sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O papel dos agentes culturais, segundo José Gil


Respingamos algumas considerações sobre a produção cultural na análise lúcida de José Gil:

1) «Na sociedade portuguesa actual, o medo, a reverência, o respeito temeroso, a passividade perante as instituições não foram ainda quebrados por novas formas de expressão da liberdade (...) O Portugal democrático é ainda uma sociedade de medo, e é o medo que impede a crítica” (...) raros são aqueles que conhecem o pensamento livre.»

2) «Não há espaço público porque este está nas mãos de umas quantas pessoas cujo discurso não faz mais do que alimentar a inércia e o fechamento sobre si próprios da estrutura das relações de força que elas representam. Os lugares, tempos, dispositivos mediáticos e pessoas formam um pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção.»

3) «Se vamos a um espectáculo de um coreógrafo que vem a Portugal, gostamos de dança e descobrimos qualquer coisa de novo, uma parte daquele espectáculo deveria derrubar alguma coisa na nossa vida e mudar a nossa vida, descobrir espaços diferentes, maneiras de falar e de comunicar, etc. mas o que acontece é que tudo isso fica para dentro. Nós gostámos muito, tivemos mesmo em êxtase, mas ao sair do espectáculo voltamos para casa, gostámos, mas não acontece nada... O feed back nos jornais é geralmente uma crítica sempre descritiva porque tem-se medo de inscrever. Não se ousa criticar porque se tem medo (...) A arte é uma questão privada. Não entra na vida, não transforma as existências individuais.»

4) «A não-inscrição continua hoje. O que acontece no nosso país é sem consequência. Nada tem efeitos reais, transformadores, inovadores, que tragam intensidade à nossa vida colectiva. Nestas condições, como participar no aprofundamento da democracia ?»

- Quem melhor poderá contribuir para as necessárias e urgentes alterações políticas, sociais e culturais senão os próprios agentes culturais, na sua diversidade de interesses?

- E porque é que isso não tem acontecido de forma concreta, estruturante e vigorosa ?

- Estaremos já submersos num tal "síndrome do pânico", que perdemos a orientação e o sentido da "boa vida" urbana ?

- O que significa "autonomia" e "liberdade" cultural, hoje, aqui e agora?

- Somos súbditos domesticados e obedientes ou cidadãos livres?

- Estaremos realmente sob o efeito de biopolíticas e biopoderes cujo objectivo de governação é a «desactivação da acção» ?

- E se é verdade que a biopolítica actual está em estreita conexão com as "indústrias criativas" (trabalho imaterial, bens imateriais, ideias, formas de comunicação, relações humanas, precariedade laboral, etc...) estará a vida cultural, afectiva e espiritual reduzida à retórica oportunista e eleitoralista dos nossos actuais governantes ?

- .... classes criativas, cidades criativas, bla, bla, bla...sim sim, claro...mas como? Assim de repente como quem faz magia e copia modelos importados à pressa? E o resto, as condições de cultura? A democracia participativa? O alargamento dos públicos da cultura? A democracia cultural? Os serviços públicos de cultura? A efectiva democratização da cultura e da criatividade? etc...etc...sem saltos "quânticos", portanto!

- Qual é acção cultural pertinente e necessária nas circunstâncias actuais ?

- Como estimular a auto-organização e a acção colectiva em rede nos sistemas culturais urbanos, designadamente nas cidades de média dimensão?

- Devem as Câmaras Municipais (do alto do seu abusivo protagonismo) ser programadoras de eventos culturais ad-hoc? Ou antes pelo contrário assumir um papel de catalisadoras e facilitadoras dos processos criativos, artisticos e culturais promovidos pela sociedade cívil?"

