terça-feira, 31 de outubro de 2017

Quatro "estórias" para o Halloween






Palmira

-Está lá? – esfregando os  olhos, António tentava acordar- Está sim?
Já prestes a desligar o telemóvel, uma voz respondeu do outro lado:
-Sim... António? Sou eu, o Marco.
-Marco! Que se passa, já viste que horas são?
-António, tinhas razão. Nunca me devia ter metido com ela…
-De que estás a falar? Metido com quem?
-Veio buscar-me, eu sei... Está à janela, desde que anoiteceu.
-Marco – insistiu António, tentando manter a calma – andaste a beber? Quem está à janela?
-Palmira…
A ligação caiu. António levantou-se, num misto de raiva e preocupação. Não era a primeira vez que Marco o acordava a meio da noite, mas havia algo diferente neste telefonema, Marco parecia assustado. Pegou no telemóvel e ligou para o amigo, mas a chamada foi parar à caixa das mensagens.
-Ah, que se lixe! – apagou a luz do candeeiro, estava bêbado, por certo, nem sequer se iria lembrar no dia seguinte. No entanto não conseguiu voltar a adormecer, ficou com a sensação de que algo havia acontecido. Olhou para o despertador, 4:30h da manhã. Se saísse de carro, chegaria à casa de Marco já dia. Isto é de loucos, pensou enquanto se vestia. -Bolas, Marco, se te encontro a dormir e a curá-la, vais ter de te ver comigo!
Saiu de Colares e apontou à casa de Marco, na Vila Velha. Marco tinha-se mudado para lá recentemente, escritor, trabalhava num livro inspirado na vida do conde de Valenças, antigo proprietário do edifício hoje na posse da Câmara.  Luís Jardim morrera há anos, para Marco era uma interessante fonte de informações sobre Sintra em finais do século XIX. Tentou lembrar-se do que ele disse, algo sobre alguém que teria ido buscá-lo...Palmira. Quem seria essa Palmira? Uma familiar do conde descontente, por certo, Marco tinha um talento especial para se meter onde não devia.
Passava das cinco da manhã quando chegou ao casarão, com uma localização magnífica, perto do velho Paço. A porta da frente estava aberta, empurrou-a, lá dentro, tudo em silêncio, ninguém respondeu. Vasculhada a casa, nenhum sinal de violência ou de arrombamento, talvez Marco nem estivesse em casa quando lhe ligou. De qualquer forma, decidiu-se a esperá-lo, queria saber como ia o livro e quem era a tal Palmira. O escritório tinha uma enorme janela com vista para a serra, numa escrivaninha, aberto, estava um computador portátil e na parede um quadro reproduzia a paisagem que se via da janela, com o Palácio Valenças destacado a uns duzentos metros, conquanto no quadro um pequeno vulto branco surgisse miniatural numa janela. Nem sinais de Marco. Sentou-se diante do computador, estava aberto numa mensagem de e-mail: “Caro Marco. Seguem em anexo as cópias dos documentos que pediu. Um abraço. Montoito ”Anexados, três documentos.
A curiosidade começou a mordê-lo. Abriu um dos documentos, era a escritura da compra do palácio pela Câmara, no final dos anos 30. Um outro documento continha a cópia de um contrato de comodato entre a Câmara e dois criados do conde, Albertino e Palmira, um casal a quem não quis deixar na rua, garantindo-lhes morada para o resto da vida nuns anexos do palácio, com a venda quase todo destinado à nova biblioteca. Noutro anexo, a foto de uma mulher jovem, a sépia, tirada aí sessenta anos antes. Havia ainda uma pasta chamada Palmira com uma série de artigos de jornal, num deles, já antigo, o recorte de uma gazeta de Lisboa relatava a bizarra morte em Sintra de uma criada traída por uma paixão impossível por um patrão a quem a classe social apartava e que, em desespero, se lançara da janela da mansão, desesperando de um amor impossível.
António recostou-se numa cadeira, pensativo. Voltando ao computador, abriu mais um ficheiro. Outro recorte, com uma foto do conde de Valenças, sorrindo, em baixo uma legenda “Aristocrata vende palacete em Sintra ”. Observou-a com atenção e virou-se para o quadro atrás de si, era a mesma casa renascentista: janelas trabalhadas, a serra sobranceira atrás. Luís Jardim, o conde, morrera há muito, era a inspiração de Marco para o novo livro, muitas vezes pusera os belos jardins do Duche à disposição do povo, para fruição e lazer.
Havia uma foto familiar num salão com a família do conde, a um canto, uma jovem de olhos penetrantes servia chá num bule de Limoges, uma criada, cujas feições chamaram a atenção de António, uma Pola Negri da plebe, pensou. No verso da foto, os nomes de todos: Luís, Adelaide, o conde da Idanha, de visita, e Palmira, a criada do bule. Começou a abrir mais ficheiros, à procura de partes do livro em que Marco estava a trabalhar, embrenhado já naquela história intrigante. Eram histórias de aparições, e relatos de cenas estranhas ocorridas no palácio, em anos recentes. E por que motivo Marco lhe falara duma tal Palmira ao telefone? O rascunho do livro levantava suspeitas sobre esses incidentes no Palácio Valenças, insinuando que algo misterioso na velha casa estaria na origem de algumas mortes, aparentemente de causas naturais, a última, a de um subdirector do Arquivo, aparentemente de ataque fulminante, certa vez que ficara a fazer serão. Só se deu conta que o tempo passara quando o sol começou a aparecer no horizonte. Pela janela pôde ver os raios nascendo, e o ruído de uma charrete enferrujada, já próximo da casa. Levantou-se, preocupado, pensando se não seria melhor chamar a polícia, o amigo continuava desaparecido, afinal. Na parede, o quadro já não era igual, porém. A visão do palácio Valenças continuava a mesma, mas a janela central estava agora aberta, e atrás dum cortinado branco via-se tenuemente um vulto de mulher idosa, o ponto branco que inicialmente vira minúsculo no quadro. Saiu da casa a correr, e quando chegou à rua, já na Volta do Duche, descortinando a janela do palácio aberta, atrás do grosso cortinado foi nítida a visão dum vulto branco, igual ao do quadro em casa de Marco, segundos antes. Palmira, já velha, espreitava, antes que o dia nascesse. Quem levaria desta vez?  

