nossos avós e que os nossos netos hão-de um dia receber, estranhando primeiro, orgulhando-se depois.
Defender o património é pugnar pelo valioso presente que resultará da aliança da memória com a auto-estima, da singularidade com o talento, da polis com os seus moradores, dos conventos, palácios e moinhos, com a serra, as tapadas ou os lapiás.
Defender o património é aguarelar os chalés de Raul Lino e o traço de Norte Júnior e Adães Bermudes, a pedra esculpida de José da Fonseca ou a esculpida palavra do Eça, Francisco Costa, M.S.Lourenço ou Gabriela Llansol.
Defender o património é recordar os que trilharam o caminho, erguendo a tocha dos seres maiores, dos eremitas jerónimos ao solitário Gerard de Visme, do senhor da Penha Verde aos novecentistas bretões, cavaleiros da finança e poetas proscritos, do rei artista ao Carvalho da Pena, jardineiros de Deus na fértil horta de Klingsor.
Defender o património é chamar à formatura Cardim Ribeiro, Vítor Serrão, João Cachado, Adriana Jones, Francisco Caldeira Cabral, Diogo Lino Pimentel, António Lamas, Gerald Luckurst, Maria Almira Medina, Emma Gilbert, Hermínio Santos, Eugénio Montoito, Pedro Macieira, Emília Reis, Cortêz Fernandes, Fernando Castelo, Teresa Caetano, João Rodil, Inês Ferro, Cruz Alves, Ruy Oliveira, Martins Carneiro, Pedro Flor, Jorge Trigo ou Carlos Manique, entre os muitos que em boa hora renderam Viana da Mota, Mário de Azevedo Gomes, José Alfredo, Joaquim Fontes, Silva Marques, António Medina Júnior, Félix Alves Pereira, Octávio Veiga Ferreira, Dorita Castel-Branco, Milly Possoz, Carlos Viseu ou Anjos Teixeira, numa lista sempre incompleta e várias vezes anónima.
Defender o património é poder ver teatro, Alvim, Rui Mário ou Zé Sabugo, Susana Gaspar e Paulo Cintrão, Gil Matias e Paulo Taful; escutar grupos corais com Miguel Anastácio ou Pedro d’Orey, o Conservatório e os Bombos, ler Miguel Real e Raquel Ochoa, apreciar a pintura de Edmundo Cruz, pensar Cynthia com Jorge Menezes, desfiar Orbesirindo e novas sonoridades, reiventando a arte em narrativas dum presente capturado e desbravando  patrimónios de afectos.
Defender o património é estar vivo. Contra alguns, algumas vezes, por todos quase sempre. Fundamentalmente, por Nós.