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Sintra deambulada


Em espectral viagem, partida, sabendo a serra ao lado, a milenar guardiã e larvar berço de lendas e histórias, de mouros e cristãos, visionários reis e viajantes, aristocratas e feiticeiros, espantados com o renovado verde, em presépio aninhando casas, palácios, fontes e miradouros. Em volta batem ritmos e matizes, surpresas e ilusões, alunos chegam para a escola que recomeça, funcionários para o serviço, senhoras para as compras, reformados para o jardim, agrilhoados contribuintes a prestar o dízimo e utentes contando cêntimos para pagar a água.
Fugindo da selva de intrusivos carros e denudados arrumadores, é a Partida para Shangri-La, deixando para trás os anzóis do Brancana e os seguros do Catarino, a garagem agora azul, a Ideal e o prateado Faria, antes da Vila e dos skaters invadindo a Estefânea da Marrazes e Simões, do Tirol e Monserrate, dos chineses dos alguidares e das velas, e também dos bancos, essas casas de usura predadoras dos fracos.
O Carlos Manuel do povo fechou, e, aristocrático, vestiu roupa nova, casa de ópera e Cadaval, desaparecida plateia de filmes a cinco escudos, do John Wayne ou Cantinflas. E também de Maria João Fontaínhas e Alvim, operários da cultura do tempo em que não era proibido sonhar. Também o casino fechou, sinuosa roleta o entregou em tempos a coleccionadores de metal agora debandados, pálido e amarelecendo.
No trilho da vila, chamado pelo silvar ventoso e perfumado da serra, a Correnteza, miradouro e varanda, parapeito de amores e de pombos, do Larmanjat ninguém já lembra, ondulante e inseguro. Como sempre, passam turistas e mirones, a descobrir o éden terreal, e rostos de muitas estações, baptizados e funerais, festas do cabo e da vila, cúmplices envelhecendo com a serra, fria no Inverno e cacimbada no Verão.
A viagem espectral aproxima-se do burgo, ecoa o som cadente dos cavalos, pretérita lembrança de reis e burgueses, de Maias e Calisto Elói, de Garrett e Zé Alfredo, Anjos Teixeira ou M.S.Lourenço. Vernacular, o torreal município é porta de entrada e fronteira, o leão de pedra o guardião, palpitantes os sentidos à vista da miríade encantada, a curva do Duche, o canelado odor da Sapa, o Valenças e as mansões, a água da fonte mourisca, jorrando cristalina. E o Grande Maior, da feiticeira Llansol, as camélias de Nunes Claro, o Carvalho da Pena cavalgando as nuvens, druida e fauno da serra e dos lagos.
Ofegante chega enfim a vila, utópico altar, lusitano reino dum palpável Parnasso. Não se vêm, mas escutam-se, Maria Almira, Rui Mário, Jorge Menezes, generosos actores de muitas gerações, danças medievais e bailes das camélias, os vitoriosos patins de Raio e Cipriano. E gulosos se saciam os sentidos com segredos de açúcar em orgias do paladar, à sombra tutelar do Paço.
Apurados os sentidos, a escadaria enfim, para hipnotizados mirar o castelo e invisíveis ogres lançando caldeirões de azeite, catalépticas bruxas invadindo a noite em invisíveis vassouras, e em ruidoso silêncio, escutar os passos dum rei prisioneiro, o ecoar das festas joaninas, Camões lendo para o jovem rei alucinado, a condessa d’Edla e Viana da Mota, acorrendo ao repicar do sino em S. Martinho.
Invisíveis faunos e visíveis heróis, incensados e perdidos, esperançosos e idealistas, tomam lugar enfim no camarote do Tempo, escoltados pela Nação dos Pássaros, as camélias e as fontes todos abraçam, anunciando o lauto festim da noite, à sombra da argêntea Lua.É Cynthia e o seu sortilégio.

Nota: Este texto é dedicado à memória de Raimundo Bulhão Pato, desaparecido do mundo dos vivos em 24 de Agosto de 1912, fez agora 100 anos. 

sábado, 25 de agosto de 2012

Volta do Duche


Formigando vêm e vão, a medo torneando o Grande Fosso onde banhos purificadores hoje fantasmas espreitam, miram estátuas, casas, o verde esmagador, frémito da natureza perto do burgo encantado. Anárquicos tiram fotos, com palácios, com árvores, com eles, registo furtivo do dia em que bafejados contemplaram a eternidade, de carro, de trem, a pé, de mão dada, olhar em torno, plantas sorrindo, garbosas e ternas, loquazes a manjar apetitosos doces. Pigmeus, privaram com os duendes e as secretas sentinelas da Floresta Feitiçeira: a sacerdotisa Llansol e o Grande Maior, o Zeus das árvores encimado pelo céu, logo um asténico Cruges, pena de pato aflita e trepidante, Herculano taciturno, Nunes Claro jardineiro de almas com o regador da palavra, todos guardados pelo mestre Carvalho, fleumático mago da Pena, vigiando da alameda.
Sigurd, Camões, Beckford, Byron, Zé Alfredo, M.S.Lourenço, condenados à Vida Eterna, já prestes se acomodam no Paço para o Banquete das Almas, Viana da Mota orquestrando, a medo os vivos invadindo o Templo, bafejados pela mercê dum fugaz usufruto da natureza generosa, onde só os Noviços da Vida têm entrada relâmpago, e com retorno .Cai a noite, um derradeiro ressoar de cascos dum cavalo branco tornejando o Parque quebra o torpor, logo impacientes gárgulas ganharão vida para a milenar patrulha dos cumes pedregosos e das chaminés fumegantes. O homem das castanhas recolhe, o cheiro invade as narinas com o bálsamo revigorante, qual estupefaciente poderoso. Ao longe e já perto, as duas chaminés, da lauta cozinha esfíngicos elmos acenam, num lento despedir, para à noite chegarem novos companheiros, esvoaçantes, temporais, tangíveis.
Um último relance, e partir. Distante, uma harpa sequestrada numa casa onde a luz mortiça quebra o negro da noite, despede-se do dia lacrimejando torpor, capturando em silêncio o cavalo inerte, e logo o regresso aos trens, à finitude, à vida sem viver, sobrevivente de sonhos, órfã de destinos, carente de Ser.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Ler ou reler Miguel Real