Fogueiras na noite

Vinte e três anos e filho de pescadores da Ericeira, Raul gostava das noites de sábado para as suas conquistas nos bares da vila, cheia de turistas e em busca das marisqueiras. Certa noite conheceu Vanda, uma morena de cabelos anelados e generosa de formas, pernas roliças escondidas atrás dum vestido de chita, um sinal na testa tornava-a ainda mais interessante. Depois duma noite de copos, entregaram-se apaixonados no areal escuro mas cúmplice. Apesar do céu carregado de nuvens, a primeira noite foi vivida com emoção, as estrelas brilhavam e o luar, magnético, tinha contornos prateados.
Uns dias mais tarde, saiu com o pai e os homens para a faina da pesca, apesar de futuro advogado, havia que ajudar a família, dali vinha o dinheiro para o curso. No meio da pescaria, a nortada chegou de mansinho, para logo o mar ficar encrespado com vagas de três metros. Com a borrasca, a embarcação não conseguiu voltar ao porto e acabaram arrastados para lá de Santa Cruz, aí lançando ferro. Extenuados, levando o barco para junto da praia e sem rede de telemóvel para contactar a capitania, acomodaram-se num pinhal vizinho, pensando ali passar a noite e regressar no outro dia, no barco se possível. Atento, Feliciano, um dos pescadores, apontou uma clareira donde vinha uma luz e dirigiram-se para lá. Já perto, começaram a escutar cantos, um refrão repetitivo de vozes estridentes e femininas, soltando gargalhadas e palavras ininteligíveis numa língua indecifrável. Seguindo em frente, o clarão de fogo ficou mais visível no escuro da noite, e como por encanto, abriu-se uma clareira, onde protegidas pelo negrume da noite, umas vinte mulheres de rostos angulados e narizes pontiagudos e disformes dançavam envergando túnicas negras. As mãos eram nodosas, terminando em longas unhas, o cabelo cor de galho seco. Insistente, o vento norte sibilava, mas nada mexia na zona da clareira.
Ruidosas, as mulheres dançavam em torno do fogo, sobre uma pedra que mais parecia uma mesa estavam objectos de metal e pedra, relógios, fios de ouro, pares de óculos e outras coisas, por certo pertencentes a pessoas. Abismados, Raul e os demais, escondidos e a alguma distância, tinham agora a certeza de assistir a uma espécie de missa negra ou sabath. Raul já lera sobre o assunto, eram frequentes na serra de Sintra, as mulheres lidavam com objectos de pessoas a quem queriam mal ou dominar.Na clareira, continuaram cantando sem cessar loas ensurdecedoras, interrompidas por gritos e risos macabros enquanto ao centro um caldeirão exalava vapor e uma delas ia remexendo com uma grossa colher de pau. Pegando em canecas de barro e provando da mistela, gritavam excitadas a cada gole.

A dada altura, uma delas parou de cantar e saiu da roda, aproximando-se da moita onde se escondiam os homens e surpreendendo-os e soltando uma gargalhada estridente atraiu os olhos faiscantes das outras sobre eles. Parando a dança, uma risada em uníssono assustou Raul e os companheiros, pondo-os em fuga de volta ao barco. Elas não os seguiram mas para eles, porém, todas as bruxas da terra estavam ali naquele momento reunidas, antes uma noite lutando contra o vento e as ondas, que aquela cena de terror. Depois de uma noite no barco, de manhã e com o mar mais calmo lá voltaram à Ericeira, tão depressa não esqueceriam o que viram.
Nessa noite Raul encontrou Vanda no Ouriço e ainda fora de si deu-lhe conta do ocorrido. Ela ouviu, impávida, quando terminou estranhou a placidez no rosto da namorada. Afagando-lhe a cara, e olhando-a de perto, Raul sentiu um frémito, com aterradora certeza sentiu já haver visto aqueles olhos antes. Eram iguais aos da bruxa que descobrira os homens no pinhal na noite anterior, avermelhados e hipnóticos.
Não disse nada, sentiu que não adiantaria, estava já inexoravelmente dominado. Pegando a mão gelada de Raul, Vanda passeou-o junto ao miradouro, disfarçando um esgar de caçadora, segurou a presa amestrada, o sinal na testa parecia saliente agora.

