quinta-feira, 26 de março de 2020

Diário da Resiliência-2

Alguém escreveu, citando Edgar Morin, que as sociedades são comunidades de destino, e nunca como nestes momentos tal se revela dramaticamente verdade. Fechados nos nossos Eus, no hedonismo e na canibalização dos Outros por uma sociedade de ganância e vaidade, momentos há em que somos chamados a confrontar-nos com a fragilidade e transitoriedade da nossa existência. E este é um deles. O Nós chama pelos Eus recalcitrantes, e convoca para novos comportamentos e atitudes, de partilha e humildade. Como disse Confúcio "Se alguém tem uma laranja e troca com outra pessoa que também tem uma laranja, cada um fica com uma laranja. Mas se alguém tem uma ideia e troca com outra pessoa que também tem uma ideia, cada um fica com duas.”. É tempo de ouvir, e também de agir.Da crise e depois da catarse, nascerá um novo amanhã, fatalmente diferente, e o Homem, aflito, continuará a sua caminhada. Voltará a errar, mas a desbravar caminhos também, curará pandemias e doenças e voltará a fazer guerras e alimentar conflitos. Aflito, sempre, na busca desnorteada da Luz que o atrai e que a Caverna onde como rebanho/alcateia deambula desde sempre lhe acena, e repele, também.. Bom dia de mitigação.

domingo, 15 de março de 2020

Diário da Resiliência-Dia 1

Sintra, pela manhã. No Pingo Doce e Minipreço, entradas controladas, 3 de cada vez, e só entram quando saem outros 3; Num cartaz afixado, o Despensa Cheia anuncia o encerramento por tempo indeterminado.
Pessoas, poucas, passeiam, a maioria acata, algumas reclamam entre dentes. Nas televisões apela-se ao fecho de fronteiras, na rua uma carrinha com espanhóis, carregados de malas, entreolha-se sem saber o que fazer.
Volto para casa, e oiço o Amor a Portugal, da Dulce Pontes, as redes sociais têm nestes dias uma atitude ambígua, quer destilando o habitual ódio a tudo o que mexa, quer apelando a correntes humanas e, felizmente, civismo e precaução. É Portugal num inesperado Março de máscara na cara.
Na Portela de Sintra, também o Mira Serra está a meio gás, muitos almoços a menos, mesas separadas e a mais de um metro entre cada uma. No Pingo Doce há fila para entrar, a partir de amanhã abre só das 10h às 14h e das 16h às 20h.
Entretanto, os infetados subiram para 245. Hoje parece haver mais pessoas a aderir à necessidade de proteção, ainda recalcitrante aqui e ali, por o número de mortos ser nulo ainda e por muitos propalarem teorias da conspiração, sempre iniciadas com a expressão "sei de fonte segura"...
É preciso não dar razão à frase do velho Estaline: "se morre uma pessoa, é uma tragédia; se morre um milhão, é uma estatística".
A tarde chegou fria e cinzenta, como se um sopro de morte holograficamente espreite, predador, à espera de ceifar vidas, aflitas na sua fragilidade. Apetece ouvir a Lacrimosa de Mozart, acompanhado dum James Martens, e refletir sobre o jogo de sombras em que dum dia para o outro tudo mudou, ante o espanto que nos deixa catalépticos e atónitos.
É preciso tratar dos vivos, e esperar que não hajam mortos em demasia. E fazer perguntas: porquê só os passageiros de cruzeiros e de Itália não podem desembarcar e os vindos de avião ou carro de Espanha ou França podem circular? Porquê fechar os bares às 21h e já agora não o dia todo? O vírus só sai à noite, é um gambosino? Quem garante que bastam 14 dias de quarenta? Muitas perguntas, respostas ataboalhadas de quem não estava e ainda não está preparado para a primeira pandemia da globalização.
Também o Salloon está fechado, o chinês também (pela primeira vez, serão remorsos?), hora para ler e ver ou rever filmes, e redescobrir o bom e são que ainda há em nós. Em tempos de Leviathan, a razão deve domar a emoção, e a paciência o alarme.