Entre 2004 e 2005, escreveu Miguel Real, escritor e ensaísta teimosamente “sintrense”, dois frescos literários que não é demais realçar e sugerir como leitura a quem não leu, tendo mesmo uma ligação lógica a leitura seguida das duas obras, pelos pontos de intersecção que aí se detectam.
Em A Voz da Terra (QuidNovi, 2005, Prémio Fernando Namora 2006)Miguel Real retrata de forma apaixonada e impressiva o Portugal de Setecentos, clerical e enfatuado, vivendo do ouro do Brasil, com uma nobreza ociosa e um clero corrupto, marcado pela acção ainda discreta de Sebastião José Carvalho e Melo. É a esse Portugal que chega do Brasil em vésperas do terramoto para duas missões secretas Júlio Fernandes (Julinho), acompanhado do seu escravo Florentino, conseguindo Miguel Real de forma magistral descrever locais, atitudes, arquétipos e perfis, onde não faltam personagens-tipo como o cónego Formigão, glutão e lascivo, Porão Escorço, o esbirro da repressão, os Peixotinhos e as Esmeraldinhas, amigos de infância do Brasil e seguidores das ideias de Sebastião José, os comerciantes ingleses Smith ou a velha nobreza representada pelos condes de Vilavelha. Pelo meio, Lisboa suja e esconsa, de missas e cristãos-novos silenciados, de touradas e procissões. Dividido entre um Brasil que lhe tirara mulher e filho e despertado por uma paixão irracional por uma judia que encontra e logo perde nos dias lancinantes do terramoto, Miguel Real pinta um fresco bruegheliano e sedutor das misérias e leviandades humanas em torno de Julinho, acabando este por voltar à liberdade do sertão com a judia Violante e seu filho, que durante quatro anos procura nos escombros de Lisboa, deixando um Portugal que ao chegar era atávico e de sacristia, e à partida experimenta a ascensão do comércio e das luzes, castigado por Deus e sob a mão forte do Ministro de D.José.
Já em O Último Negreiro (QuidNovi, 2006) Miguel Real penetra nos sons, cheiros e cores do Brasil Colónia e suas idiossincrasias. Situando-se inicialmente na Bahia dos fins de 1790, com a miríade de senhores de engenho, quilombos, escravos e mestres atravessadores, é uma sociedade parasitária e corrupta que domina a Administração e os negócios, enquanto nas ruas se conspira por uma República negra e baiana e se relatam os principais eventos da chamada Revolta dos Alfaiates de 12 de Agosto de 1798. Não faltam os portugueses corruptos (o desembargador Avelar e Barbedo, o banqueiro Marinhas) a autoridade portuguesa, amores contrariados como o do capitão Carolho e a filha do desembargador Costa Pinto, e os seguidores dos ideais da revolução francesa, a “francesia”, com destaque para o papel do médico Cipriano Barata ou do comerciante Francisco Agostinho Gomes. E, pungentes, os mulatos afixadores dos pasquins contra Portugal, Luís Gonzaga das Virgens e seus companheiros, supliciados num banho de sangue em nome de D.Maria I, a Piedosa.A ligação com A Voz da Terra surge com a intervenção incidental de Julinho, morto aos 90 anos, dos filhos de Violante, Samuel e Simão, já adultos, e de Florentino, agora velho e senhor do quilombo de Rio das Rãs.
Atravessando este universo, a figura solitária e mística de Francisco Félix de Sousa, negreiro e chibateiro, pária e sem escrúpulos, seguindo a sua estrela do Senhor dos Navegantes, que depois de se vingar de ofensas passadas tudo larga e atravessa o mar oceano, fixando-se em Ajudá, forte abandonado pelos portugueses e onde, aos poucos, com o apoio dum régulo local, Comalangã, do negreiro Nicolas e do escravo Pedra constrói um império esclavagista, lançando milhares de africanos para os engenhos do Novo Mundo, depois de os fazer rodar a árvore do esquecimento, fazendo a sua “segunda meia vida” entre a devoção ao Senhor dos Navegantes e à serpente Dã, também ele marcado pelo sincretismo religioso que marcou a vida no Brasil e na costa da África portuguesa, entre igrejas e terreiros,  orixás e santos milagreiros, procissões e práticas vudu.
Lendo ou relendo estas duas obras, revela-se um fôlego histórico, descritivo e onírico que nos transporta no tempo e faz pensar no que fomos e no que queremos ser como povo. Ao expor as fraquezas dos homens, Miguel Real fá-lo sem preconceitos ou ideias feitas, não sendo difícil reconhecer em cada personagem alguém que ainda hoje nos cerca ou influencia, talvez porque acima da Voz da Terra, sempre surge, com novas ou velhas roupagens, a Voz dos Homens, pusilânimes, contingentes, sonhadores ou vingativos. Ainda bem que há um Miguel Real na literatura portuguesa contemporânea.A ler ou reler, estas e outras obras suas.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Os ténues limites da liberdade