A Terra dos Lázaros

Foi há três anos que André se decidiu a avançar com o projecto, um filme sobre a Gafaria de S. Pedro, a mal conhecida leprosaria no Arrabalde de Sintra. Lázaros escorraçados e errantes ali encontraram refúgio até ao século XVI, sob a protecção do Espitral do Espírito Santo, o argumento seria fascinante. Se não arranjasse produtor, faria uma curta. Atraíam-no os filmes grunge, Murnau e Tod Browning, lendo nas sombras e angustias dessas fitas grandes semelhanças com o mundo actual.
Da pesquisa feita para o filme, chamou-lhe a atenção uma tal Mabília, leprosa que ali morrera em 1567, tida como feiticeira e de quem se dizia ter contraído lepra como castigo pela prática de magia que usava para  seduzir os homens e depois os roubar. Morrera deformada e no maior sofrimento, jurando vingança.
Falando com os mais velhos de S. Pedro, André verificou que apesar do tempo decorrido, a história ainda era lembrada, notando porém silêncios cúmplices a cada tentativa de saber mais, havendo quem jurasse ter visto missas negras nos Capuchos orquestradas por Mabília, enquanto velas rodeavam animais oferecidos em sacrifício.
Por essa altura alguns casos ocorreram reveladores de anormalidade numa terra geralmente bucólica e pacata, surgindo notícias em tablóides relatando o desaparecimento de diversas pessoas sem deixar pistas ou testemunhas. Um em Ranholas, em Março, outro no Ramalhão, um mês depois, outro ainda a quem haviam visto pela última vez na Mourisca, pouco antes da meia-noite. Vozes delirantes, dos que habitualmente viam filmes de terror, associavam mesmo o facto à tenebrosa Mabília, séculos após ter morrido, se bem que sempre emprestando um ar trocista aos comentários.
Três pessoas estavam desaparecidas, não havia pistas, uma testemunha que fosse. André, absorvido na concepção do seu filme e desafiado pela adrenalina do perigo, decidiu investigar por conta própria. Passadas algumas semanas, contudo, nada descobrira. Os desaparecidos não voltaram a ser vistos e a GNR pensava em arrumar o assunto, para ela a dispensar grandes cuidados. Até nem eram da terra, comentavam, se calhar até tinham fugido zangados com os familiares. Importante, eram os gangues da linha de Sintra, e fechar bares por causa do ruído aos sábados à noite.
Uma noite, visivelmente alterado, André irrompeu arfando e agitado no posto da GNR de Sintra. Não dormira na noite anterior, assaltava-o uma intuição que se adensava no seu espírito. Visivelmente fora de si, pediu ao cabo Inácio que o acompanhasse com alguns guardas a S. Pedro, tinha a certeza de ter descoberto algo aterrador, tendo o grupo seguido para o local onde pela sua pesquisa a bruxa Mabília havia dado o último suspiro, uma encosta perto da igreja de S. Lázaro. Movido por uma força estranha, André começou a escavar e arrancar as pedras da calçada, perante o ar surpreso dos agentes, seguros de já lhes terem estragado a noite. Estranhamente, a terra, já no enfiamento com o largo de S. Pedro parecia mole e húmida, como se ali tivessem cavado recentemente. Perturbadores, restos de um braço putrefacto começaram a ficar visíveis. Nessa altura, o rosto de André transfigurou-se, e começou a gritar palavras incompreensíveis, cabeceando possesso. Percebia agora o que se passara. Era como se um inquilino invisível e usurpador habitasse o seu corpo, manietando-lhe os movimentos, vexando-o como presa ocasional para lhe parasitar o espírito e assim concretizar uma ânsia de vingança que de tempos havia que saciar. O corpo era de um dos desaparecidos, fora André, possuído por Mabília, quem o havia morto, tal como os outros, embora nada recordasse.
Arrancou a camisa e desatou a gritar, descobrindo-se marioneta sem alma e capturada por um dono invasivo do qual não se conseguia apartar, dos seus olhos chispavam os de Mabília. Sem o saber, ao tanto querer descobrir sobre ela na pesquisa para o filme, o seu corpo fora por si possuído, e assim se vingava séculos depois de ter morrido numa enxerga imunda, usando André como títere impotente do seu plano predador.
André recupera hoje numa casa de repouso em Mértola, quebrantado, com os olhos sempre fixos num horizonte invisível. Mabília, dizem, ainda hoje pode ser avistada em S. Pedro em noites de lua cheia, sentada no Túmulo dos Dois Irmãos e esperando as infelizes presas nas noites de lua cheia.

