sábado, 4 de abril de 2020

Covid

Rodolfo deambulava pelas escarpas da Roca, promontório do Inferno que sempre o deslumbrara, os relâmpagos sobre o mar aconselhavam que recolhesse a casa, o dia estava triste e invernoso, estava próxima, a tempestade.. Quisera o destino que na véspera morresse o Jorge, vítima da nova praga que aos poucos a muitos ia roubando vidas, dado à solidão, caminhava sem destino pela arriba, com a nortada flagelando-lhe o rosto. A Primavera chegara, tímida e cúmplice da virulenta epidemia, lá em baixo, o mar furioso açoitava a pedra de Alvidrar e a Ursa. Rodolfo mordia o lábio, esconjurando a borrasca, era-lhe familiar o mar da Roca, temia-o e esconjurava-o, impotente.
Dentro do carro, Luís aguardava, sabia o quanto Rodolfo queria estar só, chorando a perda absurda do velho amigo, antevendo a noite, foi chamá-lo, melhor estariam em casa, havia que contar com as patrulhas da polícia, abordando os infratores da quarentena na véspera decretada:
-Vamos, Rogério, anoitece, a bófia deve estar em Colares, ainda nos vão chatear por andarmos aqui sem motivo!
Rogério nada disse, sem espírito para argumentos, assustado e apressado, Luís despejava medos e temores tentando apressar o passo ao amigo:
-Há semanas que a Itália está assolada por uma vaga de mortos e com carência de meios, já não há ventiladores, e nós vamos a caminho, mano, só em Sintra já temos 260 infetados. Isto foi coisa dos chineses, os safardanas, e agora até vendem máscaras e batas!
Luís tinha pressa de partir, esboçando um sorriso tristonho, Rogério deteve-se um pouco mais à chuva, lá em baixo peixes voadores saltitavam assustados, num bailado perturbador. Luís fechou o semblante, qual arauto do fim do mundo, e continuou a arenga:
-E na América já está tudo descontrolado, o idiota do Trump subestimou a cena, agora é que vai ver com quantos paus é que se faz uma canoa....
Luís coloria com imagens tétricas o desejo de rapidamente escapulir para Sintra.Rodolfo, já molhado pelas bátegas que se adensavam, anuiu, e com a tempestade cada vez mais próxima regressaram pela estrada da Azóia, o mar estava indómito, e as ondas ameaçadoras.
Já afastados, lá em baixo, uma besta despertada do sono assomou à entrada duma gruta, tinha uma cabeça redonda e escamas vermelhas, da cor do sangue, aladas,umas asas descomunais. Despertado do sono, o lendário monstro Covid voltava das trevas para dominar os homens e capturá-los com o seu odor, que uma vez aspirado, logo se transformaria em febre e delírio, colhendo vidas por horrorosa asfixia. Poucos o haviam visto em muitos anos, o poder do fel que expelia logo condenava os humanos que ousassem surgir-lhe pela frente. Nenhuma arma ou vacina, remédio ou mezinha podiam os homens contra o monstro da Roca, que uma vez à luz do dia soltou um uivo lancinante, soprando uma enorme concha, arma da Morte contra os impotentes humanos, entretidos em mercadejar riquezas e lançar ameaças de guerras apocalíticas, alterando o clima e desbaratando o planeta.
Já em casa, Rodolfo serviu-se de um digestivo, e abúlico, deixou-se cair no sofá para mais um dia de isolamento e nova ladaínha de mortos e infetados desfilando na modorra da televisão.
É Abril, não o das memórias da libertação, mas o da chegada sem aviso de novos e incertos grilhões. Sic transit, gloria mundi.


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