O uso da liberdade e os seus limites éticos e substanciais têm vindo por estes dias a ser postos à prova numa série de casos que nos devem fazer reflectir, quer para um lado quer para outro.
O caso das cantoras russas, por exemplo. As Pussy Riot, umas meninas excêntricas e pouco avisadas, decidiram cantar contra o presidente russo dentro duma igreja ortodoxa, lançando sobre si a raiva de autoridades civis e religiosas na Rússia. Exemplo de falta de democracia, ou pouco consolidada, mas não sabiam elas as leis que regem a Santa Mãe Rússia que pouco dada é a tais matriochkas punk? Pesadas ou não, as leis não foram feitas para este caso de propósito, e por muito menos nos Estados Unidos cidadãos são condenados por alegados crimes federais que a Europa das Luzes civilizadamente repudiaria
O caso Julien Assange, por outro lado. Este viola legislação sobre segredo de estado, revela documentos confidenciais obtidos ilicitamente, molesta sexualmente duas cidadãs suecas, país insuspeito de violações aos direitos e garantias dos cidadãos, refugia-se numa missão diplomática e quer vender a imagem de mártir dos tempos modernos, assessorado pelo ex-juiz sequioso de protagonismo Baltazar Garzón? E é o Equador, país governado por um populista seguidor de Chavéz e sem lições a dar em termos de liberdades que surge agora como bandeira dos direitos humanos, contra as perigosíssimas ditaduras inglesa e sueca?
A teleologia das normas é sempre colorida pelo clima político e social dos países que as fazem e aplicam, e quer num caso quer noutro, poder-se-á discordar das leis, ou sua aplicação, mas ao que se sabe, nenhum dos ordenamentos visados por quem contesta as decisões é condenado nas instâncias internacionais, ainda que alguns, como o russo, tenham uma visão musculada do exercício do poder desde o tempo dos czares.
Tudo para dizer que aqui como em muitas situações não há preto nem branco, mas um vasto e tortuoso cinzento, e, céptico relativista como Spinoza, concluir que “interessam os factos humanos não para os aplaudir ou deplorar, mas sobretudo para os compreender”.Ou, de forma um quanto mais cínica, concluir como Erich Maria Remarque:”A razão foi dada ao homem para o obrigar a reconhecer que ela não serve para nada”.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Al Zeimer, o emir de Boliqueime