Noite de Halloween

Fim do verão prolongado em Sintra, e tempo dum já esperado inverno, finalmente a natureza retomava rotinas e cheiros de finais de Outubro. Para a velha Gracinda, médium de Galamares e por muitos levada a sério em conselhos e mezinhas, os espíritos dos mortos do ano voltariam nessa altura, predadores dos vivos para neles viver no ano seguinte, dissera-o à Virgínia, durante uma sessão espírita onde por mil euros a pusera a “falar” com o defunto Inácio. Zombando mas ainda assim cautelosos, os homens temiam sempre esses dias de Outubro, refugiando-se na água-pé e castanhas, bem mais espirituosos que os propalados espíritos agoirados pela velha, perita em pragas, em tempos providencial parteira da aldeia. Chegava o Dia de Todos os Santos e o dia de fiéis defuntos, os velhos rumariam aos cemitérios, os mais novos, retomando a tradição pediria pão por Deus no renovado e ruidoso ritual anual.
Na noite de 31 de Outubro, agora também recente e celebrado Halloween, Hugo e Jaime montaram-se na motorizada a caminho duma festa na garagem da Vera, em Cabriz, combinada com os amigos do liceu. Vestidos a preceito, de vampiro, abóboras com velas adornavam-lhes o muro da casa, antevia-se uma noite de copos, fria mas aquecida pelo álcool e algum “bruxedo” mais noite dentro, depois de providenciais dentadinhas no pescoço. Estava frio e sem vivalma, animados, tomaram o caminho do Torrado, nessa noite silencioso e perturbador. Apenas alguns rotweilers ladravam, à passagem, sentado atrás de Hugo, Jaime com uma capa preta acossava ainda mais os cães inquietos, segurando as garrafas do vodka com que a festa enfim animaria. Junto ao moinho em ruínas, a scooter em segunda mão acusou o peso em excesso e qual burro velho “pifou”, ainda metade do caminho não estava percorrido.
-Bolas, é preciso azar, meu, esta treta não quer andar mais!- rosnou Hugo, os olhos pintados de negro, mais parecia um Zorro de segunda classe, montado numa pileca cansada - acho que por hoje não vai dar mais! - conformou-se, dando um pontapé na roda da velha motorizada.
-Fogo, meu, ganda cena! Vamos a pé, daqui lá é pouco mais de meia hora! Amanhã a ver se o Leonel vê o que se passa! Bora!
Encetado o caminho a pé, ainda mandaram um SMS a avisar do atraso, nenhum dos amigos estava de carro que os pudesse apanhar. À passagem pela casa ao abandono do velho Vicente, um cão preto, rafeiro, saiu-lhes ao caminho. Manso, escanzelado, ali ficara desde a morte do velho amolador três meses antes, vadiando e ladrando aos rapazes, conhecidos de longa data:
-Tejo, anda cá!- gritou o Jaime- vai para dentro, meu, andas às cadelas? Vai, vai!
O cachorro, sem dono agora, ainda os acompanhou uns metros. Em noite sem estrelas e falhado o candeeiro já perto da Várzea, um repentino breu envolveu-os, entre a folhagem densa e as árvores frondosas que antecediam a povoação. Ao longe, uma luz na casa da velha Gracinda, subitamente apagada, a velha recolhia-se por certo, no meio das suas velas e mesas pé de galo.
Um pouco mais à frente, uma voz roufenha cantava um velho fado de Marceneiro. Era o Seca Adegas, bêbedo como sempre, a pé para casa. Um vulto indistinto seguia-o a poucos metros, cambaleante mas em silêncio, à primeira não vislumbraram quem fosse, algum companheiro de copos, Seca, borracho como todos os dias, pronto a recomeçar no café do Sérgio na manhã seguinte. Ruborizado, cantava, com voz de cana rachada, à vista dos dois jovens mascarados, ensaiou um ar de surpresa e empunhou a garrafa de tinto como se fosse uma espada em riste:
-Quem são vocês os quatro, homens de Deus? Se é para roubar vêm enganados, daqui não levam nada!
-Pôe-te lá manso, ó Seca, somos nós não nos reconheces?
O velho ébrio cerrou os olhos e agarrou os dois pelo ombro, mudando de atitude, o bafo a aguardente quase contagiante:
-Oi, rapaziada! Então onde é o Carnaval? Não pagam um copo aqui ao vosso amigo? Estou com uma sede danada, quase não bebi nada hoje…- arrastou a voz, completamente borracho
-Vai-te mas é deitar, meu!- afastando o braço do seu ombro, Jaime procurava libertar-se do bafo e do cheiro a bosta, não deveria tomar banho há semanas- então e esse aí quem é?
-Esse quem?- questionou meio zonzo o velho funileiro- não está aqui ninguém, só vocês!...-arengou
-Aquele ali, com um casaco pre…
Antes que terminasse a conversa, um objecto contundente tombou brutalmente sobre a cabeça de Jaime, decepando-a do corpo, deixando o resto do corpo a cair desgovernado, o fato de vampiro jorrando sangue na estrada de macadame. Hugo ficou gélido, Boris Karloff de ocasião disfarçado para o Halloween. Sem que o Seca Adegas reagisse, o vulto chegou-se à frente, para zona iluminada, boquiaberto, Hugo reconheceu o rosto desfigurado do Vicente, lívido, e coberto de terra, segurando um machado de cortar lenha. Atónito, esfregou os olhos, o Vicente morrera três meses antes, como podia estar ali.
Olhando quer o vulto do Vicente quer o alheado Seca Adegas, viu chegar ladrando contente o Tejo, a roçar-se no regressado dono. Sem dizer nada, desatou a fugir, a capa de vampiro ondulando, embrenhando-se no mato e deixando o corpo inerte do amigo na viela sem luz.
Ao passar pela casa da velha Gracinda, esta estava à porta, segurando um candeeiro a petróleo, como se já esperasse por ele. Com um riso aberto e sórdido, apontou-o com a mão enrugada e carcomida e sentenciou:
-Acreditas agora no regresso dos mortos? O Vicente veio buscar a sua presa. Para o ano, será o Jaime quem virá buscar a sua! E como quem lança uma praga rematou ameaçadora:
-Assim é, na Noite das Bruxas. Hoje e na noite dos tempos!- e voltando para dentro apagou a luz, desaparecendo na escuridão da casa isolada no Torrado.
Em Cabriz, os amigos do liceu já eufóricos com a vodka preta e à luz de velas, faziam a festa, divertidos. Vera estranhou a demora dos amigos, e comentou com Pedro, escondido atrás dum disfarce de Scream:
-Onde estarão aqueles dois? Já tinham tempo de cá estar, meu!
-Não te preocupes, já devem estar com uma de caixão à cova…
Lá fora, a serra vigiava perturbadora e a noite silenciosa escondia mais um crime de 31 de Outubro. Alheio e brincalhão, o Tejo ladrava às cadelas no caminho do Torrado…

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Bombeiros, depois do fogo e das cinzas




Foto Pedro Macieira/Rio das Maçãs

Sintra tem pergaminhos na criação de corporações de bombeiros das mais antigas e valorosas do país. Desde logo a Associação de Socorros Mútuos 3 de Outubro de 1884, ou em 1885, quando uma comissão de sintrenses, reunida no Jornal de Cintra, decidiu organizar um corpo de bombeiros. A 1 de Setembro de 1889 foi criada a Associação dos Bombeiros Voluntários de Sintra, e em 1890 os Bombeiros de Colares e inaugurada a "estação de incêndios", sendo seu primeiro comandante Eduardo Rodrigues da Costa. A 24 de Junho a Real Associação dos Bombeiros Voluntários de Sintra, sendo seu primeiro comandante João Augusto Cunha e a 1 de Novembro de 1891 a Banda dos Bombeiros Volunios de Colares, sendo em 1895 a vez de Almoçageme. Momento alto foi em 27 de Agosto de 1905 a realização em Sintra do I Congresso-Concurso dos Bombeiros Portugueses, em Seteais. Várias são as corporações que em mais de cem anos salvaram vidas e propriedades, acorreram aos acidentes na estrada ou em unidades industriais, aos incêndios florestais e urbanos, aos naufrágios, ou tão só a resgatar o gato em cima da árvore ou amparar algum tardio transeunte com um grãozito na asa a caminho de casa. Desde sempre, a sirene uivante que ao longe anuncia a tragédia e inquieta as populações, é também o prenúncio do auxílio, de segurança e de resposta rápida e desinteressada
Há contudo que desenhar o futuro, e isso passa por modernizar instalações e equipamentos, apostar na formação permanente e pluridisciplinar, rever o estatuto social do bombeiro e incorporar os seus efetivos nas tarefas de prevenção no que aos fogos florestais diz respeito. As alterações climáticas com os ciclos de seca cada vez mais prolongados, o abandono da agricultura e a confusão no registo predial das propriedades indivisas e sem donos visíveis e a quem impor limpezas coercivas reforçam a necessidade de o Estado se substituir aos donos relapsos ou sem recursos se não quer ver o que resta do coberto vegetal desaparecer, com relevantes consequências na paisagem e no tecido social e económico das regiões.
Os bombeiros são e devem ser cada vez mais não só profissionais mas profissionalizados, sem descurar contudo o inestimável papel que o voluntariado deve ter em parte dos seus quadros, pois esse é o elo visível com a comunidade que reforça o sentimento de pertença através dum elemento essencial da nossa coesão social: o socorro nas emergências, na ação social, no transporte de doentes, nos incidentes em meio urbano. Estranha-se pois o papel secundário que desempenharam no desenho do relatório da Comissão Técnica Independente que juntou académicos, sobretudo, e quase ostracizou quem está no terreno, o conhece como ninguém, e mais não pode fazer por trabalhar com equipamentos obsoletos, recursos escassos e quadros envelhecidos. É corriqueiro dizer que os bombeiros são os soldados da paz,  fica bem e é justo condecorá-los e distribuir medalhas. Mas a melhor e mais coerente medalha com que podem ser agraciados é o de lhes garantir instalações condignas, dar-lhes proteção complementar enquanto agentes de atividades de risco, rejuvenescer os quadros, as viaturas e os equipamentos. Mas também registar e ouvir a sua experiência na elaboração dos planos municipais de proteção civil e de defesa da floresta, levar para perto de si psicólogos, silvicultores, veterinários, engenheiros do ambiente e outras valências cuja experiência e contributo possam auxiliar nas decisões da prevenção, do combate e do rescaldo das situações de emergência, a par do reforço do envelope financeiro que permita serem o verdadeiro Exército da Paz que se impõe nestes dias de guerra.




