Pela manhã daquele frio Abril, na solidão de dias vazios, Jorge passeava no areal da Aguda, onde gaivotas ululantes pairavam sobre o azul encrespado do mar, atlântico e viril.Um mestrado em Antropologia terminado num emprego num call center, a recibo verde, era o seu espólio, o pai e o avô iam ajudando.
Acabara com a Mariana, depois de arrufos que noutros tempos logo se resolveriam mas que um estado depressivo amplificara, estava arrependido, mas não queria ceder. O Filipe prometera ver o que se arranjava no escritório do pai, mas as coisas não estavam fáceis, dos vinte empregados sete tinham sido despedidos, e os restantes estavam a receber do centro de emprego.
A Aguda estava particularmente spleen. Enquanto um pescador solitário apanhava tiagem, Jorge, sem pressas, ia desfolhando o passado recente, os amigos afogando em imperiais a vida a marcar passo, os pais desavindos por causa dos empréstimos, o tempo esgotando-se entre o Instagram e o download dos blues favoritos. Desenhando círculos na areia molhada, que ondas irritantes logo desfaziam, a investida das marés desvendava uma natureza pujante, e por momentos lembrou-se do tsunami da Ásia, e passou-lhe pela frente a imagem dantesca do que seria uma onda igual a consumir toda a praia, pouco provável, contudo, dadas as arribas atlânticas, armadilhadas de recifes e fósseis.
De quando em quando puxava do telemóvel, e detinha-se no número da Mariana, mas desistia de seguida. Talvez fosse melhor assim. Já não havia química, só a saudade egoísta da sua pele macia, porto de abrigo de muitos dias de solidão, onde em pose fetal se acolhia depois de noites de amor. Mas depois, cruel, voltava a cama fria pela manhã, o quarto despido onde fixamente olhava o tecto, a melancolia, a vontade de desistir.
Ao longe, na areia, uma mulher passeava, e um cão de água português corria ofegante, um cigarro na mão, ao aproximar-se, detetou-lhe um olhar suave, mas fechado. Ao cruzarem-se no areal, uma onda ousada molhou-lhes os pés, irrequieto, o cão ladrou a uma gaivota mais atrevida. Tinha uma expressão serena, tal e qual a Angelina Jolie, pensou com os seus botões, inevitavelmente meteu conversa, com o cão- é sempre o cão- como pretexto.
-Estes cães gostam muito de água, quantos anos tem? -uma atracção súbita por aquele olhar seráfico e impenetrável tornou desafiadora a desconhecida passeando na praia.
-Três meses, é cachorro ainda! -respondeu, esboçando um sorriso pouco expansivo, com o cabelo ondulando ante a brisa da nortada.
-É muito bonito. Como se chama?
-Fausto. O meu ex-marido só gostava de animais com nomes clássicos.
Havia um ex-marido, a coisa não parecia assim tão desagradável. Ela devolveu:
-Vem aqui muitas vezes? Nunca o vi por cá!
-É raro, mas acho o ar frio tonificante, quando posso venho, moro aqui perto.
-As praias são locais onde se perdem coisas e outras se ganham, as ondas trazem e levam muitos segredos, não são só botas velhas... –as palavras soavam dramáticas, meneando a cabeça, Jorge concordava, só para continuar a conversa.-O meu avô dizia-me: quando quiseres que algo aconteça, levanta uma pedra e aquilo que procuras, pode lá estar. As praias são muitas vezes cofres de segredos que podem mudar os dias!
Com estas palavras despediu-se, o cão adiantara-se já no vasto areal e um vento gélido ia-lhe flagelando o rosto, apesar do sol de Inverno.De novo só, com o pescador já minúsculo ao longe, continuou, desenhando círculos na areia com um galho de árvore que uma onda trouxera. Em cima de um rochedo decorado de mexilhões e de algas verdes salgadas, deteve-se a ver o mar, o súbito ruído de algo a bater nas rochas, chamou-lhe a atenção. Curioso, deitou o olhar para uma poça que o mar escavara, uma garrafa esverdeada e sem rótulo, fechada, deixava-se levar por um ondulante bailado na água. Algo no entanto o alertou.A garrafa continha um papel dentro. Logo lhe ocorreu alguém mandando uma mensagem, coisa de filme, ali estava ele, náufrago da vida, com uma garrafa na mão, se fosse de gin ao menos… Desdobrado o papel, não muito antigo, como erradamente imaginou, tinha escritas umas palavras enigmáticas:“O destino baralha as cartas. Nós jogamos”. Como assinatura, um smiley, risonho e ingénuo. Atónito, releu a mensagem, e repetidamente apertou-a com a mão firme, como se por azar lhe fosse escapar. Ao longe, irruptivo, o vulto da mulher lançava-se ao mar, uma gaivota ruidosa acompanhava do céu. Ainda tentou ir-lhe no encalço, mas logo desapareceu, só o cão de água, ladrando e abanando o rabo,ficou a vê-la desaparecer no mar, traquina e brincalhão.
Olhou o horizonte, o sol nascia cálido e a brisa pareceu-lhe agora aromatizada.
A vida são túneis de onde por vezes desponta ao fundo a luz, outras onde o negrume entorpece e paralisa.
Bom sábado!
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