Era uma vez um mouro nascido na terra das amendoeiras, vagamente marafado à nascença, ainda jovem, foi mandado pelo pai a estudar na madrassa, contas e álgebra foram a sua vocação. Alto e esguio, tímido e encavacado, partiu depois para o grande bazar, onde se dedicou à banca. Legumes, frutos, amêndoas, de tudo vendeu o jovem, mouro de trabalho, poupando para o futuro, professor mais tarde na madrassa onde estudara.
Estando o Emirado dominado pelos almorávidas e indo passear um camelo novo, anunciou a jihad, ele que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas, e pregando a guerra santa chegou a emir. Allah u akbar!- gritou quando de cimitarra em punho entrou no Palácio de Al Sanbent, perto da Grande Mesquita, seguido pelas tropas do Crescente Laranja. Como emir fez obras, mas, mandado pelo Califado, mandou arrancar as amendoeiras e figueiras, mandou encostar os barcos e vender o gado, deu trabalho porém, e os muezzin do minarete chamavam por ele como se o próprio Profeta fosse, senhor do Islam e pavor dos infiéis kafir, para ele nada mais que camelos.Cansado, e tendo-se retirado dez anos, entendeu, ouvida uma moura encantada, voltar à Cidade Santa, para aplicar a sharia, mas os tempos haviam mudado e teve de o fazer com o vizir almorávida Youssuf El Socas, estudioso de Filosofia e chefe das tribos do norte. Disputando a interpretação do Corão, deixou que se esbanjassem os dinares, obrigando a que, enviados pelo Califado, três reis do Oriente chegassem trazendo ouro, incenso e mirra.Envelhecido e agastado, Al Zeimer arrasta-se hoje, sem dinheiro nos cofres ou tâmaras na tenda, sem primavera árabe, resta-lhe o inverno em Bulik Eime, se a isso os reis magos obrigarem e os dinares chegarem e aos três reis trocar os passos. A História guardará de Al Zeimer a memória de Ali Babá, que abrindo a gruta com palavras mágicas, logo, qual bolo-rei, se deixou levar por quarenta ladrões. Salam‟alek, Al Zeimer, emir de Bulik Eime e senhor do Gharb Al Andaluz!

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A jornada sintrense de Sherlock Holmes