terça-feira, 17 de outubro de 2017

Novos desígnios para as florestas




No Inferno dos incêndios que há décadas nos fustigam, todos são culpados: os políticos que não planeiam, organizam ou pensam com visão de futuro e encarando o problema como desígnio nacional e prioridade; os autarcas que não fiscalizam ou punem os refratários que não limpam as propriedades e pastagens; os responsáveis da dita “proteção” civil que nada protegem, enrolados nos negócios do aluguer de aviões e do SIRESP; os partidos que usam a floresta e a proteção civil como arma de arremesso, enfeudados nos gabinetes de Lisboa; as populações que não limpam as matas, não procedem com civismo nem defendem o que sendo seu é de todos; os técnicos do fogo, peritos em diagnósticos mas desaparecidos no momento de decidir; a comunicação social, em busca de sangue ou de escândalo para alimentar as audiências e a publicidade; e os habituais velhos do Restelo do telejornal, Fernando Curto e Jaime Marta Soares, a quem nunca vi apagarem um fogo mas que dele falam de cátedra.

As florestas cobrem 31% de toda a área terrestre do planeta e têm responsabilidade directa na garantia da sobrevivência de 1,6 biliões de pessoas e de 80% da biodiversidade terrestre, movimentando cerca de 327 biliões de dólares todos os anos, mas infelizmente o mundo debate-se com a triste realidade da desflorestação resultado das alterações climáticas e do exaurir dos recursos.

Em Portugal a floresta ocupa 38 % do território de Portugal continental, verificando-se que o pinheiro bravo, o sobreiro e diversos tipos de eucalipto são as espécies mais representativas e, também, de maior interesse económico, ocupando no seu conjunto quase 75 % da área de floresta. Portugal é igualmente o país da União Europeia com mais floresta nas mãos de proprietários privados que, em grande parte, se defrontam com a sua baixa rentabilidade. Este problema tem particular incidência na floresta do norte e do centro, assim como nas áreas serranas a sul, traduzindo-se num défice de gestão das áreas florestais a que se vem juntar o crescente abandono de muitas áreas agrícolas. Esta situação é uma das principais responsáveis pela dimensão do flagelo dos incêndios, que vem tomando, nos últimos anos, proporções de calamidade pública. A expansão do eucalipto é recente e coincide com o crescimento da indústria papeleira, responsável pela gestão de cerca de 30% dessa área, na qual se abastecem em cerca de 20% do volume total de madeira consumida.

Sintra é particularmente representativa da intervenção humana na floresta. Por se erguer perpendicularmente à linha de costa, a serra de Sintra é o primeiro obstáculo natural que os ventos húmidos do Atlântico encontram intercetando o seu percurso. Isso permite um microclima mediterrânico de feição oceânico, com níveis de humidade característicos dos climas subtropicais. A proteção proporcionada pelas copas e a manta morta gerada pela queda das folhas e ramos, contribuem para a manutenção de temperaturas e de níveis de humidade no solo propícias ao desenvolvimento da grande diversidade de espécies que aqui podemos encontrar, na sequência da construção de autênticos parques românticos. Aqui pontificam o cedro-do-Buçaco, da América Central, a búnia-búnia, da Nova Caledónia, a araucária de Norfolk, o ginkgo da China ou a magnólia americana, numa miríade de clorofila e orvalho.

Fala-se em reforma da floresta, imposta pela emergência ditada pelo flagelo dos fogos em 2017, redigem-se relatórios, debitam-se palpites. Uma coisa é certa: só uma dimensão de proximidade permitirá gerir com maior eficácia e com melhor eficiência os recursos públicos. A gestão florestal e a informação cadastral, visando a prevenção dos fogos florestais e as políticas de defesa da floresta devem ser de responsabilidade municipal, por duas grandes ordens de razões: são as autarquias quem melhor conhece os territórios e suas gentes, e são elas quem pode ser responsabilizado politicamente em caso de divergência de entendimento quanto às políticas adotadas, por estarem sujeitas ao escrutínio popular. O recente caso da interferência do ICNF, estrutura burocrática sedeada em Lisboa, visando o abate de árvores na serra de Sintra nas costas das autarquias respetivas, foi exemplo claro da distorção do poder local e resquício dum poder bafiento e tecnocrático onde a discricionariedade impera e o bom senso rareia. Sendo Sintra, no caso vertente, a guardiã dum Património da Humanidade na categoria de Paisagem Cultural para cuja classificação contou sobremaneira o espaço cénico e a imagem humana e natural construída, devem ser os seus representantes mais diretos a ter a última palavra quando se montam determinadas operações ditas de segurança. Não devem critérios fitossanitários duvidosos ou burocratas cinzentos presidir a decisões que são antes de mais políticas e estratégicas visando uma política de ordenamento florestal participada, sustentável e amiga das populações que dela fazem parte também, quer como produtores, quer como fruidores. Venha um novo quadro legal e dê-se a César o que é de César, para que de vez se possa fazer política para a floresta e não só para a árvore. Com mecanismos de controlo, vigilância, escrutínio e transparência, claro está.

