A vitória de Trump é sintoma de que falta a esperança,
essa palavra talismã, e falta mostrar o osso com que, como o cão de Pavlov, de
novo voltaremos a ladrar. Para que tal aconteça, há que levantar do sofá,
largar o comando da televisão e o asténico isolamento das redes sociais,
silencioso espaço para gritar desesperos, buscar cumplicidades, e, todavia,
nada decidir que altere o pathos desta anormal normalidade com que os
populismos e cantos de sereia invadem o ecossistema político.
Já muitos de nós no passado lutámos contra a liberdade
raptada, guerras anacrónicas e por um futuro que por gerações nos foi negado.
Um dia tudo voltou a ser possível, e o Futuro teve rosto, calendário,
protagonistas, muitos cães e muitos Pavlovs, ladrou-se e latiu-se, e apareceram
ossos, carne, ração. Fez-se a democracia, mudaram-se retratos, discursos,
atitudes. Mas ao sétimo dia o povo descansou, contente com a obra feita, e
entregou-se à volúpia consumista, ao hedonismo egoísta, à anomia social, de bom
selvagem, o indígena ficou tão só selvagem, com casas a crédito, férias no
estrangeiro ou carro novo cada três anos. Barato, o vil metal abundou, o maná
igualmente, triunfantes mas cegos pelo sol, achou-se que se tinha alcançado a Terra
Prometida, depois de anos a errar no deserto, e depois dos grilhões do faraó.
Silencioso, o veneno do inimigo fervia no caldeirão, acelerado pelos trinta dinheiros com que a ele nos rendemos. Um dia,
legiões de cobradores, subprime, agências de rating e fundos abutres chegaram a exigir o dízimo, e, qual Sodoma atónita, tudo ruiu
então, transformado em sal às mãos dos que na sombra manobravam, sabedores da
fraqueza dos deslumbrados.
Como na caverna de Platão, onde agora, cegos e
aprisionados uivamos a perda da esperança e buscamos um rumo, haverá de chegar a luz, do
fogo primeiro,anunciando um novo tempo, depois. Mas tal
não virá de sortilégio do Olimpo, antes imporá a necessária revolta dos
escravos, o quebrar das algemas, a união denudada e sem temores. Imporá pôr à
prova se os escravos merecem um futuro ou, erraticamente, serão um mero quilombo de
deserdados em fuga e com liberdade vigiada.
Os dias são de surpresa e desnorte, chamamentos de Circe
e apelos a fugir de Ítaca, para, assustados, sulcar fronteiras, ziguezagueando a
vida e trocando voltas ao futuro, dias de sofrimento, exaustão, entre a loucura
e a entropia, o estilhaçar de sonhos ou o seu cruel adiamento. É chegado o
momento da renovação, do regresso da alva Iemanjá e dum assomo de magia que
faça das fraquezas forças, dos rebeldes líderes e das ideias planos. O grande
exército do Futuro, dos que se indignem com consequência, ajam com sabedoria,
tracem planos consistentes e de diferença, e que, reconquistada a chama, a
reponham na pira sagrada onde se venere a dignidade e perspective um Devir
ainda tem de ser formado em catártica e lenta caminhada. Até lá, vão vencendo as hordas bárbaras e é Inverno nas
almas. O futuro já não é como era.
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