Holmes descansava à sombra duma sequóia enquanto Francis Cook providenciava o almoço com os criados, convidara o famoso detective para uns dias em Monserrate e não queria que nada faltasse. Watson viajara para Brighton, a banhos, e Londres ficara deserta, uns tempos longe de Baker Street e Charing Cross vinham mesmo a calhar. Recarregado o cachimbo, aproveitou para exercitar o violino, absorvendo a fragrância daquele jardim inóspito, domesticado por Cook em pujantes feteiras adornadas com túmulos etruscos. Cook, que conhecera em Doughty House, agora visconde de Monserrate, chegava entretanto com um visitante inesperado, um inspector da polícia portuguesa que lhe queria falar.
-Holmes, aqui o inspector Carvalho, da polícia local, gostaria de lhe dar uma palavra.
Sobranceiro, Sherlock cumprimentou-o, dando uma baforada no cachimbo, sem largar o violino.
-Sr. Sherlock Holmes? Sua Majestade,o rei D. Fernando gostaria de lhe falar. Poderia acompanhar-me ao Palácio?
Holmes anuiu, sempre quisera conhecer o rei-artista, o almoço ficaria para depois. D. Fernando estava no chalé da Pena, a condessa d’Edla fora a Lisboa nesse dia e recebeu-o na sala da música. Afável, mas preocupado, acompanhado pelo conde de Sucena e pelo marquês de Soveral, explicou os motivos por que o havia chamado:
-Bem vindo a Portugal, senhor Holmes. Desculpe interromper as suas férias, mas aconteceu uma terrível tragédia que creio só uma pessoa da sua craveira poderá esclarecer! –foi explicando, oferecendo um chá, que Holmes aceitou -Um grande amigo meu, o marquês de Niza, morreu ontem na sua casa, aqui em Sintra. Suicídio, diz a polícia, mas acho muito estranho, nada fazia prever uma situação destas. Bem estranhei quando à noite não compareceu ao baile na Pena, em honra do embaixador da Prússia.O seu contributo pode ser importante para deslindar o caso, assim aceite. Aqui o inspector Carvalho estará à sua disposição para os procedimentos que entenda necessários.
Magro e aquilino, de olhos penetrantes, Holmes era além de mestre da dedução, cirurgião de caracteres, a razão do seu sucesso a deslindar casos intrincados. Anuiu, fleumático, e de imediato pediu para visitar o local onde ocorrera o suicídio, saindo para lá sem delongas, antes que as pistas fossem apagadas:
-Será uma honra, Majestade. A maioria das pessoas vêem, eu observo. Aí reside o mérito da investigação!
A casa do marquês não ficava longe, um chalé na estrada da Pena, a viúva, ainda transtornada, recebeu o detective, a pedido do rei. Holmes examinou a casa, elegantemente decorada, a marquesa era uns anos mais nova que o finado marido, segundo foi adiantando o inspector Carvalho.Apresentada por este e ainda combalida, Sherlock passou a interrogar:
-Senhora marquesa, que motivos teria o seu marido para pôr termo à vida? -foi perguntando, recusada que foi uma chávena de chá.
-Ignoro, senhor Holmes, mas sei que alguém o terá procurado esta semana, lançando intrigas sobre mim e a minha lealdade como esposa, andava um pouco estranho há alguns dias.
-Importa-se que visite o local onde o senhor marquês pôs termo à vida?
-Claro. O inspector Carvalho já lá esteve, acompanhe-me, por favor!
Na biblioteca, com vista para a Vila, uma mancha de sangue no tapete denunciava o local onde caíra, com um tiro na nuca. O corpo, já amortalhado, estava no quarto superior, a polícia ainda não autorizara o funeral. Holmes pediu para ver o cadáver, a cabeça, desfigurada, estava enrolada num pano branco, o tiro fora na testa, central. O ângulo da arma deixou Holmes desconfiado, examinando com uma lupa. Pediu para falar com a pessoa que limpara a biblioteca após o acidente, a velha Gracinda foi chamada a explicar:
-Minha senhora, o que lhe vou perguntar é muito importante. Viu na sala alguma coisa anormal, um móvel fora do sítio, uma mancha….
-Ainda não estou em mim, caro senhor, que tragédia! -a velha empregada, que descobrira o corpo do marquês, interrompia, ainda em choque - Não, estava tudo como de costume, ontem de manhã o senhor marquês estava em casa, sozinho, na biblioteca. Quando regressei da vila vim ver se precisava de alguma coisa, e ali estava ele, no chão, com a pistola ao lado. Reparei, contudo, que tinha um botão vermelho na mão direita.
-Um botão? E pertencia a alguma roupa do marquês?
-Não, que eu saiba, e não sei a quem pertence.
Holmes, raciocinando, perguntou onde poderia encontrar um alfaiate, havia um nas Escadinhas do Bramante, na Vila, o velho Queiroga, também o rei a ele recorria por vezes. Holmes e o inspector foram ao seu encontro:
-Sr.Queiroga, aqui este senhor inglês precisa de saber que tipo de botão é este- esclareceu o inspector, mostrando o botão, vermelho e debruado com cetim dourado.
-É um belo botão, sim senhor, ainda há uma semana fiz uma casaca com botões desses, vermelha, foi uma encomenda do sr. Conde de Sucena para o baile na Pena, que teve lugar ontem à noite!
Holmes, taciturno, pediu para se retirar, tinha voltas a dar. No dia seguinte, apresentou-se em casa do Conde de Sucena, em Seteais. O conde, ainda em roupão, estranhou a visita do inglês, mas mandou entrar.
-Senhor conde, creio bem ter descoberto o que sucedeu ao marquês de Niza. Parece que alguém o andou a intrigar contra a marquesa, para o perder junto do rei, ameaçando mesmo com escândalo nos jornais. Ora essa pessoa devia ser uma pessoa conhecida, pois só assim teria tido a possibilidade de estar a sós em casa do marquês. Creio que essa pessoa terá entrado em confronto físico com ele, acabando por o matar, numa altura em que não estava ninguém em casa. Só que na luta corpo a corpo, o marquês de Niza terá arrancado um botão da casaca do agressor, que depois de disparar deixou a arma junto dele, a sugerir um suicídio.
-Muito interessante sr. Holmes, vejo que são verdadeiros os créditos que lhe dão como investigador, Sua Majestade há-de ficar satisfeito.
-Reconhece este botão sr. Conde? -ripostou o detective, exibindo o botão dourado que guardava na mão direita.
-Não, porquê, deveria reconhecer?
-É que este botão é de um casaco seu, e estava na mão do marquês, na altura em que encontraram o corpo.
Mudando a expressão, o marquês colocou um ar carrancudo e reagiu às palavras de Holmes:
-Ridículo, caro senhor, receio ter de retirar o elogio que lhe acabei de fazer, isso é um ultraje! Os botões são todos iguais!
Holmes pegou num papel que trazia na casaca, e mostrou-o ao conde:
-Esta imagem foi tirada aos convidados de Sua Majestade durante o baile na Pena, ontem à noite. Repare na sua casaca. Falta um botão no meio, não falta? Igual a este! - Depois de deixar o alfaiate, Holmes fora ver se havia registos do baile, o Granja, fotógrafo da Corte, tinha feito umas chapas para o Correio de Cintra.
O conde ia reagir, alterado, quando duma sala contígua surgiu D. Fernando, em pessoa, acompanhado do inspector Carvalho. Sucena empalideceu, vendo-se denunciado:
-Porquê Sucena? –desabafou desiludido, ouvira tudo, a corte estava cheia de bajuladores e intriguistas, mas a ponto de matar…
O inspector deu voz de prisão ao conde e mandou chamar um corpo de polícia, que o levou para o presídio. O rei deteve-se ainda a falar com Sherlock:
-Obrigado pelo seu contributo, senhor Holmes, espero que agora continue as suas férias em Monserrate, o Francis é um esplêndido anfitrião. E venha jantar comigo e com Elise na próxima semana, será um prazer.
Tocando violino e retomando as baforadas no cachimbo, Holmes retornou ao sossego de Monserrate, onde o visconde organizou entretanto um jantar de amigos para o conhecerem, o diplomata e escritor Eça de Queirós esteve presente. Perito em palhetos e com grande sentido de humor, Holmes gostou dele, também já uma vez desvendara um mistério, na estrada de Sintra.Servindo um Porto no terraço, Cook voltou ao crime da Pena:
-Diga-me Sherlock, como é que descobriu tudo tão rápido? Você é um génio, homem!
Sem se perturbar, o inglês, erguendo um cálice de Porto, fez um brinde, cerimonioso:
-Elementar, meu caro Cook!