sábado, 14 de outubro de 2017

A Alagamares discutiu o futuro das Cidades

 


Decorreu no dia 14 de Outubro na Escola Secundária de Santa Maria, em Sintra, um evento subordinado ao tema “Cidades Repensadas”, decorrente do qual se discutiu reabilitação urbana, a tecnologia ao serviço das cidades do futuro e a importância da street art e do grafitti na vida das cidades. Foram oradores os arquitectos Gonçalo Moleiro e João Bilbao, o street artist Miguel Portelinha e o responsável pela empresa Next Reality Luís Martins.Durante mais de duas horas e com um público interessado realidades que no futuro se tornarão banais foram abordadas, seguindo-se intervenções lúcidas e empenhadas do público ali presente.

Fotografias Fernando Morais Gomes , Maria Moleiro e Pedro Macieira/Rio das Maçãs
 
 
 
 
 




sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O Cálice dos Templários







Novembro de 1307, já noite, um barco proveniente de Calais ancorava em Lisboa. Nele viajara um velho de barba esbranquiçada, de porte altivo e desafiador. Bertrand de Clairvaux, era o seu nome, mantinha o rosto fechado e transportava um baú de carvalho do qual não deixava ninguém aproximar. Em Lisboa aguardavam-no Lopo Guterres e Ramiro de Sintra, irmãos templários daquela vila, avisados da chegada duma personalidade importante e a quem deveriam receber.

-Bem vindo, Bertrand de Clairvaux! -saudaram, ambos já na casa dos quarenta, outrora combatentes em Gaza.

-Obrigado, irmãos. Já devem saber o que sucedeu com nosso mestre, Jacques de Molay? Vivemos tempos perigosos, e o rei de França está rodeado de intriguistas que conspiram para nos perder...

-Sim, nobre Bertrand, romeiros vindos de França trouxeram até nós as más novas. O Papa Clemente não pode permitir essa prisão infame! -protestou Ramiro, as novas da prisão do Grão-Mestre eram difusas, inventaram-se adorações satânicas, e numa aziaga sexta-feira de Outubro Lúcifer abatera-se sobre os cavaleiros do Templo. Misteriosamente, o rei Filipe, com a aquiescência do papa herético Clemente, mandara prender os templários de França e o seu Grão-Mestre, Jacques De Molay. Temendo também ser preso, Godofredo de Chorney chamou Bertrand e encarregou-o de uma missão secreta, em Portugal.

Um cavalo estava aparelhado para o levar a Sintra, mais duas mulas para os baús, ficaria alojado perto do antigo paço árabe, na propriedade aforada ao antigo Grão-Mestre, Gualdim Pais. Horas depois, lá chegaram, sem que Bertrand desviasse o olhar das mulas com os baús, sobretudo um, mais pequeno. Alojaram-no numa cela com vista para a serra, posto o que no dia seguinte, depois do terço, se reuniu com todos os cavaleiros, levando consigo o baú mais pequeno:

-Irmãos de Portugal, venho até vós encarregue duma missão sigilosa, pelo que tudo o que aqui virem ou ouvirem não deverá transpor estas portas!

Intrigados, os cavaleiros juntaram-se em torno de Bertrand, tochas alumiavam a cripta subterrânea, onde até ali poucos tinham entrado.

-O provincial da Normandia, Godofredo de Chorney interpretou na profecia da cátara Esclarimunda ser Sintra o local onde deve ficar o conteúdo deste baú.

-Pedi o que precisares, nobre Bertrand, se necessário for, nosso sangue será derramado! -afirmou Lopo Guterres, o mais ancião do grupo.

-É precisamente o sangue derramado que me trás até vós - adiantou, intrigante. Dirigindo-se ao baú, de lá retirou um volume envolto em burel que religiosamente colocou sobre uma mesa. Era um cálice já enferrujado, deixando todos intrigados e entreolhando-se.

-Eis o que me trouxe a terras portucalenses!

O grupo ficou em silêncio. Que importância poderia ter um cálice para a longa viagem até Sintra? Bertrand fez uma pausa, olhou-os um a um, solene, e ergueu-o, como se de uma eucaristia se tratasse:

-Cavaleiros do Templo, este é o cálice onde José de Arimateia recolheu o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, na hora em que partia para encontrar o Pai!

Os cavaleiros sentiram um calafrio e ajoelharam, impelidos por um instinto irracional, fazendo o sinal da cruz. Ali estava o Santo Graal! Não era loa de bardos, afinal, a perseguição à Ordem obrigava a salvar de mãos heréticas a relíquia há séculos guardada.

-O santo cálice repousava há doze centúrias em Montsegur, onde a mártir Esclarimunda o guardou, depois de lhe ter ser confiado por José de Arimateia-continuou. Poucos sabem da sua existência. Agora, aqui ficará em segurança, de acordo com a vontade de Esclarimunda: “quando o sangue real for perturbado, em paz repousará onde o Ocidente acaba, e a montanha vigia”. Aqui! -e bateu com a mão no peito, olhando o infinito, a missão estava a chegar ao seu termo.