domingo, 12 de agosto de 2012

Para quando o regresso da Vária Escrita?


 Entre 1994 e 2005 publicou anualmente a Câmara Municipal de Sintra a revista Vária Escrita, sob a égide do inicialmente Centro de Estudos Históricos e Documentais. Com direcção de Eugénio Montoito, foram membros do seu conselho redactorial Ricardo Alves e João Rodil bem como Élvio Melim de Sousa, Basilissa Calhau, Irene Lima ou Vítor Gomes. Foram 12 anos em que algumas das mais importantes figuras ligadas à cultura portuguesa, bem como investigadores de temáticas sintrenses publicaram artigos do maior relevo, podendo Sintra dizer que tinha um veículo de comunicação cultural escrita digno de rivalizar em qualidade com as melhores publicações que se editavam no país. Alguns dos números foram inclusive dedicados a eventos do maior relevo realizados em Sintra por essa altura, o de 1996 (dedicado ao colóquio que em 1995 assinalo em Sintra os 20 anos do desaparecimento de Ferreira de Castro) 1997 (dedicado aos 150 anos do nascimento de Eça de Queirós) 1998(dedicado ao I Encontro Camiliano de Sintra)ou 2002 (com as comunicações do Encontro Internacional Vergílio Ferreira. Nesses 12 exemplares escreveram autores como Pinharanda Gomes, Miguel Real, Samuel Calvelas Vicente, João Medina, Almeida Flor, Eduardo Lourenço e outros.
Interrompida a publicação há 7 anos, pergunta-se: para quando o regresso de uma publicação que congregue de forma condigna os trabalhos e artigos científicos que sobre Sintra estarão guardados em gavetas ou editados de forma dispersa e sem visibilidade local?

sábado, 11 de agosto de 2012

Plátanos de França e Plátanos de Sintra

Nos dois últimos anos a vida dos plátanos em Sintra não tem sido fácil, numa sanha demolidora em nome de factores vários, mas ignorando uma das suas riquezas: a manutenção da memória e o direito à paisagem , sobretudo em locais onde ao longo de décadas nos fizeram companhia, sempre mal tratados, para, talvez, justificar os abates recentes.
Em contraste absoluto, deixo aqui hoje algumas fotos que o nosso amigo Ricardo Duarte tirou em França, perto de Orleães, e que demonstram o que é respeito por esses valores e como a História pesa na análise dos sítios.


Na visão "técnica" dos nossos professores de agronomia, autarcas ou cidadãos preocupados com os seus muros ou com as supostas alergias já lá não estariam há muito tempo.Mas França é um país do Terceiro Mundo, eles sabem lá...


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Minhas memórias de Jorge Amado


Passam hoje cem anos que nasceu o Capitão da Areia, Jorge Amado, esse mago do Brasil dos jagunços, coronéis, quengas e personagens solitárias, todas elas imbuídas de universos intensos e vividos, num Brasil-Mundo sofredor, mas colorido e divertido, lutador e, sobretudo, baiano.
Recordo a leitura dos seus Subterrâneos da Liberdade, numa época em que por cá também a liberdade era esconsa e sofrida, bem como a sua figura imponente e branca de Pai Natal subindo da Avenida da Liberdade ao Parque Mayer, sempre com a inseparável Zélia, já depois de Abril e várias vezes depois, com os amigos portugueses que nunca esqueceu. Recordo também a mítica colecção dos Livros do Brasil, na qual devorei as suas obras, sobretudo as primeiras, o Jorge da Gabriela, da Tieta, de Jubiabá ou do Quincas. Recordo-o também numa Feira do Livro de Lisboa, já nos remotos anos 70, quando o cumprimentei e me autografou um exemplar da Tieta, que mais tarde o país inteiro veria nos episódios da Globo. E diariamente o apreciámos naquela mítica Gabriela a que deu alma, junto com seu Nacib, o dr.Mundinho, a Maria Machadão e muitos outros personagens dessa Ilhéus capital do mundo.
Quando há uns anos fui a Salvador, de imediato corri para a praia de Itapuã, a ver a casa onde viveu e onde descansa debaixo da copa duma árvore, e entre candomblés, capoeira e o colorido do Pélôrinho português e tropical pude visualizar esse microcosmos pujante de vida, cantado num português açucarado, onde a cada esquina surgia uma Dona Flor, um Capitão da Areia, cúmplices mães de santo e o sangue negro fundador do Brasil fazendo votos a Iemanjá.
Cada visita de Jorge Amado a Portugal era um regresso do avô velhinho, com a sua sabedoria feita palavra, trazendo o seu abraço forte e fraterno. Nunca recebeu o Nobel, mas soube como ninguém perceber a natureza humana, dos cafajestes, bacharéis, moleques da rua e perfeitos corruptos. Tempo pois de rever Jorge Amado e o seu maravilhoso mundo, pois afinal, Gabriela éis… meu camarada…

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Estes malditos Jogos Olímpicos...


A prestação portuguesa nos Jogos Olímpicos tem sido a todos os títulos o reflexo de um país em crise, onde o dinheiro para formação e estágios foi cortado e não abunda, mas também marcada por um pathos de falta de ambição, de conformismo com as prestações, do apenas cumprir calendário. Não se duvida de que há trabalho, esforço e abnegação, e de que todo o elenco que se encontra em Londres se esforçou por um sonho, abdicando de vida familiar e lazer que são o outro lado da moeda das exigências da alta competição.
Contudo, ouvindo alguns deles- a começar pelo inenarrável Marco Fortes da “caminha” em Sidney, ou a velejadora que desertou inventando questões que não foi só agora que surgiram, por certo, questiona-se se para além de marcas desportivas, estes atletas estarão imbuídos do espírito da competição, enquanto forma de superação de si próprio e de desafio e perfeição que estão na génese do olimpismo. Porque se é só para marcar presença, bastava-nos ter enviado meia dúzia de atletas, não eram precisos 77, apenas satisfeitos com as vitórias morais.
O chefe da missão olímpica, num mau perder, diz que o país não tem cultura desportiva. Tem razão em parte. Mas se assim é, então o melhor seria nem ter ido.E não nascerão as expectativas do elevado grau de promoção que as televisões, na busca de audiências e em mês de silly season fazem de atletas que durante o ano são afogados no turbilhão do futebol e cujo nome muitas vezes se desconhece?
Há que tirar ilações, e sem querer verberar os atletas pela falta das medalhas, há contudo que rever a atitude. Deles, complacentes e resignados, e também dos portugueses, também eles muitas vezes silenciosos  também face ao cercear dos seus legítimos direitos, mas ligeiros a exigir dos outros sentados nas mesas dos cafés.
Passam hoje 67 anos dos hediondos bombardeamentos em Hiroshima. Lá, o povo não desistiu, nem se acomodou a vitórias morais, e o Japão ressurgiu das cinzas. Falta gente dessa tempera no Portugal de 2012. E o desporto é apenas um tubo de ensaio do imenso e egoísta estado letárgico e de falta de atitude e ambição em que vivemos.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

50 anos de Garota de Ipanema


Em 1962 os Beatles lançavam Love me Do, e iniciavam a carreira grupos como os Beach Boys,   Otis Redding, Wilson Pickett , John F. Kennedy, aprovava um embargo contra Cuba, o Brasil vencia o campeonato do mundo de futebol e o Burundi, a Argélia e o Uganda tornavam-se países independentes. Nascia Axl Rose e morriam Marilyn Monroe e Herman Hesse. Contudo, e para o mundo, exactamente a 2 de Agosto, faz hoje 50 anos, era tocada pela primeira vez essa música universal e ex-libris da Bossa Nova, a Garota de Ipanema. Saravá!