Um a um, os cavaleiros contemplaram o cálice, como se Cristo em pessoa tivesse descido à cripta, benzeram-se, e beijaram-no com emoção. Com fervor, velaram toda a noite, rezando e observando jejum.Antes de nascer o sol, colocado o cálice numa bandeja e formados em procissão, seguiram por uma catacumba na direção do paço árabe, e, numa sala em abóbada de berço, com colunas sugerindo um hipogeu, debaixo duma laje o guardaram. Bertrand virou-se para os cavaleiros e enfatizou:

-Um Cavaleiro Templário é destemido e seguro, e tem a alma protegida pela armadura da fé, assim como o corpo pela armadura de aço! Non nobis Domine, non nobis, sed nomine Tuo ad gloriam!

Em 1314, após sete anos de terríveis provações, Jacques de Molay foi supliciado e Clemente V extinguiu a Ordem do Templo, expropriando-a de todos os bens. Mais complacente, por cá, D. Diniz, ao fim de uns anos criou a Ordem de Cristo, e sob a sua égide puderam os cavaleiros sobreviver e as velas portuguesas sulcar os mares, anos mais tarde. Silencioso, na noite dos tempos, o Santo Graal continua enterrado em Sintra…

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Depois da Catalunha, Sintra?- Uma "estória " sorridente




Fim de tarde em Sintra, o cadenciado matraquear das bolas na mesa de snooker acompanhava as animadas tertúlias no bar. Clientes disputando uma partida ou jovens da geração recibo verde, anónimos ou velhos conhecidos, corriam soltas as conversas abrilhantadas por litros de ávidas imperiais que conduziam sempre à salvação do mundo pelo fim da tarde, depois da enérgica utilização do verbo e antes do previsível e recuperador bife com cogumelos. Rafael, Rafa para os amigos apreciava a tranquilidade do local para garatujar letras para canções, viera cedo, Adriano, funcionário das finanças, chegava pelas seis como de costume, com a sala ainda tranquila, naquele dia particularmente zangado com as notícias do Benfica, a crise a justificar medidas, um dia a crise a justificar a democracia, reclamava, uma imperial era urgente, antes que aumentasse o preço, irritado com a cultura de laxismo, personagem em busca de guião na Sintra de 2017.
-Isto só lá vai com a independência, como na Catalunha! Já vistes que Sintra tem mais população que a Madeira e os Açores juntos? - comentava ao balcão com o Zé, sorvendo a primeira cerveja dum trago  e temos tudo para isso, já viste?
O Rafa, embrenhado nos seus poemas, sorriu da mesa do canto e pediu um café, alheado, política não era com ele. O Raposo Taxista chegava entretanto para uma fresquinha, o Adriano continuava na arenga elevando o tom da voz, a sala mais composta era garantia de audiências, que a pátria salva-se sempre primeiro nos cafés.
-Pois vejam bem, temos castelos, saída para o mar, aeroporto na Granja, indústrias, tribunal, turismo…-ia debitando, uma imaginária bandeira independentista passando pela vista a esvoaçar no Castelo dos Mouros, tortuosas teorias da conspiração galvanizando o insurrecto estudante entre duas partidas de snooker no bar e mais uma imperial fresquinha.
O Raposo concordava, mas o essencial era sair do euro:
-Tem toda a razão amigo, por este andar daqui a cinco anos estamos todos a comer ervas. Deu-se cabo da agricultura, indústria não há… e a malta nova, andam a tirar cursos para trabalhar em supermercados ou roubar. Não sei onde é que isto vai parar!
 Adriano começava a juntar apoios enquanto o Zé aviava mais uma rodada, agora já com amendoins, para enxugar, lá fora mais um comboio saía para o Rossio. O revolucionário das seis da tarde continuava:
-Saía-se do euro e fazia-se uma zona franca em Sintra, um paraíso fiscal, um cluster de industrias criativas, davam-se isenções fiscais às  empresas ecologicamente eficientes, e universidade gratuita, paga com as receitas da zona franca, iam ver, em dez anos éramos a Suíça da Europa- continuava, naif, o desejo de mudar o mundo dos outros quando não se consegue mudar o próprio. O Rafa, já contagiado pela ideia do cluster criativo interrompeu a escrita no bloco azul e juntou-se-lhes, dois adeptos já estavam convertidos, pelo andar à meia-noite a Rádio Ocidente anunciaria um golpe de Estado e a secessão de Sintra, micro-estado sem exército, maior que o Mónaco ou o Luxemburgo .
O Raposo Taxista insistia na questão do euro, já a quarta imperial inaugurava o caminho da goela, havia que tomar medidas:
-Eles vão ver aonde vai levar esta política. Vejam uma coisa: um país sem moeda e sem agricultura está sempre dependente dos outros. E o que é que a gente produz? Nada! Até as batatas vêm de Espanha, é uma vergonha!
-Claro!- acicatava o Adriano - se isto fosse independente apoiava-se fortemente a agricultura! A maçã reineta, as hortas de Almargem, o vinho de Colares…
-Ah, isso sim, boa pinga sim senhor! - atalhou logo um dos jogadores de snooker, até ali calado, debruçado sobre a mesa, distraído tocara numa bola não branca com o taco.
-Então mas onde é que eram os limites do tal país?- sondou o Zé, anuindo, servindo uma tosta mista ao Rafa.
-Para mim era assim: toda a zona rural, no máximo até Mem Martins . Já viram que daí para lá só há problemas? Além do mais está tudo construído, não trás receitas, é um fardo em despesas de saúde, educação, há os bairros sociais e os imigrantes. E os IMI’s não rendem tanto assim, que as pessoas não pagam...-rematava, estava tudo estudado, até o acordo ortográfico devia ser revisto.
A conversa fluía e a noite caía rápido, os dois do snooker saíram pensando serem todos malucos, voltariam mais tarde, os conspiradores levados pelo entusiasmo cantavam já canções patrióticas devidamente ilustradas com canecas de cerveja e brindes à revolução, à independência e até a José Mourinho.
Já a revolução estava em marcha, tocou o telefone, a voz furiosa e alterada da mulher  do Adriano do lado de lá  obrigava a mudança de planos, o frango para o jantar nunca mais chegava e ainda tinha de passear o cão. Obediente, lá saiu correndo, adiando o golpe de estado para a tarde seguinte. Com uns tremoços a acompanhar, se possível.




segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Che Guevara e um mojito




Passam hoje cinquenta anos da morte de Ernesto Guevara, “El Che”, guerrilheiro e revolucionário que uma morte prematura lançou no mundo da Lenda. Che Guevara foi para muitos um ídolo, um rebelde com causas e uma personalidade inquieta que o levou da Argentina natal à Sierra Maestra, do Congo à Bolívia ou onde uma luta de libertação precisasse de um voluntário ardente, um abraço fraterno e um braço armado, nesse Grande Tempo das Utopias. Num mundo de Beatles, Sartre, Woodstock , do Maio de 68 ou até da madrugada de Abril, os trepidantes anos 60 tiveram os seus heróis e amanhãs que cantam, e a Liberdade passou a andar por aí. Enviesada, para alguns iluminados pela estepe russa, calorosa e engajada, para os barbudos de Havana, lírica e generosa, para os hippies e pais do flower power libertário num mundo de guerras frias e conflitos quentes, envolto em LSD em Londres, lançando napalm em Saigão ou empolgando soixante huitards em Paris.

Do Che ficaram as canções militantes, o exemplo do herói caído em combate, como Garcia llorca, Vitor Jara ou Salvador Allende, a quem pegando nas armas outros seguiram até à vitória talvez final. O mundo mudou, porém, os revolucionários aos vinte viraram conformados aos quarenta, e a revolução ficou para ouvir em fim de tarde com um mojito ao lado, sonhando os mundos que não vieram. E Che entrou para a História, qual Cristo crucificado nas selvas bolivianas logo ressuscitado nas Sorbonnes e Woodstocks deste mundo. Viver precisa de causas e as causas carecem de heróis. Hasta sempre, Comandante!

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Padre António Vieira, perigoso genocida?





É ridículo ver gente que devia ter dois dedos de testa acusar o Padre António Vieira do etnocídio do povo ameríndio, e mais demencial ainda é ver a sua estátua recentemente inaugurada “protegida” por hammerskins de quem ele por certo se distanciaria se fosse vivo.
O mundo do século XXI não é o mesmo do século XVII, e não se pode exigir a quem viveu nesse tempo, anterior à Revolução Francesa e à emergência das sociedades com direitos que felizmente se sucedeu, e de que Portugal foi pioneiro ao ser dos primeiros países do mundo a abolir a escravatura, o mesmo tipo de enfoque. Pelos cânones de hoje o infante D. Henrique seria um perigoso esclavagista e D. João II um tirano e um déspota.
Recordemos, contudo,  o seu Sermão Vigésimo Sétimo: «Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas, e os riscos das próprias!... Os senhores poucos e os escravos muitos; os senhores rompendo galam, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros.»
Admitindo o cativeiro dos negros vindos de África, considerado legal, e não o dos índios, acrescenta Vieira: «Bem sei que alguns destes cativeiros são justos, os quais só permitem as leis, e que tais se supõem os que no Brasil se compram e vendem, não dos naturais, senão dos trazidos das outras partes: mas que teologia há ou pode haver que justifique a desumanidade e sevícia dos exorbitantes castigos com que os mesmos escravos são maltratados?»
Vieira era pelos índios chamado de "Paiaçu" (Grande Padre/Pai, em tupi), e foi um exemplo de tolerância e grande defensor da comunidade indígena, num tempo que a muitos interessava mais o vil metal e a ganância do poder. Assistir pois aos eventos ocorridos na Lisboa de 2017 conspurca a sua memória e deixa mal na fotografia ambos os lados, uns por fanatismo etnocêntrico, outros por nacionalismo bacoco e de quem nunca terá lido uma linha da sua obra. Como ele escreveu “O não ter respeito a alguns, é procurar, como a morte, a universal destruição de todos.”




quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Novo evento da Alagamares no dia 14

   

Discutir as cidades do futuro, dotadas de instrumentos inovadores e disruptivos, é o mote para o evento que a Alagamares promove dia 14 de Outubro pelas 16h30m no auditório da Escola Secundária de Santa Maria, na Portela de Sintra, com Entrada Livre.
Oradores:
LEONEL LOURA

Leonel Moura (26 de Dezembro de 1948, Lisboa) é um conceituado artista português cuja obra nos fins da década de 1990 passou da fotografia para a inteligência artificial e arte robótica. Desde então, o artista tem produzido vários Robôs Pintores e o Robotarium, um zoo para robots, o primeiro deste tipo no mundo. Uma das suas criações, o RAP (Robotic Action Painter) de 2006, é um robot que faz desenhos baseados em emergência e estigmergia, decide quando a obra está pronta e a assina. O RAP é exibido como instalação permanente no American Museum of Natural History em Nova York.

SER-rA


O atelier SER-ra, fundado pelos arquitectos Gonçalo Moleiro e João Bilbao, ambos naturais de Sintra, foi formalizado em 2017, apesar da sua existência enquanto colectivo desde 2012.
O trabalho desenvolvido pelos SER-ra não se limita à elaboração de projectos, procurando repensar a cidade através da Arquitectura.

NEXT REALITY

A Realidade Aumentada permite transformar espaços reais com elementos digitais – é sobre esse potencial e a forma como iremos viver as cidades no futuro que vamos falar. E depois vamos demonstrar um pouco do que já é esta tecnologia.
A NextReality é uma empresa do IT People Group, dedicada à produção de soluções em Realidade Aumentada, Realidade Virtual e Mixed Reality desde 2010. Somos Microsoft Gold Partners, temos quatro produtos lançados com esta tecnologia e um deles – o ARchitect – visa precisamente facilitar a simulação de edifícios no espaço urbano.  Será orador Luís Martins.

MIGUEL PORTELINHA
Designer, fundador da empresa MalAmados, street artist, com formação no IADE.